Com exclusividade, Jullyene Lins, ex-esposa de Arthur Lira, afirma pela primeira vez ter sido vítima de violência sexual em 2006.
A Agência Pública publicou nesta quarta-feira (21) uma reportagem especial sobre o caso no qual o então presidente da Câmara dos Deputados é acusado de estuprar e agredir a ex-mulher em 2006 e, mais tarde, em 2015, foi absolvido pelo Supremo Tribunal Federal.
O jornal investigou o inquérito 81/2006, o processo judicial baseado na Lei Maria da Penha e o laudo do corpo de delito da suposta violência física e sexual que Jullyene afirma ter sofrido.
Essa é a primeira vez que Jullyene Lins conta que Arthur Lira teria a estuprado na noite de 5 de novembro de 2006.
Em nove partes, a reportagem narra em detalhes a noite do crime, a denúncia e os relatos das testemunhas, a situação de Lira e, por fim, relembra que esse não é um caso isolado, mas, sim, uma realidade para milhares de mulheres brasileiras vítimas de violência sexual.
O Cafezinho sintetizou e organizou em uma linha do tempo os fatos narrados pela Jullyene Lins ao veículo jornalístico Agência Pública, bem como os dados da apuração. O conteúdo na íntegra pode ser acessado aqui.
Aviso: as informações a seguir contém relatos da suposta violência sexual e podem causar desconforto e gatilho.
1996: o começo
Jullyene Lins conheceu Arthur Lira em 1996, em uma boate em Maceió, por meio de um amigo em comum. Ela, com 21 anos, diz ter se deslumbrado com a “vida de luxo” que o namorado a proporcionava, com 27 anos, em seu primeiro mandato de vereador na cidade. Logo foram morar juntos e, ao longo da relação, ela o via sempre como “muito ciumento e possessivo”. No entanto, nunca havia tido uma situação de agressão, até o momento do estupro em 2006.
2006: dez anos depois, os conflitos
Segundo ela, o ato sexual entre o casal acontecia somente quando Lira queria, “como em muitos casamentos” – qualquer ato não consentido pelas duas partes se configura como crime de abuso sexual, mas Jullyene não “entendia a situação como violência”. Além disso, o atual deputado controlava as roupas e atitudes da ex-esposa com gritos, falas machistas e degradatórias. Da mesma forma, ela ainda não via a relação como abusiva.
Abril de 2006: a separação
Entre brigas frequentes e períodos de crise desencadeados pelas atitudes de Arthur Lira, ela alega que o casal decidiu manter um casamento de fachada até o final das eleições de 2006, quando Lira foi eleito para o terceiro mandato na Assembleia Legislativa de Alagoas. Desde esse mês daquele ano, eles já haviam se separado.
A noite de 5 de novembro de 2006
De acordo com Jullyene, Arthur Lira descobriu que, seis meses após o término, ela passou a frequentar locais públicos, como bares, restaurantes e boates. No dia 5 de novembro de 2006, ele telefonou para a ex-esposa e disse que queria conversar pessoalmente no apartamento dela após saber que um amigo havia se interessado pela ex-mulher. “Quando eu abri a porta, foi um murro na cara”, diz.
Conforme o relato da vítima, o parlamentar a agrediu durante 40 minutos com “tapas, murros, chutes e puxado pelo cabelo”, enquanto a chamava de “rapariga” e “puta”. Em meio às agressões físicas e verbais, Lira a ameaçou de morte para ficar com os dois filhos do casal e ainda justificou que “era deputado e não passaria por corno” e que “ninguém iria desmoralizá-lo”. Em seguida, a forçou a ter relações sexuais não consentidas.
Os detalhes da reportagem citam as falas de Jullyene e do deputado na situação em que ele a violentou sexualmente. No dia, apenas os filhos e a babá do caçula, de 8 meses, estavam presentes na casa. A ex-sogra de Lira e o ex-cunhado foram informados pela funcionária por telefone e chegaram ao local, porém as agressões só cessaram quando um tio de Jullyene, já falecido, e o pai de Arthur Lira, Benedito de Lira, também político, chegaram.
