Leonardo Rossatto: O Parlamentarismo Ad Hoc

Foto: José Cruz/Agência Brasil

Por Leonardo Rossatto

Em 2015, o então Presidente da Câmara, Eduardo Cunha, começou a utilizar um expediente pouco comum ao Poder Legislativo até então.

Em um contexto de disputa contra o governo Dilma, que viria desembocar no infame processo de impeachment contra a presidenta, Cunha começou a manipular votações na Câmara para fazer valer a sua vontade de maneira pouco discreta: ao perder a votação sobre o voto distrital e sobre o financiamento de campanha privado, apresentou um projeto no dia seguinte para incluir pontos que o favorecessem, como o autofinanciamento sem limites das campanhas eleitorais, por exemplo.

Esse movimento gerou o que ficou conhecido como “Minirreforma eleitoral do Cunha”, que também terminou incluindo outras cláusulas, como a de que um candidato, para ser elegível, precisa ter ao menos 10% do quociente eleitoral em número de votos totais.

Nessa mesma época, outro caso ficou notório: no final de junho de 2015, Eduardo Cunha colocou em votação a redução da maioridade penal, com o objetivo de agradar os setores mais conservadores da Câmara – os mesmos setores que se alinhariam ao bolsonarismo alguns anos depois. A derrota foi por meros cinco votos. Vinte e quatro horas depois, Eduardo Cunha colocou o mesmo projeto para votação, com alterações pontuais, e obteve aprovação, após convencer esses cinco deputados faltantes. 

Nessa época, o Brasil entrou no que eu chamo de um “parlamentarismo ad hoc”. Um parlamentarismo de ocasião, feito de acordo com a conveniência do parlamento. Para o Legislativo, é o melhor dos mundos: os parlamentares ganham o poder sobre os rumos do país, atuando em áreas onde até então não atuavam e tendo maior influência sobre o Executivo, mas não respondem à sociedade por isso, tendo em vista que no presidencialismo quem é inquirido pela sociedade, em geral, é a Presidência da República. Além disso, ganham um poder inédito de chantagear o Executivo, seja segurando projetos, seja colocando pautas-bomba para votação, seja ameaçando o presidente de impeachment.

Desde então, esse parlamentarismo ad hoc só se aprofundou. Foi o responsável, em grande medida, pela aprovação do impeachment de Dilma na Câmara dos Deputados, sob a batuta de Eduardo Cunha, que deu andamento ao pedido de impeachment quando soube que o PT ia votar contra ele no conselho de ética da casa. 

Foi esse parlamentarismo ad hoc que sustentou Michel Temer no cargo mesmo quando surgiram duas denúncias de corrupção contra ele no STF. Com Bolsonaro, esse mecanismo se aperfeiçoou, e também passou a ter um custo mais alto: agora, além de cargos no Executivo, esse parlamentarismo ad hoc era sustentados por emendas discricionárias, o tal “orçamento secreto”, capitaneado pelo relator do orçamento, que passou a ser um cargo cobiçadíssimo na Câmara e no Senado. Notoriamente os relatores estavam a serviço dos Presidentes da Câmara e do Senado. Arthur Lira e Rodrigo Pacheco viabilizavam a distribuição das emendas para os deputados.

O problema é que essa distribuição bilionária de emendas teve um efeito eleitoral expressivo nas bases eleitorais, principalmente para os deputados. E isso porque a eleição para o Senado, além de trazer renovação parcial para a casa, é basicamente uma eleição estadual, tendo similaridades enormes com as eleições majoritárias. As eleições para deputado são as eleições em que as emendas fazem mais diferença: geralmente, o dinheiro que chega acaba financiando obras ou campanhas dos políticos que conseguem verbas, aumentando o seu poder de barganha e fazendo com que as oligarquias locais se fortaleçam. 

Nesse contexto, Lula venceu a eleição. Lula é o Presidente da República, mas a Câmara dos Deputados foi eleita, em grande medida, pelo Orçamento Secreto. Lula ainda foi, de certa forma, beneficiado pelo STF, que, logo após a eleição, tornou o orçamento secreto um mecanismo ilegal, justamente por sua discricionariedade. 

Lula nunca teve problemas em fornecer cargos em áreas estratégicas em troca de governabilidade. Foi assim que seu governo sustentou maioria na Câmara e no Senado entre 2003 e 2010. O problema é que agora, em uma situação de parlamentarismo ad hoc, esse mecanismo de negociação não é mais suficiente.

As sucessivas derrotas na Câmara dos Deputados tem mostrado isso: os parlamentares querem cargos, mas também querem emendas, e – para além disso – querem desfigurar o governo Lula para que ele se torne completamente dependente do centrão. Todo esse movimento, como era de se esperar, é capitaneado por Arthur Lira, que se arroga como uma espécie de Primeiro-Ministro desse parlamentarismo de ocasião. 

O problema é que, justamente por ter sido eleita com o orçamento secreto, a Câmara dos Deputados reflete, em grande medida, os setores da sociedade que foram beneficiados pelo governo Bolsonaro. O agronegócio é o principal deles. A Frente Parlamentar da Agropecuária tem inacreditáveis 300 deputados atualmente.

A grande maioria dessa bancada é ligada ao Centrão e aos partidos de oposição, mas até o PT tem deputados na frente. Portanto, não é coincidência que um projeto claramente inconstitucional, como o do Marco Temporal, tenha 285 votos. O Marco Temporal é uma afronta direta ao artigo 231 da Constituição Federal, e não é uma mera casualidade que o STF vai continuar julgando o tema mesmo com a aprovação tresloucada que Arthur Lira promoveu ao projeto como demonstração de poder.

O problema maior de um parlamentarismo de ocasião, como o nosso, é que a eleição do parlamento ocorre paralelamente à eleição presidencial, o que esvazia enormemente a campanha, permitindo que elites econômicas dominem o legislativo.

Na França, que também tem eleições para presidente, esses processos ocorrem separadamente, com intervalo de dois meses entre si. Em países que são parlamentaristas de fato, como a Espanha, a eleição parlamentar acaba elegendo o líder de governo, uma vez que o líder da coalizão vencedora agrupa os partidos entre si até ter a maioria na Casa Legislativa.

No Brasil, nada disso acontece: a eleição para Presidente elege um perfil de Presidência da República que acaba, por vezes, bastante dissociada do perfil dos deputados eleitos, uma vez que, na modelagem atual, os deputados refletem o poder das elites locais.

No atual contexto, é provável que se a eleição para a Câmara fosse feita por sorteio entre todos os cidadãos do país acima de dezoito anos, teríamos uma Câmara melhor do que a que temos hoje. E isso porque, salvo a minoria de políticos oriunda de movimentos sociais, a representação na Câmara é feita por gente que só defende elites ou grupos de interesses: o agronegócio, as grandes igrejas evangélicas, os militares e policiais, os empresários de setores específicos da economia, e até mesmo parcelas do Judiciário, uma vez que agora parece que é moda termos ex-juízes e ex-procuradores na política. 

É nesse cenário que o Presidente Lula tem que negociar, criando mecanismos para limitar o poder desses lobbies políticos na Câmara ao mesmo tempo em que combate a extrema-direita bolsonarista. É uma tarefa hercúlea e vai exigir um governo muito bem articulado, que viabilize pontes de negociação para além de promessas vazias. E tudo isso sem perder a sua identidade como um governo com forte foco na questão social, nos direitos humanos, na proteção das minorias, na proteção dos povos originários e na preservação do meio ambiente. Não será uma caminhada fácil.

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