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O Parto de Bigorna da Reforma Tributária

Se existe uma verdade sobre o terceiro governo Lula, ela é a de que nada vai vir com facilidade nesse governo. Talvez o governo tenha demorado um pouco para entender isso e confiado demais na lábia de Arthur Lira para pautar alguns temas. Em especial, a Reforma Tributária, para a qual o Presidente da Câmara […]

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Se existe uma verdade sobre o terceiro governo Lula, ela é a de que nada vai vir com facilidade nesse governo. Talvez o governo tenha demorado um pouco para entender isso e confiado demais na lábia de Arthur Lira para pautar alguns temas.

Em especial, a Reforma Tributária, para a qual o Presidente da Câmara já manifestou apoio em algumas oportunidades. Só que, enquanto o governo encaminha projetos para a Câmara, a oposição se articula nas redes sociais. E, no caso da Reforma Tributária, as vozes contrárias ganharam aliados de peso. 

Lembram do PL 2630, vulgo PL das Fake News? Que, a princípio, passaria fácil pela Câmara dos Deputados, na esteira do ocorrido em 08 de janeiro, mas que acabou tendo que ser tirado de pauta após intensa pressão nas redes sociais? Hoje sabemos que as próprias redes patrocinaram essa pressão contra o projeto, e continuam fazendo pressão, a ponto do Google ter contratado o ex presidente Michel Temer como “lobista informal” para defender os interesses da empresa no projeto. Mais importante que o tema em si, a lição que o PL das Fake News trouxe é simples: a oposição ao governo Lula vai usar a pressão nas redes sociais e o lobby de grupos poderosos como modus operandi contra todo o qualquer projeto do governo Lula. E isso tem que estar na conta em qualquer tema, especialmente considerando o perfil atual da Câmara dos Deputados atual, que conta com inúmeros representantes do agronegócio, empresários e políticos simpáticos aos temas conservadores. Talvez seja essa percepção que, em alguns momentos, está faltando ao governo.

É bom lembrar que a estrutura tributária atual, embora seja extremamente burocrática, dotando o sistema de cobrança de impostos de uma complexidade inacreditável, também é extremamente regressiva, o que faz com que os pobres paguem muito mais impostos do que os ricos. Mais do que isso: também faz com que os impostos sejam cobrados mais do consumo do que da renda. E frequentemente acaba incidindo a cobrança de impostos em cascata sobre itens básicos, o que aumenta ainda mais a regressividade do sistema.

Na prática, quando uma pessoa das classes D ou E compra um bem ou serviço, compromete uma parcela muito maior de seus recursos com os impostos que incidem sobre esse serviço do que uma pessoa das classes A ou B. 43% da carga tributária brasileira é composta de impostos sobre consumo, 27,5% é composta de impostos sobre folha de pagamento , que são os impostos que incidem mais sobre a classe trabalhadora.

Os impostos sobre renda, que incidem em geral sobre as classes mais altas, respondem por apenas 22,5% do valor arrecadado, enquanto os impostos sobre patrimônio, que também costumam incidir sobre a parcela mais rica da população (é ela que consegue acumular patrimônio, afinal), são responsáveis por apenas 4,5% da arrecadação total. Esses percentuais são muito menores do que os percentuais praticados nos países da OCDE, como mostra esse estudo publicado pela Agência Senado:

Quando falamos de alíquotas, então, a coisa piora ainda mais: em 2019, a base de incidência de impostos sobre os bens de consumo era de ridículos 43,30%, enquanto a base sobre folha de pagamento era de 27,73%. Sobre renda, a alíquota era de 22,45%, enquanto sobre propriedades a alíquota era de 4,85%. Sobre transações financeiras, a tributação perfazia 1,7% do valor total (quando existia a CPMF, esse valor chegou a 5% entre 2002 e 2003).

Nesse cenário, os mais pobres, que gastam todo o seu salário pagando contas e comprando itens de sobrevivência, são mais penalizados. É o que mostra esse estudo da Unicamp: o Brasil é um dos países que cobra mais sobre o consumo, mas está na parte de baixo do ranking quando a cobrança é sobre renda ou herança.

