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Algumas ponderações sobre a crise entre o Governo Russo e o Grupo Wagner

Na sexta-feira, 23 de junho, a Guerra entre Rússia e Ucrânia teve um desenvolvimento bastante surpreendente. O Grupo Wagner, grupo mercenário comandado por Yevgeny Prigozhin, deixou de combater ao lado dos russos e tomou posições militares na Rússia. No sábado, outra reviravolta surpreendente: após negociação com Putin, intermediada pelo presidente bielorusso Aleksandr Lukashenko, o Grupo […]

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Na sexta-feira, 23 de junho, a Guerra entre Rússia e Ucrânia teve um desenvolvimento bastante surpreendente. O Grupo Wagner, grupo mercenário comandado por Yevgeny Prigozhin, deixou de combater ao lado dos russos e tomou posições militares na Rússia. No sábado, outra reviravolta surpreendente: após negociação com Putin, intermediada pelo presidente bielorusso Aleksandr Lukashenko, o Grupo Wagner depôs as armas em troca de uma anistia total para seus integrantes, incluindo Prigozhin. Por isso, é bom colocar essa história em perspectiva através de alguns tópicos:

Vamos aos fatos:

1) O Grupo Wagner é abertamente neonazista. Utkin e Prigozhin são admiradores declarados de Hitler. O nome do grupo e seu apelido (os músicos) são homenagem a Richard Wagner, maestro alemão do século XIX. Mais do que isso: era o apelido do fundador Dmitry Utkin, que sempre foi encantado pelas referências intelectuais da Alemanha nazista, incluindo o próprio Hitler. O nacionalismo alemão exacerbado das composições de Wagner e seu antissemitismo foram uma das grandes inspirações de Hitler no campo das artes, no sentido de “provar que o intelecto alemão era superior”. Nesse sentido, a homenagem reflete também a inspiração do grupo, apesar de isso tudo ser muito triste porque a Cavalgada das Valquírias é primorosa e o coro nupcial de Wagner segue sendo entoado nas igrejas em todo casamento. Mas a realidade é que Wagner se tornou uma representação musical de movimentos nazistas e neonazistas, e o Grupo  Wagner resgata esse legado. No Grupo Wagner, Prigozhin é a voz pública do grupo, enquanto Utkin é o comandante e mentor intelectual por trás. Utkin não faz aparições públicas desde 2016, embora não existam questionamentos de que ele continua vivo. A questão é que o Grupo Wagner é um grupo mercenário de origem neonazista e com referências neonazistas, e isso continua sendo verdade independente do lado que eles assumirem na Guerra da Ucrânia.

2) Prigozhin, em especial, era muito próximo de Putin, e enriqueceu prestando serviços culinários ao Kremlin. Foi chamado por muito tempo de “o chef de Putin”, porque abastecia com refeições de alto padrão a Presidência da República. Com o tempo, foi enriquecendo e conseguindo novos contratos com o governo. 

3) O Grupo Wagner surgiu em 2014 como milícia mercenária “independente” oriunda das Slavonic Corps, um destacamento especial que fazia parte das Forças Armadas russas. Sua primeira missão foi impedir a derrubada de Bashar Al-Assad na Síria, e o grupo foi essencial para conter os avanços tanto do Daesh quanto dos demais grupos rebeldes na região. Na prática, o Grupo Wagner sempre foi uma forma de fazer valer os interesses russos sem envolvimento direto do estado russo. Além dos contratos com o governo russo, o grupo começou a fazer dinheiro com metais preciosos em países africanos.

Como isso funcionava? Em geral, um dos grupos envolvidos em um conflito (sempre o que correspondia aos interesses russos no conflito) contratava o Grupo Wagner e pagava com ouro, diamantes e afins. Esses recursos bancavam outras operações do grupo. República centro Africana, Mali, Sudão, Líbia, todas as guerras do tipo na África nos últimos anos tiveram participação de mercenários do Grupo Wagner.

4) Quais eram as “outras operações”? As estratégicas para os interesses geopolíticos russos. Em especial a da Síria, que foi a origem do movimento e onde surgiu a dinâmica “vamos arrecadar dinheiro com serviços mercenários na África para investirmos em guerras estratégicas para os russos”, na Geórgia – em especial na Abkhazia – e, desde 2014, no Leste da Ucrânia. 

Era uma lógica muito refinada: o grupo mercenário arrecadava recursos na África e investia esses recursos nas guerras importantes para a Rússia. Em troca, Prigozhin recebia dinheiro russo em contratos com o governo de Putin. O detalhe é que essas operações eram quase sempre em dinheiro vivo, para não aparecerem no sistema financeiro internacional. Tanto que uma das primeiras coisas que Putin mandou fazer quando o Grupo Wagner se rebelou foi apreender uma van com dinheiro vivo que seria usado para pagar os contratados do grupo.

