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Itamar Vieira Junior, autor de Torto Arado, fala sobre preconceito e racismo da crítica

“A gente deseja que as pessoas sejam capazes de nos ler à partir da nossa perspectiva.” Publicado em 20/06/2023 – 06h07 Por José Eduardo Bernardes Brasil de Fato — Itamar Vieira Junior se tornou um dos autores mais lidos do país, após o lançamento de Torto Arado, em 2019. O livro vendeu mais de 700 […]

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“A gente deseja que as pessoas sejam capazes de nos ler à partir da nossa perspectiva.”

Publicado em 20/06/2023 – 06h07

Por José Eduardo Bernardes

Brasil de Fato — Itamar Vieira Junior se tornou um dos autores mais lidos do país, após o lançamento de Torto Arado, em 2019. O livro vendeu mais de 700 mil cópias e aproveitando o sucesso estrondoso na literatura, vai virar série para o streaming. A publicação faz parte de uma trilogia, que neste ano, ganhou seu segundo volume, com o lançamento de Salvar o Fogo, no último mês de abril.

No livro, mais uma vez Vieira Junior transporta o leitor para o Brasil real: a luta de classes, os conflitos familiares, a escassez que atinge grande parte da população e a relação entre sociedade e religião, mais especificamente, o poder da Igreja Católica sobre um pequeno povoado do interior da Bahia.

Mais do que apenas retratar e dar voz a um povo silenciado, Vieira Junior conta que esta também é parte de sua história. Nascido em Salvador, o escritor passou ainda por Pernambuco e pelo Maranhão em sua adolescência, vivenciando na pele as dificuldades do interior do Brasil.

Quando adulto se formou geógrafo na Universidade Federal da Bahia e se tornou funcionário público do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). Lá, viu de perto as agruras da luta pela terra no Brasil. “Tanto em Torto Arado quanto em Salvar o Fogo, esse meu olhar se volta para histórias que, para mim, eram muito familiares”, conta o autor.

“Estou pensando na minha perspectiva familiar mesmo, nos meus laços de parentesco, nas minhas origens, mas também estou pensando em tudo que eu vivi trabalhando com camponeses e camponesas ao longo do tempo. Então eu não diria que eu dou voz aos silenciados. Talvez eu estivesse mesmo entre eles, afinal, essa é minha origem também”.

Vieira Junior é o convidado desta semana no BDF Entrevista. Na conversa ele fala sobre o seu novo livro, mas também sobre outros tantos assuntos, como a importância da Reforma Agrária para garantir segurança alimentar dos brasileiros, racismo, o gosto precoce pela leitura e a maneira como recebe as críticas à sua obra – tema que ganhou as redes sociais nas últimas semanas.

“Acho que nenhuma crítica pode soar como um interdito, porque isso aí eu já sei o que é, e não é crítica, de fato, é preconceito de classe, é preconceito de raça. Porque se ela diz que você não deve mais escrever, ou deixa isso muito claro nas entrelinhas, é porque ela não reconhece os leitores, não reconhece o público, não reconhece os prêmios e quer criar um interdito para te tirar desse espaço”, explica o escritor.

Apesar de uma mudança drástica no perfil dos autores premiados nos últimos anos no Brasil, ainda há, segundo Vieira Junior, uma ideia que circula entre críticos literários e júris especializados, de que autores devem escrever suas obras como “o europeu escreve. Mas a nossa estética é diferente”, diz o escritor.

Além de Itamar Vieira Junior, o prêmio Jabuti – a mais importante honraria literária do país – reconheceu e premiou uma série de autores negros e que tratam de temas marginais nos últimos anos como Jeferson Tenório, Eliana Alves Cruz e Luiza Romão.

“A gente tem feito um movimento para pensar isso e pensar de uma maneira descolonial, vamos dizer assim, porque a gente deseja que as pessoas sejam capazes de nos ler – aí eu estou falando dos prêmios dos júris, dos críticos – à partir da nossa perspectiva. Eu acho que é aquilo que o Antônio Candido, que nem viveu esse tempo, já falava: que a pessoa seja capaz de ler o que se escreve a partir do contexto, do meio social onde aquilo é escrito. Ou seja, essas mudanças refletem a nossa sociedade”, completa o autor.

Confira a entrevista na íntegra:

Brasil de Fato: Itamar, você lançou neste ano teu novo livro, Salvar o Fogo. É mais um mergulho na luta de classes, nos desacordos familiares, nas chagas do catolicismo. Qual é o tamanho da importância de um autor já consagrado seguir falando sobre e dando voz a uma parcela da população que, costumeiramente, não tem voz?

