Na Argentina, direita reprime revolta popular

milhares de pessoas tomam a principal avenida da capital argentina. (Foto reprodução)

Bruno Falci, de Buenos Aires, para O Cafezinho

Governador de Jujuy usa de violência e prisões contra os povos originários para aprovar reformas. No centro do conflito, a luta pela terra e o lítio

Gerardo Morales, governador da província de Jujuy e líder da União Cívica Radical, partido da oposição ao governo federal do presidente Alberto Fernandez e da vice-presidenta Cristina Kirchner, busca desde 22 de maio impor, por meio de uma convenção constituinte dominada por seu campo, uma reforma autoritária da constituição de uma das províncias mais desiguais do norte do país. Numa região mineira que atrai anualmente milhares de turistas, a direita dominou durante vários anos a província como um reduto com o apoio de grandes concentrações industriais, agrícolas (fumo, açúcar) e empresariais. Essa repressão indica um prognóstico do que pode acontecer com o país caso a direita vença os peronistas de Cristina Kirchner nas eleições de outubro.

Em Buenos Aires, mais de 30 organizações sindicais e sociais mobilizaram milhares de pessoas que compareceram nos últimos dois dias, em grandes protestos na avenida 9 de Julio, para dar apoio ao povo de Jujuy e pedir a renúncia do governador Morales. Já o presidente Alberto Fernandez, exigiu que “cesse imediatamente a repressão” em Jujuy, julgando Morales “o único responsável” pela situação, e denunciando uma constituição provincial “que não respeita a Constituição nacional”.

Segue o fio do twitter para ver os vídeos do conflito:

Cristina Kirchner, presidenta duas vezes e atual vice-presidenta, líder dos peronistas que governam a Argentina, disse que Gerardo Morales “deve parar com a loucura repressiva” e que “o que está acontecendo na província é inteiramente responsabilidade dele” e afirma que “a violência repressora está em seu DNA e quando funcionário do governo federal (da direita) em 2001, declarou Estado de Sitio e foi responsável pela morte de 38 argentinos”.

O juramento desta reforma constitucional, aprovada às pressas em três semanas, e que Morales tentou, há alguns dias, voltar a alterar como se o texto constitucional dependesse apenas da sua vontade, provocou fortes protestos. A resposta foi uma repressão sanguinária. Durante quatro horas a cidade esteve envolvida em tumultos, e no final do dia havia ao menos 170 feridos e 69 pessoas presas, várias detidas na manifestação e outras em subsequentes incursões policiais pelos bairros das cidades da província de Jujuy. A mensagem disciplinar dessas operações, nas quais foram utilizados veículos não identificados, foi reforçada ontem à noite com a ordem da Justiça Federal para desalojar os bloqueios nas cidades de Purmamarca, Libertador (Ledesma) e San Pedro.

Uma onda de repudio se desencadeou após o ocorrido. Em comunicado na terça-feira (20-06) a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) disse “observar com preocupação as ações empreendidas para dispersar as manifestações na província de Jujuy, na Argentina”. A CIDH pediu “o respeito ao direito à liberdade de expressão, as normas interamericanas sobre o uso da força e a condução de um processo de diálogo efetivo, inclusivo e intercultural, no qual sejam respeitados os direitos dos sindicatos e dos povos indígenas”.

Repressão e violência em Jujuy, Argentina. (Foto Reprodução)

A rede nacional do H.I.J.O.S. (Hijos e Hijas por la Identidad y la Justicia Contra el Silencio) denunciou que entre os detidos durante a repressão dos protestos que o governador Gerardo Morales realizou na capital de Jujuy, e que causaram um grave ferimento, estão quatro referentes da regional provincial: María Eva Arroyo e sua filha Ana Uro, Carolina Luna e Nestor Mendoza. Sabe-se que eles foram transferidos para a prisão local e que Mendoza foi espancado, embora seus parentes e colegas de organizações de direitos humanos que foram à prisão não pudessem vê-los.

