Mangabeira Unger e a lição de Espinoza

Foto: Reprodução Estadão

Em entrevista à Folha, o filósofo Mangabeira Unger mais uma vez incorre no erro denunciado por seu colega, Baruch Espinoza, logo na abertura de seu Tratado Político:

“(…) entre todas as ciências que têm uma aplicação, é a política o campo em que a teoria passa por diferir mais da prática, e não há homens que se pense menos próprios para governar o Estado do que os teóricos, quer dizer, os filósofos.”

Algumas formulações de Unger parecem bonitas, mas é extremamente difícil detectar nelas uma conexão objetiva, prática, com os problemas reais vividos pelos brasileiros. Ademais, ele parece mais preocupado em adequar a análise às suas teses, do que atualizar suas teses à luz da realidade concreta.

Façamo um “react” a alguns trechos:

Mangabeira: “(…) o presidente parece morar no passado, encarando a tarefa atual como continuação dos mandatos anteriores. Está cercado por auxiliares que não dizem “não” a ele, o que é perigoso porque a tarefa agora é muito diferente da tarefa anterior [os dois primeiros mandatos] (…) A desqualificação produtiva do país se aprofundou. Caminharíamos rapidamente para uma grande crise econômica se a situação não fosse atenuada pela riqueza em recursos naturais. Agricultura, pecuária e mineração pagam as contas do consumo urbano e, para o bem e para o mal, evitam que enfrentemos nossos problemas estruturais.”

Unger comete alguns erros de lógica e análise nessas afirmações.

O Brasil se consolidou como um dos maiores exportadores mundiais de minérios, produtores agropecuários e petróleo. Isso é ótimo, mas teve uma consequência, que foi drenar os escassos capitais produtivos nacionais para esses setores, intensificando um processo de desindustrialização que, por sua vez, é uma tendência comum a quase todos os países ocidentais.

Tratar Lula como autor de uma tese acadêmica equivocada, e não uma liderança exposta aos terremotos das crises políticas recentes, que lhe valeram inclusive quase 600 dias de uma prisão injusta, é um erro de análise, além de uma injustiça.

Por que Lula foi preso? Não teria sido justamente porque seus governos, tanto aqueles presididos por ele como por sua aliada Dima Rousseff, tentaram levar adiante um ambicioso projeto de reindustrialização nacional, centrado no setor energético? A Lava Jato não visou justamente interromper o processo de qualificação produtiva do país, iniciado pelo único setor econômico onde o governo tinha influência determinante, o de óleo e gás?

Unger ignora a correlação entre a nossa enorme riqueza natural e a tendência fortíssima do capital nacional em se concentrar nos setores em que o país é mais competitivo, num cenário de disputa cada vez mais acirrada no mercado internacional.

O filósofo, sempre tão cioso de sua independência em relação ao senso comum, repete clichês tolos sobre a nossa agropecuária, caracterizada pelo uso intenso de ciência, e que não deixa nada a desejar, em termos de agregação de valor e sofisticação, a alguns tipos de manufatura.

Temos um problema de desindustrialização, mas é preciso cuidado para não transformar essa constatação num comentário superficial, ancorado numa visão algo mítica sobre o papel da manufatura. As coisas mudaram um bocado nas últimas décadas. Algumas indústrias hoje oferecem muito pouco valor agregado, ao passo que diversos setores agropecuários foram obrigados a se qualificar profundamente para se tornarem competitivos.

Além disso, ao falar que “agricultura, pecuária e mineração pagam as contas do consumo urbano”, Unger parece mais preso à sua tese do que à realidade, pois o saldo comercial do país nunca foi tão elevado. Claro que isso se deve aos bons preços das commodities, mas Unger deveria se lembrar que os produtos industriais também tem preços, e esses nem sempre são os melhores.

Vamos a outros trechos.

Mangabeira: “O Brasil é representativo da situação da maioria dos grandes países populosos. Temos uma maioria pobre – se não pobre absolutamente, pobre relativamente. Mas essa maioria, em vez de ter um horizonte proletário, como o marxismo descreveu, tem um horizonte pequeno-burguês. Aspira a uma modesta prosperidade e à independência.

Por falta de opções mais acessíveis, acaba se identificando com essa aspiração do emergente: um pequeno lote de terra, um comércio. Sem escala, sem tecnologia, dependente da autoexploração (são pessoas que trabalham intensamente) e do financiamento familiar.

É aí que Bolsonaro garantia o núcleo duro de sua base de apoio. A contrapartida moral a essas opções econômicas limitadas é o individualismo, o materialismo, o consumismo, articulados de forma mais explícita pelo movimento evangélico. É uma espécie de liberalismo para as massas, que diverge do que foi a característica predominante da nossa cultura social. Essa cultura costumava combinar nas mesmas relações sociais a troca, a prepotência e o afeto. Poderia se descrever como a sentimentalização das trocas desiguais.

