Por Leonardo Rossatto
Na noite da última terça-feira, 23 de maio, foi aprovado o arcabouço fiscal projetado pela equipe de Fernando Haddad. Na verdade foi aprovado um arcabouço um pouco diferente do que chegou na Câmara, impondo punições pesadas para o governo que não atingir as metas fiscais. Mas o fato é que a aprovação do arcabouço marca um início “de fato” do governo, que agora terá, após a aprovação no Senado e a sanção do projeto, um mecanismo orçamentário para chamar de seu.
Existe toda uma discussão sobre a capacidade real do governo em alcançar as metas sem depender de fatores externos, mas essa é uma outra discussão que nem entrou em pauta. A verdade é que, embora o arcabouço pareça mais flexível que o famigerado (e finado) teto de gastos, ainda estamos falando de uma medida draconiana, que em grande medida condiciona a política fiscal.
Em um cenário em que a política monetária está nas mãos de um Banco Central autônomo, no qual o governo não tem nenhuma governabilidade enquanto não terminar o mandato de Roberto Campos Neto, o fato é que o governo está de mãos atadas em relação aos dois instrumentos tradicionais de impulsionamento de crescimento econômico. Tanto a política fiscal quanto a política monetária contam com travas legislativas intransponíveis, e o governo tem que governar gerindo a única coisa que restou: o orçamento.
Para piorar, grande parte do orçamento brasileiro já nasce comprometido, e isso nem é novidade. Juros de dívida, previdência, salários, vinculações constitucionais, tudo isso limita a ação governamental a patamares mínimos. Nesse cenário, uma pequena parte do orçamento sobra na mão do governo, de forma desvinculada, podendo ser direcionada de acordo com as prioridades governamentais e com as articulações políticas.
Esse cenário extremamente restritivo deveria ligar o alerta para que o governo tenha excelência em duas coisas distintas, que parecem não ter muita relação mas se complementam: a articulação política e a qualidade do gasto público via políticas públicas. Ter uma boa articulação é essencial para a manutenção do mínimo de viabilidade política junto ao legislativo, o que é essencial para a aprovação de literalmente qualquer coisa que o governo Lula se proponha a fazer.
Políticas públicas bem feitas, que utilizem o pouco orçamento restante com responsabilidade, por sua vez, são essenciais para a população construir uma percepção positiva do governo. Uma percepção de que as coisas estão sendo feitas. No entanto, cabe ressaltar: nada disso funciona se o governo não comunicar adequadamente o que tem feito, especialmente quando do outro lado existe uma máquina de fake news atuando diuturnamente.
A articulação política é um desafio imenso para qualquer governo. Para o governo, é um desafio maior ainda. Porque a realidade sobre o governo Lula é a de que Lula foi eleito Presidente da República, mas grande parte dos congressistas foi financiada pelo orçamento secreto do governo Bolsonaro. Sem o orçamento secreto como mecanismo de cooptação, os deputados passam a agir sempre com o mesmo objetivo: o de maximizar os seus ganhos, projeto a projeto, passando por cima de toda e qualquer etiqueta que tenha se construído na Câmara e no Senado anos a fio.
O problema é que o governo Lula não parece estar se atentando a isso, e seus articuladores políticos seguem com as mesmas estratégias de 2003, quando o modus operandi de negociação era outro e o Brasil não estava saindo de um governo de extrema direita que cooptou algumas instituições e tentou destruir outras.
Caso notório desse novo momento é a MP da estrutura do governo. Normalmente essas MPs passam sem sobressaltos: apesar do legislativo ter, institucionalmente, responsabilidade sobre a estrutura governamental, é normal que cada governo apresente sua estrutura organizacional e ela seja aprovada, afinal o senso comum diz que o executivo sabe qual é a estrutura que vai nortear seu trabalho e suas prioridades.
No entanto, há um movimento na Câmara para o esvaziamento de atribuições de Ministérios como o do Meio Ambiente, dos Povos Indígenas e do Desenvolvimento Agrário. Esse tipo de ação seria um tiro no coração da identidade do governo Lula, mas a articulação política, num típico movimento de quem não leu o projeto, soltou um elogio vazio e genérico ao relatório (que ainda nem foi votado). Isso acabou virando um enorme tiro no pé, quando as pessoas leram o relatório e viram as mudanças propostas.
Quando falamos que esses Ministérios são a “identidade” do governo Lula, é preciso pensar como é a construção de cada governo. Existem Ministérios que, com maior ou menor prioridade, estão em todos os governos, porque são políticas públicas consolidadas na sociedade: educação e saúde são os exemplos principais nesse sentido. Outros, por dizerem respeito a áreas meio ou à articulação, sempre permanecem também: Fazenda (ou Economia) e Casa Civil são os exemplos mais tradicionais desse modelo. Outros ministérios, porém, dizem respeito às prioridades do governo em questão, e estabelecem as prioridades do governo.