Mas quem está contra a Reforma Tributária? Bem, existem alguns grupos empenhados em não ver a reforma aprovada. Antes de mais nada, já está claro o suficiente que os mais ricos são beneficiados pelo sistema tributário atual. Mas existe um outro fator, que vai além da arrecadação e das alíquotas em si: o enorme custo de processo que o sistema tributário atual traz para o país.

E quando eu falo processo, não estou falando necessariamente de processos judiciais: a complexidade do sistema tributário brasileiro faz com que empresas tenham que ter estruturas robustas para lidar adequadamente com o tema da tributação. Grande parte dos esforços dos “departamentos financeiros” das empresas vão nessa direção, e até nisso há uma enorme desigualdade: enquanto empresas pequenas colocam funcionários para lidar com a questão, grandes empresas contratam consultorias dos melhores escritórios advocatícios para tentarem usar a complexidade da lei a seu favor, pagando menos impostos.

Por vezes, teses estapafúrdias são criadas, como no caso julgado pelo STF em abril, que pode render R$ 90 bilhões aos cofres do governo: nesse caso em específico, as empresas adotaram uma interpretação criativa da lei para que subvenções de custeio estaduais (que já são uma bizarrice) fossem abatidas de impostos federais.

Nesse caso o governo ganhou, mas em muitos outros as empresas ganham. E ganham porque a estrutura tributária brasileira é complexa, confusa e dá margem a inúmeras interpretações criativas, como essa. E essas interpretações criativas rendem muita isenção de impostos para as empresas, mas também muitos honorários para advogados.

Para além desses grupos, a área de serviços também está contra a Reforma Tributária. Foi da Associação Brasileira de Supermercados que veio o levantamento deturpado que está sendo usado por bolsonaristas e dizia que a cesta básica ia aumentar 60% com a Reforma Tributária.

Depois de tudo o que o Brasil passou nos últimos anos, a última coisa que eu esperava que aparecesse é torcedor de imposto. Mas não, agora o bolsonarista só falta sair na rua com uma camiseta verde e amarela escrita “Eu ❤️ ICMS” ou “ICMS, ISS, CSLL & IPI”, como se o nosso sistema tributário fosse a coisa mais incrível do mundo. Não, não é.

Além disso, muitos municípios se beneficiam com as confusões entre cobranças de impostos na origem ou no destino. A lei nova determina que é no destino, o que vai poupar literalmente milhares de ações judiciais. É óbvio que alguns municípios e estados estão revoltados com isso. O caráter federativo do Brasil ainda é muito débil.

E o melhor de tudo: com a Reforma Tributária, a guerra fiscal acaba de vez. A nova legislação tira autonomia de estados e municípios para a concessão de privilégios tributários, que muitas vezes transitam naquela linha tênue entre o legal e o ilegal, que só existe porque o sistema atual é confuso e cheio de penduricalhos. A ideia de cashback para os mais pobres também é uma ótima medida de redistribuição, solenemente ignorada pelos impostotários.

Muita gente segue ganhando com o sistema tributário injusto e confuso que o Brasil adota atualmente. O próprio partido do Bolsonaro, o PL, até pouco tempo atrás defendia a proposta de “imposto único” do Marcos Cintra – que inclusive fez parte do governo Bolsonaro, chegando a ser Secretário Especial da Receita Federal até ser demitido sumariamente por Paulo Guedes por sugerir em uma apresentação a criação de uma versão atualizada da CPMF.

A verdade é que a Reforma Tributária é o melhor legado que o Ministro Fernando Haddad pode deixar para o país. Vai gerar uma diferença enorme no médio e no longo prazo, reduzindo os custos associados à produção no Brasil, aumentando a produtividade no país e tornando a estrutura tributária mais simples e menos desigual. Ajustes precisam ser feitos, e ajustes são sempre complicados. Mas não restam dúvidas de que mudar a estrutura tributária, com a proposta que está sendo votada, será um dos melhores legados de Lula ao país. 

Triste saber que esse processo todo será mais um parto de bigorna. E por pura politicagem tosca dos bolsonaristas.

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