Esse movimento dissolve esse amálgama, atribuindo a troca ao mercado, o poder à política, e a afeição à família. Essa tem sido uma forma como as sociedades modernas se libertam. Ao se libertarem, tornam-se frias, e o Brasil não quer isso, quer encontrar um jeito de ser livre e caloroso ao mesmo tempo.

É esta a situação: nós temos essa nova base dos emergentes. Objetivamente, não são uma pequena burguesia, a grande maioria deles são pobres. Mas, subjetivamente, eles já assimilaram essa cultura da iniciativa.

E o governo Lula continua a tratar o Brasil como se fosse apenas um país de pobres, precisando de transferências de ajuda para atenuar a miséria, mas o Brasil agora é muito mais do que isso. Mesmo quando pobre, os brasileiros querem ser abordados como agentes a empoderar, não só como beneficiários a cooptar.

A grande tarefa dos progressistas seria abordar essa nova maioria popular e lhe oferecer alternativas. Na economia, envolvê-la numa nova dinâmica de produtividade. Além disso, multiplicar formas de ação coletiva para tornar esse movimento mais magnânimo e solidário, sem abandoná-los ao egoísmo familiar materialista. Essa é uma visão geral da situação.”

Acompanho sempre as entrevistas de Mangabeira e já li alguns de seus livros, e acredito entender um pouco o seu pensamento. Ele atribuiu o sucesso de Bolsonaro a essa ideologia fortemente individualista e liberal de setores da classe média brasileira. Esses não teriam um “horizonte proletário”, mas aspirações pequeno-burguesas, como “modesta prosperidade” e “independência”, ou “um pequeno lote de terra, um comércio”.

Para conquistar esses setores, muito influentes politicamente no conjunto da população (daí o sucesso de Bolsonaro), o governo Lula deveria abordá-los como “agentes a empoderar, não só como beneficiários a cooptar”.

O diagnóstico de Mangabeira tem pontos corretos, mas identificar a febre numa pessoa é relativamente fácil. Basta ver se ela está quente. O complicado é curá-la! Ou antes, o complicado é entender porque ela está com febre.

É natural que o povo não tenha “horizonte proletário”, visto que os empregos industriais – e não só no Brasil, ou só no ocidente, mas como uma consequência da robotização – vem desaparecendo. E o desejo por independência financeira, creio eu, é uma aspiração universal de todos.

Mangabeira defende então que “a grande tarefa dos progressistas seria abordar essa nova maioria popular e lhe oferecer alternativas. Na economia, envolvê-la numa nova dinâmica de produtividade. Além disso, multiplicar formas de ação coletiva para tornar esse movimento mais magnânimo e solidário, sem abandoná-los ao egoísmo familiar materialista”.

Francamente, o filósofo demonstra uma visão ao mesmo romântica e esquemática tanto da “tarefa dos progressistas” como do que deseja a “maioria popular”

Romântica porque recai no messianismo platônico de que existe uma suposta vanguarda “progressista” capaz de saber o que o povo quer. Esse tese já foi rechaçada há muito tempo. O que deveria existir é um conjunto de boas leis, uma burocracia íntegra e motivada, e uma maioria popular com educação suficiente para lhe dar autoestima necessária para votar melhor e reivindicar com mais energia.

Esquemática porque se prende a fórmulas prontas, muitas vezes vazias, ou puramente retóricas, que ignoram o caráter muitas vezes orgânico, instintivo e moralmente superior da cultura popular.

Em outro trechos, Mangabeira comete o erro de transformar seus próprios pensamentos, outrora originais, em frases de efeito.

Mangabeira: “Precisamos de responsabilidade fiscal não pela razão que se imagina, mas pela razão oposta. A afirmação da soberania nacional da rebeldia é mais importante do que o manejo contracíclico da economia. Na história, a rebeldia nem sempre é premiada, mas a obediência, invariavelmente, é castigada.”

Esse tipo de retórica é sempre bonito quando a lemos uma primeira vez, mas perde a força quando é repetida, ou quando se tenta transformá-la numa espécie de máxima filosófica. A filosofia política real que guia as lideranças e as massas é sempre infinitamente mais dialética, complexa e superior a qualquer frase de efeito ou lugar comum. O Japão foi o povo mais “obediente” possível no pós-guerra e se tornou um campeão econômico, um dos países mais ricos e menos desiguais do mundo. O segredo dos japoneses, naturalmente, não foi a obediência, mas a disciplina.

