A leitura do voto do ministro Benedito Gonçalves, relator do processo contra Jair Bolsonaro no Tribunal Superior Eleitoral, já se tornou um dos momentos mais marcantes da história recente do Brasil. Seus efeitos sobre a nossa democracia serão profundos, na acepção mais positiva que possamos imaginar.
É um voto que redime não apenas o judiciário brasileiro, mas também, e sobretudo, a própria república.
Com esse voto, corajoso, científico, verdadeiro, o judiciário dá exemplo do que o querido Pepe Mujica disse outro dia, de que a democracia pode não ser perfeita, mas é “aperfeiçoável”.
Assim como a natureza, à procura de vida, se adapta a quase todas as circunstâncias, com os seres aprendendo a tirar energia e matéria diretamente do sol e do ar, como fazem as plantas, a respirar dentro da água, como fazem os peixes, e a inventar fórmulas matemáticas, como fazem os humanos, assim também a democracia é um regime político capaz de corrigir seus próprios erros, com mais velocidade e menos traumaticamente do que outros sistemas.
O judiciário faltou à república nos últimos anos.
A vitória eleitoral de Jair Bolsonaro foi a consequência direta de uma série de interferências indevidas do judiciário na vida política nacional.
Isso dá um caráter fortemente irônico, aliás, a essa campanha de Bolsonaro contra o judiciário. Por outro lado, é o que explica o medo instintivo que a extrema direita nacional alimentou contra os juízes.
Os reacionários que prosperaram na era Bolsonaro sabem, no fundo, que foram alçados ao poder pelos arbítrios e excessos do judiciário contra o presidente Lula, empresas nacionais e partidos. E por saber disso, sempre intuíram que era o judiciário que igualmente poderia derrubá-los. Ou antes, sabiam que o judiciário poderia impedi-los de se manter indefinidamente no poder.
Antes de tudo, façamos justiça ao povo brasileiro. Bolsonaro não foi derrotado por juízes, e sim pelo voto popular. Ele teve muito voto em 2022, mas o seu adversário teve mais. E teve mais porque, como ocorre em qualquer democracia, havia mais gente querendo chutar seu traseiro do que mantê-lo como presidente da república.
Bem, voltemos ao voto de Benedito Gonçalves.
O seu voto tem um foco muito bem definido: a organização, a partir de uma determinação absolutamente pessoal do presidente da república, do que talvez tenha sido o mais bizarro e escatológico episódio da era Bolsonaro: a convocação, pelo governo brasileiro, de quase 100 representantes diplomáticos estrangeiros, para uma reunião no Palácio da Alvorada, no dia 18 de julho de 2022, onde o próprio presidente da república desfere ataques mentirosos, infundados, antidemocráticos, ao sistema eleitoral brasileiro.
Gonçalves contextualiza essa ação de Bolsonaro, lembrando que foi uma espécie de ápice de um processo crescente de violências contra o sistema eleitoral, as urnas eletrônicas e as instituições responsáveis.
Na verdade, a reunião com embaixadores foi pensada por Bolsonaro também como uma resposta ao TSE, cujos ministros e burocracia vinham neutralizando, com sucesso, todos os artifícios do presidente para minar a credibilidade das urnas.
A tese de Benedito é simples. Ele cita uma série de dispositivos constitucionais para provar que a reunião de Bolsonaro violou a lei brasileira, agrediu as instituições democráticas, e colocou em risco a estabilidade política do país.
Foi também uma agressão imperdoável à soberania nacional. O líder dos “patriotas” pegou uma questão política doméstica, e que no mundo inteiro permanece rigorosamente doméstica, que é o modo pelo qual o regime define o processo eleitoral, e tentou transformá-la num problema internacional. Viralatismo puro.
O que Bolsonaro queria? Ajuda de algum país estrangeiro?
Um ponto bastante destacado por Benedito foi o golpe que o Bolsonaro tentou aplicar no TSE, depois que este cometeu o deslize de convidar as Forças Armadas para participar de um grupo de observadores do processo eleitoral.
A partir daí, diz Benedito, o presidente da república não apenas “superdimensionou” o papel que as Forças Armadas deveriam ter neste observatório, como também passou a repetir que ele era o “comandante-em-chefe” das referidas instituições, numa tentiva mal disfarçada de assumir o controle, ele próprio, do processo eleitoral brasileiro.
Em diversas ocasiões, Bolsonaro fez ataques verbais à integridade, honra e ética dos ministros do TSE, e à seu corpo técnico, pois os tratou como conspiradores conscientes e diabólicos de uma fraude eleitoral, tanto em 2018 como em 2022.
Nem preciso dizer que o presidente não apresentou uma mísera prova, um mísero indício que fosse, de que tenha havido qualquer irregularidade nas urnas eletrônicas nas datas mencionadas.
O voto de Benedito é também uma vitória do pensamento científico, porque ele procura, com esmero, destruir os fundamentos do obscurantismo bolsonarista, baseado no esforço consciente, sistemático para minar os mais básicos instrumentos cognitivos, até mesmo sensoriais, que a população dispõe para entender a realidade. Para isso, Bolsonaro mobiliza uma vasta rede de divulgadores de fakenews, nenhum deles com qualquer compromisso com uma postura objetiva, crítica, honesta, perante os fatos.
A própria reunião com embaixadores, analisa Benedito, teria sido pensada como um ato de propaganda eleitoral, produzindo material a ser divulgado por todo esse esgoto de difusores de mentira.
Enfim, foi um voto histórico, após o qual a democracia brasileira dormiu mais confiante em si mesma, e acordou mais tranquila e forte no dia seguinte.
Independente dos votos que vierem na quinta-feira, Bolsonaro já é carta fora do baralho. Falta derrotar o bolsonarismo, a extrema-direita, o obscurantismo. Essa é uma guerra antiga, que se renova a cada geração. Algumas batalhas são perdidas, outras não.
O voto demolidor de Benedito oferece ao campo democrático um conjunto de armas para vencer muitas batalhas daqui para frente.