Por Eder Alcantara Oliveira
Por volta de 2.000 anos atrás, nossos antepassados mais antigos, ancestrais do grande povo Txané, chegaram à região do alto curso do rio Paraguai, onde atualmente está localizado o atual Pantanal brasileiro. No idioma do povo Terena, a palavra Txané significa gente, povo e ser humano. Os invasores europeus do período colonial não consideraram essa forma de autoidentificação e apelidaram nossos antepassados de “Guaná”.
Daquela região, gradualmente os antigos Txané expandiram suas aldeias por praticamente toda a planície pantaneira e adjacências, e ali viviam em comunhão com outros tantos povos originários. Onde havia terra firme e favorável à agricultura, lá estavam nossos ancestrais. Eles chegaram àqueles lugares antes mesmo dos primeiros invasores europeus cruzarem o Atlântico com suas caravelas, armas de fogo e muitas doenças. Durante os períodos colonial e imperial, os Txané passaram a ocupar de maneira tradicional a microbacia do córrego Buriti e outras partes da Serra de Maracaju, no atual estado de Mato Grosso do Sul.
Os antigos Txané são um grande povo de matriz linguística e sociocultural Aruák, conhecidos por levar a civilização do bem viver onde quer que estejam. Dos Txané descendem os Terena e Kinikinau, dentre outros povos originários. Vale registrar que povos indígenas de matriz Aruák estão presentes nas três Américas: da Flórida, nos Estados Unidos, passando pelo Caribe, na América Central, até o Brasil, a Bolívia e parte da Argentina, dentre outras partes do continente.
O estabelecimento de nossos ancestrais no Pantanal e adjacências não se deu de maneira belicosa para com outros patrícios ou parentes que lá estavam. Significa dizer que nós, do povo Terena, nunca fomos invasores e usurpadores de terra alheia. Somos um povo do bem viver e preferimos conversar, dialogar e promover alianças com outros povos originários e, também, com os não-indígenas. As diferenças étnicas e socioculturais, portanto, nunca foram novidade ou impedimento para seguirmos na vida em sociedade, inclusive para aprendermos em comunhão com os purutuye, como chamamos na língua mãe os brasileiros não-indígenas.
Nós, povo Terena, somos parte da população indígena originária dessas terras. Aqui trabalhamos durante o período colonial para que Portugal superasse a Espanha nas disputas pela região do Pantanal e adjacências, como é o caso da região serrana de Maracaju, onde está localizado o município de Dois Irmãos do Buriti e algumas de nossas aldeias, dentre elas a Aldeia Buriti.
Participamos ativamente da fundação de antigas cidades existentes em Mato Grosso do Sul, como Corumbá, Ladário, Miranda, Aquidauana, Nioaque e outras. No século XVIII, ajudamos os portugueses na construção de fortificações militares, como o Forte de Coimbra e o antigo Presídio de Miranda, e na fundação de povoados multiétnicos, como o antigo povoado de Albuquerque, outrora chamado de “Albuquerque dos Índios”, localizado no município sul-mato-grossense de Corumbá.
Aquela parte do Pantanal é chamada de Êxiva pelos nossos anciões ou troncos velhos, que também se referem à região pantaneira como “Chaco”. Sim, “Chaco” é uma palavra de origem quéchua usada pelos povos Terena e Kinikinau para designar o que é hoje a planície pantaneira situada ao longo do rio Paraguai. Logo, é uma falácia por parte de nossos opositores dizer que o povo Terena seria originário do Chaco paraguaio, pois não viemos da República do Paraguai e somos mais antigos em relação a todos os Estados nacionais da América do Sul.
No século XIX, aldeias Terena estavam estabelecidas por vastas extensões da bacia hidrográfica do alto curso do rio Paraguai e circunvizinhanças. Não foi por acaso que em fins de 1864, quando as tropas paraguaias invadiram o sul da antiga província de Mato Grosso, atual Mato Grosso do Sul, nossos guerreiros lutaram bravamente em defesa do território nacional do Brasil.
