“Chateado” após Zelenski não ir a reunião em Hiroshima, presidente brasileiro continuará buscando solução para guerra na Ucrânia como forma de pressionar por mudança do sistema de governança global, avalia especialista.
Publicado em 22/05/2023
Bruno Lupion
DW — O desencontro entre o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e seu homólogo ucraniano, Volodimir Zelenski, na cúpula do G7 em Hiroshima neste domingo (21/03) não deve esfriar o ímpeto do brasileiro em seguir tentando se apresentar como articulador de um fim negociado para a guerra, na avaliação de Fernanda Magnotta, coordenadora do curso de Relações Internacionais da FAAP.
Apesar de Zelenski não ter comparecido à reunião que, segundo a delegação brasileira, havia sido marcada para o encontro entre os dois líderes, deixando Lula “chateado”, interessa ao petista continuar tentando pautar a ideia de construir a paz no âmbito de organismos internacionais como a ONU e junto a países do Sul Global.
O motivo, diz, não é só buscar a resolução da guerra em si, que viola o direito internacional, provoca milhares de mortes e adiciona instabilidade ao cenário global, mas mostrar que o Brasil pode ser um ator relevante em temas que vão além de meio ambiente, combate à fome e desenvolvimento, e usar o conflito para pressionar por uma reforma profunda do sistema internacional.
“O Brasil se envolve na Ucrânia não apenas pela resolução do conflito, mas porque a Ucrânia serve ao propósito de reforçar uma visão de relações internacionais que supere a pax americana e as estruturas de governança que existem desde o fim da Segunda Guerra Mundial”, afirma Magnotta.
Ao analisar as falas dos dois líderes após o desencontro, ela identifica em Lula frustração, mas ao mesmo tempo respeito à autonomia e capacidade de decisão de Zelenski. Já o presidente ucraniano, diz, usou “um tom mais agressivo” ao sugerir que as expectativas ucranianas eram menores sobre a prioridade da reunião.
Ela não descarta que ambos os países tentem “colocar panos quentes” sobre o episódio, e nota que o desentendimento foi obscurecido por um conflito geopolítico de proporções muito maiores – a reação da China ao comunicado final do G7.
DW: Como interpretar o não comparecimento de Zelenski à reunião com Lula?
Fernanda Magnotta: É preciso dar um passo atrás e entender com maior clareza o processo que levou a isso. As notícias que recebemos foram desencontradas, primeiro foi reportado que a diplomacia ucraniana estaria interessada no encontro, mas o governo brasileiro teria demorado a responder, então teria sido um desencontro de agenda ocasionado inicialmente pela falta de prioridade que o Brasil teria dado ao assunto. Depois a gente recebeu informações em sentido contrário, do Brasil apresentando opções de horários para o encontro e Zelenski não comparecendo e atribuindo essa ausência a atrasos na agenda. A depender de como foi esse processo, temos caminhos diferentes pra interpretar as circunstâncias.
Há também uma discussão de quanto isso serviria para sinalizar certo desinteresse ou para capitalizar do ponto de vista político essa conexão entre os dois líderes, já que há algum tempo o Brasil tem sido tratado por boa parte do Ocidente como um país que tem sido mais propenso a dialogar com os russos.
Do ponto de vista ucraniano, talvez esse desencontro tenha ocorrido a partir de um conjunto de considerações estratégicas. Um líder pode decidir não comparecer a um encontro com outro líder como uma forma para alcançar objetivos políticos, exercer pressão sobre outro líder, demonstrar descontentamento público ou tentar ganhar vantagem em negociações futuras.
Lula disse ter ficado chateado com o desfecho, mas que Zelenski “é maior de idade e sabe o que faz”. Como avalia essa reação?
Essa afirmação carrega uma expressão de frustração. Dá a entender que o presidente tinha expectativas que não foram cumpridas. Quando ele fala que o presidente Zelenski é maior de idade e sabe o que faz, além de expressar esse descontentando também sugere que é preciso responsabilizar o presidente da Ucrânia pelo desencontro. Está atribuindo responsabilidade, ao mesmo tempo em que respeita a sua autonomia e capacidade de decisão, evitando com isso escalar ainda mais uma situação já sensível.
Já Zelenski, questionado por jornalistas se havia ficado decepcionado por não ter encontrado Lula, disse que quem havia ficado desapontado era o brasileiro. Como interpreta essa resposta?
A fala de Zelenski também demonstra descontentamento, num tom um pouco mais agressivo, ao colocar toda ênfase na perspectiva do presidente Lula e sugerir que as expectativas ucranianas talvez fossem um pouco diferentes em relação à prioridade do encontro. Ao fazer isso, ele também evita expressar seus próprios sentimentos, provavelmente para evitar polêmicas.
Qual é o efeito desse desencontro para a tentativa de Lula de promover um diálogo para buscar o fim da guerra?
Ainda é cedo pra avaliar, precisaremos analisar qual será a visibilidade e o peso dado a essa oportunidade que foi perdida, e se os países tentarão colocar panos quentes e avançar na construção de um diálogo futuro.
Não significa que as tentativas do Brasil de promover o diálogo estão encerradas, até porque existem outras plataformas diplomáticas que podem ser utilizadas pra isso, como é o caso da ONU, mais abrangente e plural que o G7.
E é necessário ter em conta qual será a posição da China em relação a essa tentativa de construir a paz. A China tem se apresentado como outro mediador, com quem o Brasil tem relações muito boas. A depender de como a China vá encaminhar essas questões da mediação do conflito e de como ela própria receber esse desencontro entre Brasil e Ucrânia, isso pode ter repercussões mais ou menos significativas.
