Ciro Gomes começou sua palestra na CDL de Fortaleza dizendo que tem um amigo imaginário que mora em Marte, o qual, de vez em quando, visita o Brasil para ver alguns conhecidos. Dentre eles, o ex-governador do Ceará.
O marciano visitou o Brasil em junho de 2022, e tentou persuadir Ciro a abandonar a disputa que, de acordo com o marciano, seria marcada por ódios e paixões, e não por projetos. E agora retornou, neste mês (ele costuma visitar o Brasil sempre em junho, explicou Ciro, por causa do clima mais ameno), para trocar algumas ideias. Ao chegar ao Brasil, o marciano ficou surpreso ao perceber que, segundo observou, não haviam mudanças efetivas na economia, que ainda se sustentava sobre câmbio flutuante, meta de inflação e autonomia do Banco Central.
É possível que o amigo marciano de Ciro não exista. As observações astronômicas e as visitas (não tripuladas) que a humanidade fez a Marte jamais identificaram qualquer forma de vida no planeta.
Se este marciano existisse, entretanto, dificilmente seria tão desinformado quanto esse amigo de Ciro Gomes.
Deixemos de lado o marciano e passemos à análise crítica das falas de Ciro Gomes, que nos parecem tão incrivelmente superficiais que, por vezes, é difícil não perceber, por trás delas, uma grande dose de cinismo.
A abordagem que Ciro faz do chamado tripé macroeconômico é sempre curiosa.
Em todas as suas campanhas, ele sempre fez questão de se autoproclamar como o ministro da fazenda que produziu o maior superávit primário da história do Brasil (5,4%), segundo suas próprias palavras. Ele repete o mesmo sobre sua gestão como governador do Ceará.
Na verdade, trata-se de uma diatribe infantil de Ciro Gomes, uma caricatura de argumento.
Toda economia moderna se baseia nos mesmos pilares, assim como todo ser humano costuma caminhar com suas pernas e pensar com sua cabeça.
Todo país busca o controle da inflação e o equilíbrio fiscal. Quanto ao câmbio, a solução menos arriscada para países democráticos e com economias relativamente abertas tem sido mantê-lo flutuante. Tentativas de controle cambial só podem dar certo em uma economia totalmente controlada pelo Estado, como é o caso da China. No Brasil, seria delirante pensar em algo assim. O que o nosso Banco Central, e o governo como um todo, pode fazer, é evitar ataques especulativos à moeda nacional, por meio de operações de compra e venda de dólares.
A crítica de Ciro, portanto, é apenas juvenil, como se ele quisesse dar uma carga puramente emotiva a conceitos puramente técnicos.
Agora, é claro que podemos melhorar a política fiscal, a política cambial e a política de juros. Mesmo assim, elas continuarão a existir.
Ciro critica o governo Lula por não ter demitido o presidente do Banco Central, e novamente fica a dúvida se o ex-ministro está sendo ingênuo ou cínico.
Para começar, Ciro parece ignorar que a demissão do presidente do Banco Central teria que ser aprovada pelo Senado. Em outra palestra, ele mesmo admite essa pequena barreira, mas logo tenta minimizá-la lembrando que Lula poderia aprovar com facilidade a nomeação de Cristiano Zanin para o STF.
É um pouco exaustivo, como explicar política a um adolescente radicalizado. No entanto, Ciro não é mais um adolescente. Ele é um veterano da política, e não deveria se tornar um porta-voz desse romantismo despolitizado, sustentado apenas por ressentimento, que é completamente improdutivo.
Outra observação do “amigo marciano” de Ciro, que ele apresenta como uma grande acusação contra o governo Lula (sic), é a força do chamado centrão no Congresso Nacional.
Em geral, as análises de Ciro Gomes são quase todas equivocadas, pois ele se baseia em uma filosofia política igualmente falha. E falha porque é impraticável.
Logo no primeiro capítulo de seu Tratado Político, Espinosa se esforça para desmantelar o que ele considera o preconceito mais prejudicial contra a política e as lideranças políticas, que é tratá-los como se fossem princípios racionais. Eles não são. A política é uma atividade humana, exposta aos erros e paixões dos homens. E as lideranças políticas, por sua vez, estão inevitavelmente sujeitas às suas idiossincrasias, fragilidades e defeitos.
Sim, a eleição brasileira de 2022 foi marcada por um turbilhão de ódios e paixões. O que Ciro Gomes parece não compreender é que todas as disputas políticas são movidas por ódios e paixões, e isso há milhares de anos! A invenção da democracia foi uma das técnicas para a humanidade lidar com isso da maneira menos traumática possível.
Em relação à ideia de “projeto”, Ciro Gomes também parece delirar. É evidente que o Brasil precisa de um projeto nacional de desenvolvimento. Mais evidente ainda que o campo progressista precisa defender a ideia de ter um projeto, afastando o pensamento de que o país deveria confiar na “mão invisível” do mercado para resolver seus problemas.