Itamar Vieira Junior: É muito interessante pensar nisso, porque eu tenho uma formação na área das ciências humanas, eu sou geógrafo, e continuei meu percurso académico tentando entender, compreender o Brasil em profundidade. Mas a literatura sempre andou ali, junta comigo. A cada vez que eu escrevo, eu estou pensando em lançar o meu olhar, a minha perspectiva do que é essa história brasileira, o que é este país, que civilização tem seguido aqui, com todas as dores, com todas as as mazelas que ainda vivemos.

Isso, pra mim, é um ponto fundamental, porque quando eu me debruço sobre isso, eu estou fazendo esse exercício – não é uma investigação, é muito diferente, é um texto narrativo, é arte. E arte é, sobretudo, imaginação – para entender o mundo à minha volta, o Brasil, a mim mesmo, minhas origens, as pessoas que estão à minha volta e que, por fim, passam por coisas tão difíceis, às vezes sem entender quando tudo isso surgiu.

Tanto em Torto Arado quanto em Salvar o Fogo, esse meu olhar se volta para histórias que, para mim, eram muito familiares. Eu estou pensando na minha perspectiva familiar mesmo, nos meus laços de parentesco, nas minhas origens, mas também estou pensando em tudo que eu vivi trabalhando com camponeses e camponesas ao longo do tempo. Então eu não diria que eu dou voz aos silenciados. Talvez eu estivesse mesmo entre eles, afinal, essa é minha origem também.

E talvez eu fosse, ainda sou na verdade, embora pareça o contrário, porque eu estou em evidência, os livros foram publicados, tem um número muito expressivo de eleitores, eu sempre sou convidado a dar opinião, mas acho que ainda a minha voz ela é ecoa como um sopro diante de tudo, diante das instituições, diante de toda a opressão que ainda circunda nossas vidas.

Eu imagino que eu não estou dando voz. É que eu preciso escrever uma literatura que seja representativa do nosso país. O Brasil é um país imenso, com diversidade étnica e cultural imensa e que, durante muito tempo, as editoras, os críticos, os prêmios literários, estiveram restritos a um círculo muito privilegiado, de uma classe média branca, que sempre esteve neste espaço de privilégio, nesse espaço de poder. Então, eu acho que eu me somo a essas pessoas e vejo que nessas histórias, nessas vidas, há grandes narrativas.

Você fez questão de pontuar que faz ficção, mas acho que da tua ficção há muito de realidade, de verdade. Como é transportar isso sem ser invasivo com a vida dessas pessoas?

Eu acho que a literatura, como arte narrativa, carrega alguns pilares que são comuns a quem escreve. Eu percebi isso e defini para mim o que é importante, o que é relevante. Primeiro, é que a gente precisa aproximar a literatura para que ela chegue ao coração das pessoas, de uma maneira muito pertinente. Não quer dizer que a gente vá narrar apenas o que é realidade, o que é verdade, é o que está próximo da vida, da condição humana, próxima aos nossos sentimentos.

Acho que a literatura está apoiada em três pilares, Zé. O primeiro pilar é a nossa capacidade de observar o mundo à nossa volta, mas não uma observação despretensiosa como a gente passa ali o dedo no celular, para olhar o que está posto ali nas redes sociais, é uma observação muito acurada do mundo à sua volta, essa capacidade que nós temos de observar, de ouvir, de escutar, de não julgar muitas vezes. Isso é muito importante para quem escreve.

Eu acho que a memória é também outro pilar da arte narrativa, essa capacidade que nós temos de evocar nossas memórias. E quando eu falo memória é desde memórias mínimas, até as memórias transcendentes mesmo. Eu estou pensando numa personagem que precisa caminhar debaixo do sol, que está transpirando, que tem a luta, o labor do trabalho ali. Como é que o corpo se sente depois de tudo isso? Algumas pessoas podem não ter experimentado isso, é muito provável, mas muitas pessoas, a maior parte, experimentaram isso e sabem como é.

Então, quando eu vou descrever algum evento, alguma cena, algum sentimento das personagens, geralmente eu estou evocando a minha memória. O que eu sinto quando o corpo está fatigado de trabalho? O que eu penso quando eu estou triste, ou quando estou eufórico, ou quando eu tenho raiva? Tudo isso serve para também alimentar a ficção. E o terceiro pilar é a capacidade que todos nós, seres humanos, que escrevem ou não, temos de imaginar.