A maioria dos militares purutuye abandou seus postos e deixou a população civil a sua própria sorte. Nós, do povo Terena, não fizemos isso, pelo contrário. Salvamos muitas vidas e resistimos contra a invasão paraguaia ao lado dos patrícios de povos, como Guató, Layana, Kadiwéu, Kinikinau e outros.
A derrota das tropas invasoras a serviço de Francisco Solano Lopes, então presidente do Paraguai, começou pelas mãos dos povos originários. Alguns anos depois do início da invasão paraguaia, quando os militares do Exército Imperial chegaram famintos e debilitados à Serra de Maracaju, fomos nós que os alimentaram e cuidaram de suas enfermidades. Além disso, enviamos centenas de guerreiros para somar com as tropas imperiais do Brasil e guiamos os soldados nacionais por caminhos seguros até derrotarmos os inimigos paraguaios.
Vencida a guerra em 1870, os povos Terena e Kinikinau ganharam do Império do Brasil uma traição sem precedentes na história de Mato Grosso do Sul. Nossas terras foram dolosamente tituladas a favor de fazendeiros, o que se deu ao arrepio da Lei de Terras de 1850.
Depois disso, passamos a ser explorados em fazendas por meio do conhecido sistema de barracão: nossos avós e bisavós trabalhavam todos os dias para os fazendeiros, mas no final do mês não tinham nada para receber. Como a dívida aumenta de mês a mês, vivíamos de forma análoga à escravidão em nossas próprias terras. Foram tempos dificílimos e essa história está registrada nos livros e em nossas memórias.
Somente nas primeiras décadas do século XX, graças ao apoio recebido do patrício Cândido Mariano da Silva Rondon, mais tarde conhecido como Marechal Rondon, fundador do órgão indigenista oficial em 1910, conseguimos superar parte das adversidades.
Nos anos de 1910 e 1920 foi instalada na Serra de Maracaja uma “colônia de índios” que, mais tarde, viria a ser chamada de Reserva Indígena de Buriti, com pouco mais de 2.000 hectares. À época, a imensa maioria de nós não sabia ler e escrever, e nenhum patrício tinha o direito de ir e vir.
Para sairmos da reserva, tínhamos que ter autorização por escrito do chefe do posto do antigo SPI – Serviço de Proteção aos Índios, atual FUNAI – Fundação Nacional do Povos Indígenas. Esses poucos mais de 2.000 hectares não correspondem às terras de que tínhamos posse à época.
Mesmo assim, envidamos todos os esforços necessários para reivindicarmos nossos direitos territoriais juntos ao Estado nacional do Brasil. No começo da década de 1930, enviamos ao Rio de Janeiro, então capital federal, uma comissão de lideranças para levar nossas demandas até o governo central.
Ao chegarem à cidade do Rio de Janeiro, depois de uma longa jornada a cavalo, a pé e de trem, nossas lideranças se depararam com os desdobramentos da Revolução de 1930, que levou o gaúcho Getúlio Dornelles Vargas ao poder. Como não foram devidamente ouvidas pelas autoridades, nossas lideranças retornaram para Buriti e nos avisaram do que havia acontecido. Essa façanha, porém, está registrada em nossas memórias, em diversos estudos acadêmicos, na perícia judicial feita sobre a Terra Indígena Buriti e em um jornal da época.
Durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), especialmente a partir de 1944, quando o Brasil declarou guerra ao eixo formado pela Alemanha, Itália e Japão, enviamos alguns de nossos maiores guerreiros à FEB – Força Expedicionária Brasileira.
Combatemos os nazistas na Itália e vencemos a batalha pela tomada de Monte Castelo. Assim que nossos guerreiros regressarem para o Brasil, o governo central seguiu de olhos fechados para nossas reivindicações territoriais. De uma coisa temos plena convicção: fomos, somos e seguiremos sendo heróis!