Mais trechos da entrevista:

Mangabeira: “Temos tido no Brasil uma combinação de três elementos. O primeiro é o financismo fiscalista. No Brasil, quem malogra como produtor pode continuar a prosperar como rentista, e o governo flerta com o mercado financeiro, provoca, depois acomoda.

O segundo elemento é o pobrismo. Nesse contexto, o que resta é dourar a pílula do modelo econômico com esse discurso açucarado das compensações [para os mais pobres], que não conseguiu resolver os problemas. Bolsonaro aprofundou o rentismo financeiro e repetiu o pobrismo que vinha do Fernando Henrique e do Lula, dobrando a aposta.”

Vamos concordar com o primeiro ponto, mas discordar do segundo. Naturalmente que as “compensações”, ou seja, o Bolsa Família, não resolveram o problema social brasileiro. Mas esse nunca foi o objetivo. O objetivo era tirar milhões de famílias da situação de miséria, e essa meta foi cumprida. Mas aí volto ao início, onde aponto a injustiça de Mangabeira em ignorar que os governos petistas jamais se limitaram a isso. Havia projetos audaciosos de desenvolvimento. Alguns malograram, por erro de formulação, mas isso faz parte, e não se pode criminalizar a política. Governos aprendem do mesmo jeito que a natureza, por erros, acertos e seleção natural. Mas ao final, as coisas estavam se ajeitando, e o Brasil tinha grandes projetos de desenvolvimento em curso, com ótima chance de serem bem sucedidos, até que veio a maior operação de lawfare do mundo, que destruiu tudo.

Mangabeira: “O terceiro elemento nesse consenso desastroso é o deslocamento dos problemas reais para o teatro do simbólico por meio da política identitária e das guerras culturais. É algo que separa os atributos das minorias das questões de classe e, portanto, de estrutura e desperdiça a grande vantagem do Brasil, que é esse sincretismo, essa mistura de tudo com tudo.

Introduz entre nós algo alheio ao Brasil, que são esses contrastes cristalinos – entre preto e branco, entre mulher e homem. Não precisamos adotar a engenharia verbal e a política identitária dos americanos.”

Esse trecho traz uma leitura já obsoleta – e equivocada – da questão identitária. Em primeiro lugar, não se trata de simbolismo. O racismo brasileiro é real e profundo, e constitui um entrave terrível para o nosso desenvolvimento. A cada criança negra que recebe pouca instrução, cai a chance de termos um cientista que poderia ajudar a emancipar tecnologicamente o país. As questões de classe não podem ser separadas do resto dos problemas humanos. É triste ver Mangabeira tropeçando num pseudo-marxismo tão vulgar. Por fim, dá gás a teorias de conspiração que atribui às políticas de identidade do Brasil aos “americanos”. As dinâmicas que existem nos EUA são muitas vezes parecidas as que existem no Brasil. Lá houve escravidão do negro. Aqui também houve. Lá existe racismo. Aqui também existe. As mulheres americanas lutam contra o machismo. As brasileira também. Essas lutas culturais convergem, porque é da natureza humana, e sua maior qualidade, assimilar o que vem de fora.

O próprio Mangabeira não é professor em Harvard? Quer dizer que ele, e só ele, pode usufruir do melhor da cultura americana?

Além disso, falta lógica à crítica de Mangabeira. Se o objetivo é o desenvolvimento econômico e tecnológico do país, e o despertar da consciência popular do sentido de soberania, os Estados Unidos oferecem um excelente modelo.

O fim da entrevista é particularmente melancólico:

Mangabeira: “Vou começar a procurar também as lideranças de direita. Estive com o MBL [Movimento Brasil Livre] e depois, quando voltar ao Brasil, vou a Brasília para conversar com outros políticos. Quero falar com todos porque essa taxonomia de direita e esquerda no Brasil perdeu o seu sentido. O PT é esquerda? O PT é o açúcar.”

É uma fala que remete à profunda desorientação política e ideológica do cirismo, e que foi a razão direita do fracasso eleitoral do movimento. A troco de que, à luz de tudo que Mangabeira defende, ele termina uma entrevista enaltecendo um movimento politicamente tão desonesto, ultraliberal, golpista, como o MBL, e atacando o maior partido de esquerda do país? E qual a crítica que faz? Que o PT “é açúcar”… Ora, isso parece uma fala de alguém, como Ciro Gomes, ainda contaminado de ressentimento. Quer dizer que o PT de Lula, que acaba de lançar um programa para abrir 1 milhão de vagas de ensino integral em todo país é “açúcar”. Quer dizer que o PT de Lula que indicou Dilma Rousseff para a presidência do banco dos Brics, e que está tentando transformar essa instituição numa ferramenta efetiva de combate à hegemonia do dólar, é “açúcar”?

Enfim, Mangabeira já teve dias melhores…

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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