Você citou as premiações e como elas tiveram que se moldar também à uma nova geração de leitores e de escritores. Lembro que tivemos uma sequência de ganhadores do prêmio Jabuti, com você, Jeferson Tenório, agora Luiza Romão, uma série de escritores negros, falando sobre temas decentralizados, cada vez menos europeizados, falando sobre nós, contando sobre a nossa história. A que se deve essa mudança nas premiações, que até então são comandadas pelas mesmas pessoas?

É, eu acho que isso é uma pressão natural do meio. Natural, quando eu falo, não é espontânea, porque esse país vem mudando, nas últimas décadas, e a gente não tem falado sobre isso de uma maneira muito aberta, porque, de fato, falta muita coisa acontecer ainda, isso é só o começo. Eu não gosto nem de usar essa palavra, porque estou desprezando todos os que vieram antes e que, cada um à sua maneira, lutou para que fosse possível.

Mas esse país – eu vou me deter nos últimos 30 anos – tem passado por uma verdadeira revolução, quase que silenciosa. A gente ainda está escrevendo o decreto da abolição, eu sempre digo isso, que cada política pública que vem para a reparação, é um capítulo daquele decreto, que não foi escrito naquele momento. E um dos artigos mais importantes, eu acho que é a Lei de Cotas que abriu as universidades públicas para um contingente de pessoas que historicamente estiveram fora dela, que não tinham acesso pela desigualdade entre o ensino público e ensino privado, pelas desigualdades de classe e de raça.

Porque, classe média, a gente pensa em pessoas brancas e são elas que ainda podem por seus filhos na escola privada, que têm um ensino diferente, um ensino que, muitas vezes, está mais voltado – não vou nem dizer que é melhor ou pior – mas que está mais voltado para esses concursos, vestibulares e até o Enem. Então, a Lei de Cotas veio tentar mitigar um pouco essa desigualdade. De lá pra cá, já são 15 anos e a gente está colhendo os frutos disso, porque essas pessoas egressas da universidade, saem discutindo racismo, saem querendo conhecer a história do Brasil, demandam por leituras e não se sentem representadas pela literatura que estava aí.

Eu penso em uma geração como eu, Jefferson, a Eliana, acho que nenhum de nós talvez conseguiu acessar às cotas, porque o sistema de cotas veio pouco depois de eu me formar..

O Jefferson Tenório, sim…

O Jefferson, sim, mas eu já não consegui. A Eliana, que é de uma geração anterior, com certeza também não. A gente não acessou, mas está acompanhando tudo isso. Só porque a gente não participou, não quer dizer que a gente não faça parte de tudo isso. Acho que nunca se discutiu tanto racismo no Brasil como se discute hoje, nunca nos interessamos tanto por nossa história, inclusive para desmistificar coisas que estavam aí sacramentadas como verdades.

A gente tem feito um movimento para pensar isso e pensar de uma maneira decolonial, vamos dizer assim, porque a gente deseja que as pessoas sejam capazes de nos ler – aí eu estou falando dos prêmios dos júris, dos críticos – a partir da nossa perspectiva, que eu acho que é aquilo que o Antônio Candido, que nem viveu esse tempo, já falava: que a pessoa seja capaz de ler o que se escreve a partir do contexto, do meio social onde aquilo é escrito. Ou seja, essas mudanças refletem a nossa sociedade,

Voltando a falar sobre Salvar o Fogo, tanto esse livro como Torto Arado, são só os dois primeiros volumes de uma trilogia. Quando vem esse terceiro livro?

Bom, todo mundo está perguntando, quem leu quer ler a última parte. Eu digo, não tenham pressa, vai acontecer, porque tudo tem um tempo de maturação. A gente tem esse tempo… Ainda bem que a gente não escreve por encomenda, nem por demanda, a gente ainda escreve por vocação, por vontade, por paixão mesmo à literatura.

Mas vai chegar, penso que essa história vai chegar, não sei quando, mas vai chegar. Já chegaram os dois, está aí um bom caminho andado.

Aproveitando o gancho, a escrita é um exercício muitas vezes solitário, mas que nessa segunda etapa, após a publicação, o livro começa a ser compartilhado de diversas maneiras, releituras, críticas, enfim. Como é que você lida com as diferentes recepções da tua obra? As respostas, críticas e afins interferem na próxima obra que você vai fazer?