No G7 houve um comunicado bastante ácido em relação à China, que foi interpretado pelo governo chinês como anti-China e culminou na convocação do embaixador do Japão na China para esclarecimentos. Esse ruído talvez seja mais potente em matéria de geopolítica do que a questão do Brasil.
O Brasil votou a favor da resolução da ONU pedindo a retirada dos russos do território ucraniano, ao contrário da Índia e dos outros países dos Brics – mas o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, ao contrário de Lula, reuniu-se com Zelenski em Hiroshima e ambos posaram para fotos se cumprimentando. Como avalia essa discrepância?
São duas estratégias de abordagem específicas, ao estilo de cada uma dessas lideranças. A decisão do Modi de se encontrar com Zelenski e posar para foto talvez neste momento faça sentido para a Índia, que foi muito dura em relação à própria Ucrânia nas votações da ONU e acabou em alguma medida transmitindo uma imagem mais pró-Rússia. Talvez interessou a Modi esse contraponto simbólico que o encontro trouxe à tona.
Ao mesmo tempo que Lula tenta compartilhar essa ideia de equidistância e neutralidade, precisamos entender que pode ter havido outras formas de calcular essas prioridades e os efeitos que isso teria do ponto de vista simbólico no contexto do G7. A discrepância tem a ver com como cada um entende o seu papel e como isso iria gerar repercussão doméstica e internacional.
Daqui para frente, que possíveis passos o Brasil pode dar em sua tentativa de construir diálogo para o fim da guerra?
Parece-me que o Brasil vai insistir na construção do ‘clube da paz’ e tentar engajar outros países que tenham uma visão alternativa ao que está sendo praticado pelo Norte Global. Lula citou outros países, como Índia e Indonésia. A ideia de oferecer uma solução que seja uma terceira via ao que nós conhecemos da ordem global estabelecida me parece que continua nos planos.
É provável que o Brasil siga com essa proposta a partir de dois caminhos. Primeiro por meio da participação em organizações internacionais, sobretudo na ONU, e tentando por meio dessas plataformas encontrar apoio e ressonância para suas posições, alinhado ao nosso histórico de tradição diplomática de saídas multilaterais e solução mediada de conflitos.
O Brasil também deve tentar continuar a trabalhar com outros países que compartilham preocupações semelhantes e tenham incentivos para pressionar por uma solução pacífica coordenando esforços diplomáticos, além de tratar disso diretamente com os principais envolvidos no conflito, que são Rússia, Ucrânia, os europeus e os Estados Unidos.
Quais os riscos envolvidos na forma como o Brasil vem buscando se colocar como facilitador para a construção da paz na Ucrânia?
O Brasil tem tentado construir a ideia de que é um país neutro, que advoga pelo não alinhamento ativo. O problema disso é que muitas vezes há uma falta de compreensão dessa estratégia mundo afora, e isso pode favorecer o desenvolvimento de narrativas que podem ou ser desinformadas, porque não conhecem o contexto e as tradições da nossa diplomacia, ou maliciosas, tentando comprometer a sua credibilidade em ser uma voz em temas nos quais usualmente o Sul Global é diminuído.
O risco é que o Brasil possa ser visto, em alguns casos como a imprensa internacional usou, até como facilitador da Rússia, como forma de beneficiar os russos na medida em que relativizaria a responsabilização do Kremlin por tudo o que está acontecendo, suscitando uma discussão sobre a legitimidade do Brasil para participar desse esforço de mediação. Isso contaminaria aquilo que se espera em matéria de mediação de um conflito, porque macula a credibilidade para que no futuro os dois lados vejam no Brasil um player cujas características o habilitem para que possa exercer esse papel.
O cálculo desses movimentos, por vezes ligados à Rússia, por vezes ligados à Ucrânia, tem que ser muito bem feito pela diplomacia brasileira. Diplomacia tem a ver com construção de reputação, credibilidade, constância, e tudo que foge muito às expectativas causa insegurança. Precisamos administrar como comunicaremos essas ambições para que não sejamos visto com um país inconstante, não alinhado aos seus próprios valores políticos e sociais e tradições de política externa.
Quais são os potenciais benefícios para o Brasil desse engajamento?
Têm a ver com o cerne da política externa do governo Lula, com a ambição de fazer do Brasil um país importante, visto internacionalmente não apenas como uma potência regional, mas como uma potência de vocação global, interessado em múltiplos temas da agenda além dos mais óbvios nos quais já tem sua vocação natural reconhecida, como meio ambiente, combate à fome, segurança alimentar e políticas de desenvolvimento.
O Brasil sob Lula tem uma visão muito reformista do sistema internacional e uma visão muito crítica à liderança como é exercida pelos Estados Unidos e pela Europa, e acredita que fortalecer vozes do Sul Global é uma forma também de propor um sistema mais plural e mais democrático no campo internacional.
Esse esforço que vemos agora em relação à Ucrânia faz parte do entendimento de que o mundo caminha para a multipolaridade e que o Brasil pode estimular esse caminho. A guerra da Ucrânia é um espaço entre outros nos quais o Brasil vai tentar incentivar a instalação cada vez mais inevitável da multipolaridade. Nesse sentido, o Brasil se envolve na Ucrânia não apenas pela resolução do conflito em si, mas porque a Ucrânia serve ao propósito de reforçar uma visão de política externa com esse perfil e uma visão de relações internacionais que supere a pax americana e as estruturas de governança que existem desde o fim da Segunda Guerra Mundial.