5) Com a invasão da Ucrânia em 2022 e o fracasso da “tomada de Kiev em 3 dias”, o Grupo Wagner foi chamado. O Grupo Wagner tinha expertise em guerra de atrito por causa de sua atuação na Síria e nos países africanos (e também em cometer atrocidades e crimes de guerra, afinal mercenários não seguem regras). Quando o avanço estacionou, foram essenciais para manter áreas estratégicas para os interesses russos, impedindo o avanço ucraniano sobre as áreas que estavam sob domínio russo desde 2014, por exemplo.

6) Depois do contra-ataque de setembro-novembro, em que a  Ucrânia recuperou áreas nos oblasts de Kharkiv e Kherson, a importância do Wagner foi reafirmada: nas áreas onde eles estavam (Donetsk e Luhansk), os avanços ucranianos foram meramente pontuais, quando não inexistentes. A partir daí, o Grupo Wagner parecia ter mais “Operational Tempo” que o próprio exército russo, segurando as ações ucranianas enquanto os soldados mobilizados não chegavam. E ainda conseguiram tomar a iniciativa em lugares como Bakhmut. 

7) Bakhmut era um compromisso que Prigozhin tinha assumido junto a Putin, era um local que eles tinham se comprometido a tomar no início da guerra. A ideia era usar Bakhmut junto com Lyman e Izyum como locais para um ataque em três frentes contra Sloviansk e Kramatorsk, as principais cidades do Oblast de Donetsk que seguiam (e seguem) sob controle da Ucrânia depois da conquista pelos russos de Severodonetsk e Lysychansk, no início de julho de 2022. Mesmo com a perda de Izyum e Lyman entre setembro e outubro de 2022, o Grupo Wagner permaneceu com esse compromisso, meio que numa pegada “nossa parte estamos fazendo”.

8) A Batalha por Bakhmut não tem números confiáveis, mas certamente foi a batalha com mais baixas em território europeu desde a 2a Guerra Mundial. Grande parte deles eram Wagner. E isso porque, no contexto da mobilização, Putin abriu os presídios para Prigozhin recrutar tropas. De setembro de 2022 a fevereiro de 2023, milhares de presidiários foram recrutados em contratos “se você sobreviver a seis meses de guerra você está livre”. As informações dão conta de que a grande maioria desses recrutas presidiários morreu na linha de frente da guerra, boa parte deles em Bakhmut.

9) De novo, os números não são confiáveis. Mas Prigozhin diz que perdeu 15 mil homens na conquista de Bakhmut (eles terminaram de tomar o centro da cidade no final de abril). E aí está a primeira encrenca: Prigozhin acusa o Ministério da Defesa russo de usar o Wagner como bucha de canhão para diminuir perdas nas tropas regulares russas (que foram muito maiores que o esperado). Um levantamento feito pela BBC corrobora a reclamação feita por Prigozhin

10) Essa reclamação foi ganhando espaço com o tempo, especialmente após Prigozhin ser o responsável pelo único ganho real de território dos russos em quase um ano ao conquistar Bakhmut (antes disso, a última conquista russa tinha sido Severodonetsk-Lysychansk, em julho de 2022). Mas foi uma vitória de pirro: a Ucrânia já cercando as bordas e tomando partes da cidade após a saída do Grupo Wagner. E já estava fazendo isso antes mesmo da rebelião desse fim de semana.

11) E as rusgas do Grupo Wagner com o Ministério da Defesa russo tem outros fatores: para Prigozhin, o Wagner não tinha os mesmos armamentos das forças regulares russas, o apoio aéreo que os russos tinham se comprometido a oferecer às vezes falhavam e, para ele, a estratégia de Sergei Shoigu e Valery Gerasimov (Ministro da Defesa e Comandante das Forças Armadas russas) era horrível e não levaria a nenhuma conquista de território. Nisso, ele tinha muito apoio dos “milibloggers” russos, que reclamaram várias vezes durante o último ano que o ataque aos ucranianos precisava ser mais incisivo, apelando até mesmo para o uso de armas nucleares. 

Uma coisa precisa ficar clara: Putin, apesar de ter invadido a Ucrânia, é claramente menos extremista que Prigozhin. 