Jullyene conta que foi à delegacia fazer um boletim de ocorrência contra o deputado assim que ele deixou o apartamento. Porém, segundo ela, o Instituto Médico Legal estava fechado, então só retornou para fazer o exame de corpo de delito no dia seguinte. As informações da reportagem detalham os laudos dos BOs e avaliações dos peritos.
18 de abril de 2007: o relato de Jullyene à Polícia Civil
Neste dia, Jullyene deu depoimento à Delegacia Especial de Defesa dos Direitos da Mulher. Na época, ela não havia denunciado o suposto estupro de Lira na noite de novembro.
Além do laudo de corpo de delito, outras quatro testemunhas deram depoimentos – as duas mulheres que trabalhavam no apartamento do casal, a mãe e o irmão de Jullyene.
No capítulo “Os registros do inquérito”, a Agência Pública expõe falas e depoimento das testemunhas presentes naquela noite. Uma das funcionárias do casal, a mãe e o irmão da vítima contam como foi a situação, o que fizeram e as atitudes que tomaram após a agressão.
16 de julho de 2007: novas denúncias
Oito meses após o suposto crime sexual, Jullyene Lins foi à 9ª Delegacia de Polícia Civil de Maceió para registrar um boletim de ocorrência, também contra Arthur Lira, dessa vez, por ameaça. A versão dela sobre a pressão que sofreu do parlamentar para desmentir o caso está descrita na reportagem, com trechos do documento.
16 de agosto de 2007: o inquérito de Lira
No mês seguinte, o inquérito policial que indiciou o deputado foi redigido. A delegada que presidiu o documento, Fabiana Leão Ferreira, entrevistada pela Pública, alega que tinha provas materiais “inequívocas” e que as falas das testemunhas eram “verossímeis com o fato”.
18 de dezembro de 2007: a medida protetiva
Em meados de dezembro do mesmo ano, a ex-mulher de Lira conseguiu no Tribunal de Justiça de Alagoas uma medida protetiva contra o deputado, que foi intimado pela Justiça diversas vezes, mas resistiu aos chamados.
1º de abril de 2008: a prisão
Diante dos relatos de Jullyene, o desembargador do caso, Orlando Monteiro Cavalcanti, decretou a prisão de Lira no dia 1º de abril de 2008 por “coação no curso do processo”.
O desembargador demonstrou indignação com a conduta de Arthur Lira no tribunal, que destratava os outros funcionários da Justiça e ainda tentou paralisar a ação, intimidando a ex-esposa para fazê-la desistir do caso.
“Mesmo porque, no nosso mister, no cumprimento do nosso dever funcional, nós, da Justiça, não aceitamos protérvias de ninguém, inclusive de deputado”, afirma o relator do inquérito.
15 de setembro de 2009: extinção do processo
Nesta data, a acusação prescreveu sem julgamento o depoimento de Jullyene alegando sofrer ameaças de Arthur Lira.
Abril de 2011: STF entra em jogo
O processo por crime qualificado na Lei Maria da Penha correu no Tribunal de Justiça de Alagoas até Lira ser eleito deputado federal em 2010. Em abril do ano seguinte o caso foi encaminhado ao STF pois “os parlamentares detentores de foro especial por prerrogativa de função, o chamado ‘foro privilegiado’ só podem ser processados pela Procuradoria-Geral da República (PGR) no STF”, indica a Pública.
9 de março de 2012: a denúncia, oferecida pela PGR
O procurador-geral da República, Roberto Gurgel, ofereceu denúncia contra o parlamentar em 9 de março de 2012.
Quase seis anos após o suposto crime, a PGR apresentou a denúncia, que só foi recebida em 5 de dezembro daquele ano. A votação terminou com cinco votos favoráveis e três contrários.
Em meio a pressão do deputado e medo frente ao “peixe grande”, fazendo referência a posição política de Lira e o suposto poder que o acompanha, algumas testemunhas não comentam sobre o caso ou voltaram atrás nos depoimentos, alegando esquecimento ou que assinaram o testemunho à Polícia Civil sem ler o documento. Isso fez com que a defesa do deputado aproveitasse dessas questões para favorecê-lo e, assim, alterar o rumo dos processos de Jullyene.