Com certeza não interferem. Eu acho que eu tenho muita convicção daquilo que eu faço, que eu realizo. Pode não ser bom, eu não posso julgar se é bom ou não, quem julga são os leitores e acho que eles são os melhores júris de uma obra literária. São os leitores que, de fato, dizem se ela tem relevância ou não. Mas não me afeta, não influi para mim, não é algo que vai mudar a minha maneira de imaginar o mundo, de pensar o mundo, de escrever. Eu acho que a minha escrita até pode mudar, mas em um processo muito consciente, ao longo do tempo, porque é natural, nós mudamos também, ao longo do tempo.

Eu gosto da metáfora do Heráclito de que ninguém mergulha no mesmo rio duas vezes. De fato, nós como seres humanos, ou como devires humanos, como queiram chamar a ideia de devir, de que nós estamos em permanente mutação, pode ser que a escrita mude com o tempo, mais uma mudança natural, não por pressão de público, ou de editora, ou de crítica.

Eu me interesso pelo que o leitor pensa, até porque as minhas narrativas saem de uma esfera muito íntima, uma esfera pessoal, são minhas histórias que encontram o corpo do leitor. Isso transfere alguma intimidade daquilo que eu imagino dos meus mundos, das minhas fabulações. Isso cria algum vínculo entre mim e o leitor e eu gosto quando estou em um evento literário e eles me dizem o que pensam. Eu gosto de ouvir as interpretações que eles dão para a história. Nas redes sociais, eles compartilham resenhas, outras coisas. Eu gosto de acompanhar – não consigo acompanhar tudo, mas isso é parte do processo.

Agora, não me agrada ler crítica, porque uma crítica pode ser algo muito negativo, pode te jogar para baixo e você achar que não pode escrever mais, ou que não tem espaço para você escrever nesse mundo. Tem críticas que, por fim, podem sabotar até as nossas vocações, nossas vontades. E quando a crítica é muito elogiosa, também pode fazer com que você se sinta melhor do que é. Então, para mim, é sempre complexo, sempre é complicado.

E claro, acho que nenhuma crítica pode soar como um interdito, porque isso aí eu já sei o que é, e não é crítica de fato, é preconceito de classe, é preconceito de raça. Porque se ela diz que você não deve mais escrever, ou deixa isso muito claro nas entrelinhas, é porque ela não reconhece os leitores, não reconhece o público, não reconhece os prêmios e quer criar um interdito para te tirar desse espaço.

E nem o Jefferson, nem a Eliana, nem eu, nem muitos que estão aí na estrada, nem a Conceição, nem a Ana Maria Gonçalves, nem o Paulo Lins, não somos os primeiros nem os últimos a passar por isso. Muitos que vieram antes também… O que fizeram com Lima Barreto? O que fizeram com a Carolina Maria de Jesus? Onde foi que a Carolina morreu, esquecida em Parelheiros e tudo mudou porque, nesse tempo novo que estamos vivendo, ou pelo menos nos últimos 20 anos, teve gente com grande dignidade para recuperar toda a obra da Carolina e colocar no devido lugar, porque é uma obra muito importante para se entender o Brasil, para se entender a literatura, para se entender outras estéticas.

Porque pra mim, pra Eliana, pro Jefferson, para a Conceição, a gente não precisa escrever como europeu escreve, a gente não precisa escrever como as pessoas brancas escrevem. Claro, a gente lê também, nos interessa muito e a gente aprende também. Mas a nossa estética é diferente.

Tem uma citação do Salvar o Fogo que me chamou a atenção, dentre tantas outras, que diz assim: “Para dizer a verdade, não imaginava serem os livros escritos. Pensava que surgiam como nós, das vidas de outras pessoas, vivos, sem grandes explicações”. Como é que foi a descoberta da literatura como ofício para você? E é assim contigo, o livro nasce sem grandes explicações, está vivo ali em algum lugar?

Eu acho que essa parte da narrativa, quando Moisés fala um pouco sobre essa história, reflete um pouco da minha experiência com a literatura ainda muito cedo. Eu fui alfabetizado com cinco anos e meio e tinha muitos irmãos, morava numa casa pequena, era uma família que não tinha recursos para lazer, essas coisas que nos levam para outros lugares. Aprender a ler e ler histórias, narrativas, abriu um portal para a minha vida.

Era uma maneira de me manter sadio, vivo, experimentando outras coisas. E eu me lembro desse primeiro contato com o livro, eu não me perguntava quem escreveu, quem fez. Eu estava lendo e parecia que estava ali, pronto, não me preocupava com isso. Os livros, para mim, faziam parte do mundo como nós fazemos parte do mundo, não imaginava que eles eram feitos, que eles eram escritos, que tinha alguém ali por trás de tudo isso, e só mais tarde eu vim compreender isso.