12) Por outro lado, o Exército regular russo começou a ter reservas em relação ao Wagner por um motivo simples: um recruta do Wagner (exceto os prisioneiros) em geral ganhava muito mais que um recruta do Exército russo, coisa de 210 mil rublos por mês (cerca de R$ 12 mil, na cotação de hoje)  contra 40 mil rublos por mês de um membro das tropas regulares (cerca de R$ 2300, na cotação de hoje).

13) O Ministério da Defesa russo quis resolver as coisas da maneira mais russa possível: “ok vamos parar com os disfarces, a partir de 01 de julho o Wagner vai fazer parte das tropas regulares russas, vai ser só mais um conjunto de batalhões”

Obviamente Prigozhin não aceitou.

Prigozhin chegou a entregar uma carta no Kremlin impondo suas condições (autonomia total de salários, gestão e na definição de estratégias, apoio financeiro e suporte perene de armamentos, entre outras coisas). Shoigu e Gerasimov ignoraram completamente.

14) A partir daí, Prigozhin começou a fazer críticas cada vez mais fortes ao Ministério da Defesa russo. A ponto de dizer que a motivação para a guerra era uma farsa e que os russos estavam manipulando o número de soldados mortos – e matando soldados à toa. Chegou a dizer que existia um “cemitério secreto” em Rostov com mais de dois mil soldados mortos. 

Até que na sexta-feira, 23 de junho, Prigozhin disse que os russos atacaram deliberadamente um acampamento Wagner. O vídeo é ruim e pode ter sido manipulado, mas, independente disso, serviu de motivo para o Wagner voltar todas as suas forças contra o Ministério da Defesa russo. E depois contra Putin, que obviamente apoiou os generais do Ministério da Defesa.

15) Nisso, o Wagner (que é um grupo mercenário que tem mais mentalidade que parece mais a de uma milícia que a de um Exército regular) agiu rapidamente e entrou em Rostov-no-Don, sede do comando militar russo do Sul. As imagens mostram que a população aceitou bem, com exceções. Aceitou tão bem que, depois do acordo, Prigozhin saiu celebrado da sede do comando militar, como se fosse uma celebridade.

O Grupo Wagner chegou em Lipetsk, inclusive, cidade que fica a menos de seis horas de Moscou. Derrubou ao menos um helicóptero russo, matando o piloto. Estimativas dão de 13 a 20 militares russos mortos no levante. 

Enquanto isso, os russos se mobilizaram para impedir a chegada do Wagner a Moscou. O Exército de Ramzam Kadyrov, líder checheno fiel a Putin, prometeu interceptar o Grupo Wagner no meio do caminho “a qualquer custo”. Isso acabou virando piada porque Kadyrov e os chechenos ficaram presos em congestionamentos nas estradas e não conseguiram passar nem perto das tropas do Grupo Wagner.

16) Então, surpreendentemente, rolou uma negociação entre oPrigozhin e Putin, intermediada pelo Lukashenko, presidente da Bielorrússia, e o Grupo Wagner decidiu suspender seu ataque a Moscou e abaixar as armas, em troca de anistia. Oficialmente, “para evitar derramamento de sangue”.

A RIA Novosti divulgou imagens de Prigozhin saindo do quartel general do comando sul do Exército russo em Rostov numa SUV. E soltou informações dizendo que o acordo envolve

– Prigozhin vai se abrigar na Bielorrússia, totalmente sem acusações

– Anistia aos membros do Grupo Wagner que participaram do motim (cerca de dez mil pessoas, de acordo com as primeiras estimativas)

– Chance dos recrutas do Grupo Wagner que não participaram do motim aderirem ao Exército russo.

Enquanto isso, ucranianos retomaram ataques em áreas enfraquecidas pela ausência do Grupo Wagner.

É muito difícil as coisas voltarem a ser como eram na Rússia depois desse levante, que certamente foi a maior ameaça ao governo Putin desde quando ele assumiu o poder, em 1999. Da parte do Grupo Wagner, a anistia é uma boa forma de sair de cena sem ter que se submeter ao governo russo, mas obviamente a relação entre as partes fica estremecida, inclusive em cenários envolvendo outros países. 

Da parte da Rússia, fica a percepção de que a aceitação de Putin (e da própria guerra nos termos atuais) não é tão alta quanto o governo russo faz parecer, especialmente pela recepção calorosa que o Grupo Wagner teve entre a população. Nesse cenário, outros levantes passam a ser menos improváveis, e a dinâmica da guerra, que já parecia precária, tende a se deteriorar. Até porque parece óbvio que os russos não contarão mais com a colaboração do Grupo Wagner na linha de frente.

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Comentários

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Paulo

25/06/2023 - 19h14

Não é crível que o comandante do GW acredite que terá imunidades…E ainda se refugiando na Bielorrússia…


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