No entanto, um projeto de desenvolvimento não pode ser confundido com essa caricatura autoritária, fechada e principalmente despolitizada que Ciro tem defendido.
Um projeto nacional de desenvolvimento, para começar, é um projeto político. Não é como construir um prédio em uma área relativamente deserta, onde basta ter “meta, prazos, custos”, para citar as palavras de Ciro.
Isto é, um projeto desse tipo não é científico, no sentido de que todos os seus passos devem passar por experimentação rigorosa e ser aprovados por seus pares antes de entrar em uma nova etapa.
A política não é ciência, não porque é menor, mas porque é maior do que a ciência. A política real tem que lidar com probabilidades, riscos e o imponderável. Está mais para Heisenberg do que para Newton.
Isso não significa que a política deva renunciar ao pensamento científico. Muito pelo contrário. Precisamente porque sabemos que a política é inerentemente caótica e exposta às leis da incerteza, devemos construir, por toda a parte, faróis científicos que nos guiem por seus mares escuros.
Um projeto nacional de desenvolvimento, reitero, é um projeto político e, como tal, deve sempre compreender a importância da dimensão política, especialmente em ambientes democráticos como o do Brasil. E mais ainda nos últimos anos, quando a política se degradou profundamente. Um projeto nacional de desenvolvimento não começa, ao contrário do que Ciro e seus seguidores parecem pensar, com um programa de reindustrialização do país, mas com um passo muito mais simples: vencer eleições. Não só eleições presidencias, também legislativas. E não só isso: um PND precisa construir maiorias no congresso, agregando forças e partidos adversários. Precisa também construir maioria na opinião pública, e daí a necessidade de investirmos em portais independentes, como este modesto O Cafezinho.
Ciro fala em metas, prazos, custos, como se isso fosse simples. Se fosse simples, bastaria ele estabelecer, então, a meta de ganhar uma eleição presidencial e fazer o que ele acredita que deve ser feito.
Nesse delicado período do Brasil, com a sociedade ainda curando suas feridas do processo autodestrutivo vivido pelo país desde o início da Lava Jato, é preciso apostar no diálogo e na democracia. Não porque isso seja inédito, tampouco porque temos certeza de que tudo dará certo. Mas porque é o único caminho que temos. Nesse ponto, um pouco de fé e esperança não fazem mal!
Um projeto nacional de desenvolvimento exige, para seus defensores, comprometimento diário com a luta política, responsabilidade, respeito ao outro, capacidade de dialogar.
O problema de Ciro é que ele realmente quer se transformar em um novo Lacerda. Seu discurso e sua postura estão cada vez mais moralistas. E isso os enfraquece e os torna ridículos. Ele critica a autonomia do Banco Central, e está corretíssimo, mas daí ele começa a distribuir ataques morais a todo mundo, como se todos fossem culpados disso. Todos são “canalhas”.
Em seguida, e isso agora parece ter virado outra constante no discurso de Ciro, ele passa a lamentar pelos processos que recebe. Ciro Gomes parece ter realmente grande dificuldade para entender a necessidade de respeitar uma pessoa que pensa diferente dele. Não importa o que você pense do seu adversário. Pode ser um Eduardo Cunha. Pode ser Arthur Lira. Pode ser o demônio. Se você é um político com ambição de construir pontes com os mais diferentes setores nacionais, você terá de mostrar um decoro mínimo. Isso é o básico.
Esse sectarismo de Ciro contaminou sua militância, que também passou a tratar o debate político como um debate fundamentalmente moral. Para o cirista, os eventuais erros do PT, dos “identitários”, de Lula, ou mesmo da esquerda em geral, não são erros humanos que todos podemos cometer. Não. São ações de canalhas. O “outro”, para um cirista, não vale nada.
O cirismo, com isso, fecha a porta ao diálogo com todo um campo político, e depois fica lamentando que não tem voto. Isolado, Ciro então procura contato com a direita, para a qual o ex-ministro tem valor apenas como uma espécie de atração de circo. A direita não vota em Ciro Gomes. O único, exclusivo, valor de Ciro Gomes para a direita é o seu ódio a Lula e ao PT, que ela, a direita, procurará inflamar, até mesmo por diversão.
Alguém poderá retrucar que o cirismo acabou, que os 3% de votos que Ciro Gomes recebeu não representam nada. O próprio Ciro, em palestra em Portugal, não disse que não se sente representando nenhum movimento?
Não penso assim. Na conjuntura atual, em que Lula venceu com margem apertadíssima no segundo turno, contra um candidato fascista, precisamos estabelecer diálogo com todos os movimentos, por mais diminutos que sejam. E, sobretudo, precisamos trabalhar duro para que nenhum movimento democrático, por menor que seja, se some às forças do fascismo.