Em determinado momento, a própria vítima chegou a falar que era tudo mentira, mas, posteriormente, disse que o fez por ter sido ameaçada por Arthur Lira. Segundo a Pública, ela mesma teria pedido aos familiares que alterassem o depoimento dado há cinco anos atrás, em 2007.
10 de março de 2015: PGR volta atrás
Três anos depois, em 10 de março de 2015, o então procurador-geral, Rodrigo janot, mesmo não tendo descartado a suposta agressão, alterou o posicionamento do órgão e manifestou a favor da absolvição de Arthur Lira. Janot ainda sugeriu “possibilitar à instância ordinária a promoção da responsabilidade de Jullyene Lins pelo crime de denunciação caluniosa”.
Setembro de 2015: Lira inocentado
O julgamento de Arthur Lira ocorreu em setembro de 2015, quando ele já era influente no meio político e seguia em seu segundo mandato na Câmara dos Deputados. A Segunda Turma do STF absolveu o parlamentar por ausência de provas e alegaram que o crime prescreveu por “demora na apresentação da denúncia”.
Neste momento, as testemunhas de Jullyene haviam voltado atrás nos depoimentos e a esposa do advogado de defesa da ex-esposa de Lira foi nomeada no gabinete do parlamentar. Segundo ela, o político teria lhe dito após o ocorrido que “onde não há corpo, não há crime”, justificando a ameaça que disse ter sofrido por ele.
Jullyene ainda relata que foi coagida por pessoas envolvidas com Lira a desmentir os fatos narrados por ela, o que foi de fato o que ela fez. Em uma audiência requerida pela defesa do deputado em agosto de 2012, os advogados juntaram aos autos um “termo de renúncia à representação criminal”, assinado por Jullyene. No documento, ela justifica que denunciou o ex-marido por “estarem na época envolvidos em um conturbado processo de separação judicial”.
As tais mudanças no depoimento e os argumentos da defesa de Lira motivaram a absolvição do deputado, explica a Pública.
As agressões foram negadas e os laudos de corpo de delito da ex-companheira de Lira ainda foram questionados, bem como os relatos das testemunhas. Dessa forma, os advogados do parlamentar, além da audiência, solicitaram a extinção da ação.
A então procuradora-geral da República, Helenita Caiado de Acioli, contra-argumentou as ações da defesa de Arthur Lira, posicionando-se a favor do recebimento da denúncia pelo STF.
Durante todo o processo, Jullyene Lins foi questionada a todo momento pelas figuras responsáveis pela Justiça do caso. Por exemplo, o falecido relator do processo, ministro Teori Zavascki, afirmou que o crime de lesão corporal no âmbito da violência doméstica não foi comprovado. “A bem da verdade, não há prova a indicar que a vítima tivesse, de fato, sido agredida ou que o réu fosse o autor das lesões leves que a vítima apresentava no momento do exame perícia, porquanto, como se verifica das declarações da própria vítima, ela teria “inventado” as agressões narradas na denúncia por motivo de vingança”, informou ele, em seu voto em 2012.
21 de junho de 2023
Após 17 anos, é a primeira vez que Jullyene Lins fala publicamente sobre a violência sexual que sofreu de Arthur Lira.
Histórias que se repetem Brasil afora
Os ministros da Segunda Turma do STF falharam em não considerar que, em casos de violência doméstica, é comum que as vítimas voltem atrás nos seus depoimentos pelos mais diversos motivos, como relembrou o ex-ministro Marco Aurélio Mello, por exemplo.
Neste ponto, a reportagem da Pública destaca a situação que ocorre com milhares de mulheres em todo o Brasil todos os dias. Com argumentos e números de pesquisas, fica evidente que a agressão contra as mulheres é um fator alarmante no país, ainda que a Lei Maria da Penha seja uma das melhores do mundo.
Os resultados e porcentagens divulgados por diversos levantamentos e exposto na reportagem especial mostram que, infelizmente, Jullyene foi mais uma vítima das diversas brasileiras que passam por situações de abuso, agressão e desmoralização pelos seus parceiros.