O Moisés reflete um pouco esse momento de despertar, de descoberta da leitura, da literatura. E a literatura foi essa expressão artística que eu estive mais próximo desde o princípio, que me ensinou muita coisa sobre a vida, sobre o mundo e sobre as pessoas. E ainda é uma grande fonte de conhecimento. O Milan Kundera, que escreve muitos ensaios sobre literatura, disse que o sentido último da literatura é se debruçar sobre a condição humana.

E quando a gente lê, quando a gente escreve, no fundo, estamos compartilhando um pouco da nossa visão e percepção dessa condição humana e as pessoas, lendo, vão tocando isso também. Isso porque nós, como leitores, lemos a história não de uma maneira mecânica, a leitura exige um engajamento muito grande. Um livro fechado não significa muita coisa.

Para estar vivo, para existir, ele precisa encontrar o corpo do leitor, ser lido pelo leitor. Quando a gente lê, acho que, em determinado momento, tudo vai desaparecendo, até quem somos. A gente deixa isso, nem que seja por um momento, de lado, e a gente vive a vida das personagens, nós somos as personagens e isso é muito forte, muito poderoso.

Você é funcionário do Incra, agora licenciado. O MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) vem falando isso há bastante tempo e o presidente Lula, numa tentativa de acalmar os ânimos, afirmou recentemente que o Incra, que é responsável pela avaliação e titulação das terras para a Reforma Agrária, não deve esperar ser motivado por ocupações, por exemplo, mas identificar essas terras e acelerar a Reforma Agrária no país. Você acha que é possível?

Eu acho. Eu acho que a reforma agrária é uma política pública que não vai sair do horizonte durante muito tempo, por uma questão simples: primeiro, porque o Brasil é um país muito desigual do ponto de vista da estrutura fundiária; depois, porque os grandes produtores não produzem alimentos para as pessoas, produzem commodities para exportação. É importante para a balança comercial, para essa macro política, mas as pessoas não comem soja, nem milho, ou apenas isso, a gente não come commodity.

Então, para garantir segurança alimentar, quem produz alimento para a mesa do brasileiro é o pequeno e o agricultor. São eles que produzem os alimentos. E estamos falando de um país em que mais de 100, 150 milhões de pessoas vivem em insegurança alimentar, que se alimenta hoje, mas não sabe o que vai comer amanhã, ou depois de amanhã. Ou seja, estamos falando de algo que é importante, nenhum país será desenvolvido se tiver metade da sua população passando fome, em insegurança alimentar.

Acho que o Movimento dos Sem Terra vem passando, e é histórico isso, faz parte da história do movimento, por um dos muitos momentos de criminalização, porque tem uma CPI no Congresso. Parece maniqueísmo, mas a gente sabe, o que está por trás de tudo isso. É, de fato, um Congresso que não espelha a nossa diversidade social e cultural, é regional porque, felizmente, ainda se obedece um critério regional, mas se a gente for olhar a Bancada da Bíblia, a Bancada da Bala, a Bancada do Agronegócio, elas tem um peso desproporcional no Congresso, que é muito conservador.

E aí, para desviar as atenções, criam uma CPI para tentar criminalizar os movimentos sociais. Como você bem disse, nenhuma terra produtiva será alvo de ocupação ou de desapropriação para que a reforma agrária aconteça. A Constituição é muito clara e é muito conservadora em relação a tudo isso. Ninguém está falando em uma nova constituinte, mudar a Constituição, é só seguir o que está lá.

A Terra tem uma função social e essa função social é cumprida ou não. Se ela é produtiva, ela é cumprida, pode ser até uma fazenda de agronegócio, se ela é produtiva, ela não vai ser alvo de desapropriação. Mas se a terra está lá apenas para especulação imobiliária, ela é improdutiva, ela não cumpre sua função social e está passível de desapropriação para a Reforma Agrária. Ponto, não tem drama.

E a desapropriação não é confisco. O governo não confisca, o estado brasileiro indeniza todos, tem uma política de indenização, ou seja, essas pessoas serão indenizadas e, assim, a vida segue. A gente vai reduzir as desigualdades no campo, na cidade, a gente vai garantir a segurança alimentar e vamos caminhar para isso se tiver mais produção, mais pessoas trabalhando no campo e menos desigualdade, ou seja, a Reforma Agrária é um tema importantíssimo, não sai de pauta, está no nosso horizonte e ainda vai continuar por muito tempo.

Edição: Rodrigo Durão Coelho

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