Uma ofensiva em que Natalia Morales e Lucho Aguilar, líderes nacionais do PTS (Partido de los Trabajadores Socialistas), foram presos junto com muitos manifestantes. Em um vídeo postado nas redes, Natalia Morales explica: “Eles nos reprimiram com balas de borracha, gás lacrimogêneo, nos arrastaram e aqui estamos nós com várias outras mulheres e um jornalista. O que aconteceu com Purmamarca é brutal, a informação deve ser divulgada, há muitas pessoas presas, desaparecidas ou feridas”. Uma repressão que não acalmou a mobilização, que continua com bloqueios de estradas em muitas cidades da província.

Jujuy, situada  no noroeste remoto da Argentina, é caracterizada pelas colinas e formações rochosas impressionantes de Quebrada de Humahuaca. Esse vale e suas aldeias indígenas quechua ficam ao norte da capital da província, San Salvador de Jujuy, onde grandes conflitos estão acontecendo.

Esse território, valorizado em nível mundial por seus valores históricos, culturais e ambientais, foi cenário, neste sábado (17-06), de uma repressão brutal que se abateu sobre os trabalhadores mobilizados contra a autoritária reforma constitucional que o governador da província quer impor. Morales estreou sua nova Constituição com a província incendiada.  Sindicatos estatais e educacionais, movimentos sociais e povos indígenas rejeitaram a reforma nas ruas de San Salvador de Jujuy, situada a 1.500 km de Buenos Aires, com a qual o governador limitou o direito de protesto e que é acusado de preparar o terreno para um avanço no negócio do lítio sem perguntas ou objeções com a mudança sobre a questão da propriedade das terras dos povos originários.

repressão em Jujuy. (Foto reprodução)

Embora a reforma não mencione a palavra “lítio”, especialistas asseguram que a exploração do território para a extração do mineral é o principal motivo que leva o governo de Jujuy a modificar a constituição provincial. As comunidades nativas de Jujuy são as principais protagonistas dos bloqueios de estradas em San Pedro, Abra Pampa e Purmamarca, como parte de uma luta que sacode a província gritando “Aumento de salários, abaixo reforma”.  Há anos, elas enfrentam o avanço dos negócios de grandes multinacionais em seus territórios.

A maioria das economias avançadas está ativamente envolvida na tentativa de garantir novas fontes de lítio, um elemento-chave na transição da economia mundial de combustíveis fósseis para energia renovável. Este metal é fundamental para a adoção em massa de veículos elétricos (EVs), unidades de armazenamento de energia que são essenciais para redes elétricas e baterias para laptops e telefones celulares. Isso aumenta a importância dos países do “Triângulo do Lítio” (Argentina, Bolívia e Chile), que detêm a maior parte dos estimados 60% das reservas mundiais de lítio da América Latina. Existe o risco de que não se envolver no Triângulo do Lítio no século 21 seja como ficar de fora do desenvolvimento do petróleo no Oriente Médio no século 20. A equação é simples: acesso a fontes de energia é igual a poder.

A reforma de Morales é um importante passo na entrega desses recursos ao capital internacional. Ao mesmo tempo, criminaliza o direito de protesto com o qual comunidades historicamente lutaram em defesa de seus territórios, contra a contaminação de suas terras, ar e água. Morales quer consumar seus planos de entrega e ajuste por meio da reforma, sem ter respeitado o direito das comunidades de serem consultadas.

A nova constituição provincial -a Argentina é um estado federal- é notavelmente rejeitada pelos representantes das comunidades indígenas locais, que consideram que enfraquece seus direitos sobre suas terras tradicionais e seus recursos naturais, em uma província rural, turística, mas também rica em lítio. Esse conjunto de fatores faz desse conflito um embate entre os povos originários da região e as ambições de corporações internacionais.

Primeiro dia de Marcha em Buenos Aires em apoio a Jujuy. (Foto reprodução)
Bruno Falci:
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