Nas décadas seguintes, seguimos na luta pelos nossos direitos territoriais e enfrentamos diversos problemas, inclusive durante o Regime Militar (1964-1985). Anos mais tarde, na década de 1980, vimos o país reconstruir a democracia com a promulgação, no dia 5 de outubro de 1988, da atual Constituição Federal.
Pela primeira vez em toda a história nacional, a Carta Constitucional do país passou a assegurar nossos direitos originários nos artigos 231 e 232. Um pouco antes de sua promulgação, porém, havíamos registrado junto à Justiça as nossas demandas pela ampliação dos limites da Terra Indígena Buriti, dos 2.090 para os 17.200 hectares posteriormente identificados e delimitados. Tudo isso consta devidamente registrado no processo que tramita na Justiça Federal pela ampliação dos limites da Terra Indígena Buriti.
Muitas lutas pela vida ocorreram desde então, inclusive com a perda de alguns patrícios, como o parente Oziel Gabriel, assassinado pelo Estado Brasileiro em 2013. Outros tantos patrícios ficaram feridos, seja pela bala das armas dos policiais, seja pela bala de jagunços a serviços de pessoas que querem, a todo custo, permanecer com a propriedade ilícita de nossas terras.
Eis então, que mais recentemente, surgiu a tese inconstitucional do chamado Marco Temporal, cujo propósito maior é legalizar a propriedade ilegal da terra que incide sobre nossos territórios. Mas o que é, afinal, a tese do Marco Temporal?
Explicamos: a tese do Marco Temporal é tão somente uma afronta aos direitos dos povos originários assegurados pela Constituição Federal, haja vista que está baseada na ideia de que nós, indígenas, somente poderíamos reivindicar as terras onde estávamos no dia 5 de outubro de 1988, quando entrou em vigor a Carta Magna.
No caso da Terra Indígena Buriti, estamos aqui desde, ao menos, o século XIX, quando não havia fazendeiro algum na região. Ademais, desde as décadas de 1920 e 1930 que o Estado Brasileiro sabe de nossas reivindicações territoriais e nada faz de efetivo para resolver a questão.
Lá se vão, portanto, um século de lutas pela terra. Saibam que a Terra Indígena Buriti é onde somos o que somos. Não desejamos ser outra coisa, senão nós mesmos, povo Terena, descentes dos antigos Txané, guerreiros pela vida e defensores do território nacional do Brasil contra todos os inimigos externos.
Outros povos indígenas, contudo, foram violentamente expulsos de suas terras antes da promulgação da Constituição Federal de 1988 e à época não tinham a quem recorrer. Muitos sequer falavam o português e tinham acesso às autoridades do Estado Brasileiro. Assim sendo, estamos mais uma vez diante de uma farsa colonialista que busca promover o genocídio dos povos originários, tratando-nos como estrangeiros e cidadãos sem direito algum em nossas próprias terras.
Por conta da situação apontada, alertamos a toda a sociedade brasileira, incluindo os parlamentares, governantes e demais autoridades em Mato Grosso do Sul, sobre a possibilidade de falência do Estado Democrático de Direito e do próprio governo do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, caso o STF – Superior Tribunal Federal e o Congresso Nacional permitam a aprovação da tese inconstitucional do Marco Temporal.
Outra afronta à democracia é a diminuição das atribuições da FUNAI e do MPI – Ministério do Povos Indígenas, como a retirada da competência da demarcação de terras tradicionalmente ocupadas. Alertamos especialmente os nossos parceiros em Brasília e solicitamos que votem contra o Marco Temporal.
Por isso e por tantas outras coisas, bradamos em alto e bom som: Marco Temporal Não!
Eder Alcantara Oliveira é mestre em História pela Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), professor da Escola Polo Municipal Indígena Alexina Rosa Figueiredo e vereador no município de Dois Irmãos do Buriti, Mato Grosso do Sul.