No governo Bolsonaro, por exemplo, o Ministério da Damares (eu me recuso a falar o nome completo daquilo) era um desses ministérios que mostravam a identidade reacionária do governo. O fortalecimento ou o enfraquecimento de estruturas internas também revelam a identidade do governo. No governo Bolsonaro, tínhamos um GSI hipertrofiado, reafirmando a prioridade do governo em favorecer os militares, e um Ministério do Meio Ambiente esvaziado, revelando a falta de prioridade de Bolsonaro com o tema.
No governo Lula, no entanto, essa lógica se inverteu. O Ministério do Meio Ambiente foi fortalecido e se tornou prioridade governamental, num contexto em que o Brasil tenta se reafirmar como liderança mundial no enfrentamento às mudanças climáticas, após os anos tenebrosos do governo Bolsonaro no tratamento desse tema. Ministérios como o dos Povos Indígenas, do Desenvolvimento Agrário, dos Direitos Humanos e da Igualdade Racial também são afirmações de prioridade: a preservação dos indígenas e de seu modo de vida são prioridade para o governo, bem como a distribuição de terra aos pequenos proprietários. Direitos humanos e combate ao racismo também são prioridades no governo Lula. Por isso, o esvaziamento do Ministério do Meio Ambiente, dos Povos Indígenas e do Desenvolvimento Agrário causa estranhamento. E precisa ser combatido pela articulação política do governo Lula, não elogiado.
Mas, para isso acontecer, não pode haver ruído interno no governo. Todo o questionamento ao Ministério do Meio Ambiente começou quando o líder do governo no Senado, Randolfe Rodrigues, criticou um relatório técnico do Ibama que não autorizou a pesquisa para extração de Petróleo perto da Foz do Rio Amazonas de forma ruidosa, pelas redes sociais, anunciando junto sua saída da Rede Sustentabilidade (partido de Marina Silva, que preside o Ministério do Meio Ambiente). Independente das rusgas políticas entre os dois, essa foi a pior forma possível de fazer isso. Porque de repente o Ministério do Meio Ambiente se tornou alvo dos ruralistas e da turma que acha que a natureza é um empecilho para o desenvolvimento econômico. Randolfe ficou incomodado ao ser elogiado por gente como Ricardo Salles, mas nessas alturas o barco já havia partido.
Essa situação toda serviu para que os ruralistas tentassem retomar, no Congresso, o status quo do governo Bolsonaro. As mudanças propostas pelo relator inclui que o Cadastro Ambiental Rural saia do Ministério do Meio Ambiente, por exemplo, o que impediria o Ministério de atuar contra ruralistas e grileiros em geral. Incluem que o Ministério dos Povos Indígenas perca o poder de demarcar terras, o que também agrada aos ruralistas. E tira praticamente todas as atribuições do Ministério do Desenvolvimento Agrário. O que, além de agradar aos ruralistas, ainda vai tornar a comida que você compra no supermercado mais cara, porque uma das atribuições mais importantes do Ministério do Desenvolvimento Agrário é a de retomar a política de controle de estoques e de preços de alimentos que Bolsonaro destruiu, quando extinguiu o CONSEA (Conselho Nacional de Segurança Alimentar) e acabou com a política de armazenamento de grãos da CONAB.
Isso mostra, de maneira enfática, como articulação política e políticas públicas se correlacionam. Uma articulação política ruim, descuidada e com fogo amigo leva ao comprometimento das políticas públicas. Políticas importantíssimas, que fazem parte da identidade do governo Lula, podem acabar comprometidas porque a articulação política do governo não entendeu que está em um ambiente hostil, e que essa hostilidade pode aumentar muito rapidamente com a proliferação de notícias falsas ou distorcidas nas redes sociais.
No final, o relatório técnico do Ibama era só um relatório, reprovando um projeto ruim que tinha sido escrito de forma incompetente e politiqueira durante o governo Bolsonaro, que, como sabemos, não tinha nenhuma preocupação com o meio ambiente. Ele pode ser refeito, com maior competência técnica, sendo submetido novamente à análise do Ibama. Em um cenário ideal, esse relatório do Ibama seria uma oportunidade do governo Lula expor a enorme incompetência técnica do governo Bolsonaro, que desconsiderava órgãos de regulação e queria “passar a boiada” em tudo o que fazia. Mas não: graças ao fogo amigo e aos descuidos na articulação, virou uma oportunidade para a oposição questionar a própria estrutura administrativa do governo.
E aí volta a questão do arcabouço fiscal. Todos imaginam que, no Senado, a aprovação da lei deve ser mais fácil do que foi na Câmara. Com o arcabouço fiscal aprovado e sancionado, o governo Lula vai deixar de operar em “modo de emergência” e vai começar a ter uma identidade própria, direcionando o orçamento de acordo com as suas prioridades. Mas quais são essas prioridades agora? A identidade do governo que foi mostrada para o Brasil na eleição e está refletida na estrutura ministerial proposta em janeiro vai continuar existindo? O governo Lula está diante da escolha entre fazer um governo com a própria marca ou se tornar mais um governo genérico agindo à reboque do centrão, que, no fim, está interessado apenas na manutenção de privilégios pontuais e na manutenção de oligopólios locais.
A escolha é óbvia. A torcida é para que o governo perceba isso a tempo.
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