Famílias lideradas por mulheres negras são as mais afetadas pela fome, aponta pesquisa

Uma pesquisa realizada pela Rede Penssan revelou que a fome no país atinge de forma desproporcional as famílias lideradas por mulheres negras. Ao cruzar dados de gênero e raça, o estudo constatou que enquanto a taxa de insegurança alimentar entre homens brancos é de 7,8%, entre as mulheres negras esse número chega a alarmantes 22%.

Os resultados do Segundo Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (Vigisan) evidenciam que a privação alimentar é mais grave nas famílias chefiadas por mulheres negras, afetando mais de uma em cada cinco delas. Em contrapartida, entre os homens brancos, a porcentagem cai para 7,8%.

Realizado entre novembro de 2021 e abril de 2022, o inquérito revelou que a fome estava presente em 15,5% dos lares brasileiros, abrangendo cerca de 33 milhões de pessoas. Esse período foi marcado pela pandemia, que limitou o funcionamento da economia e resultou na redução das transferências de renda, de R$ 600 para R$ 400, além da diminuição do número de beneficiários. Essa situação de privação alimentar remonta aos anos 1990.

Mesmo considerando famílias com a mesma escolaridade, a pesquisa mostrou que a privação é maior para as mulheres negras. Mesmo aquelas com oito ou mais anos de estudo não estão imunes à falta de alimentos, sendo que 33% delas sofrem com insegurança alimentar ou grave. Em comparação, os índices são de 21,3% para homens negros, 17,8% para mulheres brancas e 9,8% para homens brancos.

Sandra Chaves, coordenadora da Rede Penssan e professora da Escola de Nutrição da Universidade Federal da Bahia (UFBA), analisa que os números evidenciam a concretização do racismo estrutural e do sexismo no país. A mulher negra chefe de domicílio enfrenta o maior risco, resultando em uma junção de vulnerabilidade de gênero e raça.

Embora a pesquisa não apresente os efeitos da melhora no mercado de trabalho no último ano e da recriação do Bolsa Família, é esperado que a situação melhore e a parcela de famílias vivendo em insegurança alimentar diminua. No entanto, as desigualdades devem persistir. Sandra defende que as políticas públicas sejam direcionadas especificamente para a população negra e feminina, e ressalta a importância de programas de combate à fome com inclusão produtiva para as mulheres chefes de família.

Kátia Maia, diretora executiva da Oxfam Brasil, uma das ONGs que integram a Rede Penssan, afirma que os números provavelmente serão melhores caso a pesquisa seja repetida entre novembro deste ano e abril do próximo, uma vez que menos famílias estarão em situação de pobreza e fome. No entanto, a redução da desigualdade ainda não é garantida, pois a população negra e feminina enfrenta indicadores piores em diversos aspectos, como saneamento, acesso à água, trabalho e transporte. Essa situação parece estar cristalizada na sociedade.

Um ponto destacado no relatório é que, embora o emprego formal traga uma melhora na situação alimentar, a distância entre negros e brancos e entre homens e mulheres ainda persiste. De acordo com o relatório, nos lares onde há desemprego ou trabalho informal, a fome é mais presente nos domicílios chefiados por pessoas negras, atingindo metade deles, em comparação a um terço dos lares chefiados por pessoas brancas. Na condição de desemprego, a insegurança alimentar grave é mais frequente em domicílios liderados por mulheres negras (39,5%) e por homens negros (34,3%).

Kátia Maia ressalta a necessidade de reflexão, destacando que em lares com crianças menores de 10 anos, a prevalência de insegurança alimentar moderada e grave é alta, principalmente nos domicílios chefiados por mulheres negras e pardas. Essa pobreza intergeracional pode resultar em desenvolvimento cognitivo deficiente das crianças, tornando-as adultos com menos oportunidades no mercado de trabalho.

O levantamento foi realizado pela Rede Penssan, que reúne entidades como Ação da Cidadania, Actionaid, Ford Foundation, Vox Populi e Oxfam Brasil. Durante o período de novembro de 2021 a abril de 2022, foram visitados 12.743 domicílios em 577 municípios de 26 estados e do Distrito Federal. As perguntas abordaram questões relacionadas à aquisição e consumo de alimentos.

Para determinar o grau de segurança alimentar das famílias, foram consideradas as respostas afirmativas em relação às restrições alimentares. O grau de insegurança alimentar aumenta até chegar à fome, quando a família responde positivamente às perguntas sobre crianças que deixaram de fazer uma refeição por falta de dinheiro ou que ficaram um dia inteiro sem comer por não terem dinheiro para comprar comida.

A pesquisa classifica os níveis de segurança alimentar da seguinte forma:

  • Segurança alimentar: A família tem acesso regular e permanente a alimentos de qualidade em quantidade suficiente, sem comprometer outras necessidades básicas, como moradia.
  • Insegurança alimentar leve: Há preocupação ou reflexão sobre a possibilidade de ter acesso a alimentos no futuro. A família acaba priorizando a quantidade em detrimento da qualidade dos alimentos.
  • Insegurança alimentar moderada: Devido à falta de alimentos para todos, as famílias enfrentam restrições na quantidade de comida ou há uma ruptura no padrão de alimentação, como redução no número de refeições diárias ou queda na qualidade dos alimentos consumidos.
  • Insegurança alimentar grave: A família enfrenta a fome, com falta de dinheiro para comprar alimentos, resultando em apenas uma refeição por dia ou em passar um dia inteiro sem comer.

Esses resultados revelam a urgência de políticas públicas direcionadas para a população negra e feminina, visando combater a insegurança alimentar

Ruann Lima: Paraibano e Estudante de Jornalismo na UFF
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