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Histórias com final feliz: 10 anos de casamentos homoafetivos no país

Até abril de 2023, Brasil registrou 76.430 uniões em cartório Publicado em 21/05/2023 – 10h16 Por Rafael Cardoso – Repórter da Agência Brasil – Rio de Janeiro Agência Brasil — “Foi um ato de amor, mas também um ato político”. Essa convicção une os três casais homoafetivos que aceitaram conversar com a Agência Brasil sobre […]

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Fernando Frazão/ Agência Brasil

Até abril de 2023, Brasil registrou 76.430 uniões em cartório

Publicado em 21/05/2023 – 10h16

Por Rafael Cardoso – Repórter da Agência Brasil – Rio de Janeiro

Agência Brasil — “Foi um ato de amor, mas também um ato político”. Essa convicção une os três casais homoafetivos que aceitaram conversar com a Agência Brasil sobre os 10 anos da decisão do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) de que nenhum cartório no Brasil poderia recusar a celebração do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Desde 14 de maio de 2013, portanto, esse registro civil deixou de ser um privilégio de pessoas heterossexuais.

Otávio e Fernando, Fabia e Gabi, Toni e David. Os casais que você vai conhecer melhor nessa reportagem estão entre os 76.430 que registraram a união em cartório desde 2013 em todo o país. Uma média de 7,6 mil casamentos por ano: 56% entre casais femininos e 44% entre casais masculinos. A lista dos estados com mais celebrações é liderada por São Paulo (38,9%), seguido pelo Rio de Janeiro (8,6%), Minas Gerais (6,6%), Santa Catarina (5%) e Paraná (4,6%). Os números são da Central de Informações do Registro Civil (CRC Nacional), administrada pela Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil).

Até 2011, os cartórios eram obrigados a pedir uma autorização judicial para registrar uniões homoafetivas. E a sorte do casal dependia do magistrado que julgasse o caso, que em muitos casos negava o pedido. A justificativa era a ausência de lei, que, vale lembrar, continua não tendo sido contemplada no Congresso Nacional. O que mudou em 2011 foi uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que igualou uniões estáveis homoafetivas às heteroafetivas. Mas foi só a partir da Resolução nº 175, de 2013, do CNJ que foi autorizado o casamento civil em todos os cartórios do país.

Otávio e Fernando

Quando Otávio Furtado (44 anos, jornalista) e Fernando Gomes (44 anos, advogado) decidiram que era a hora de se casar, havia a certeza de que seria preciso travar longa disputa judicial. O ano era 2012 e apenas a união estável homoafetiva era oficialmente permitida no país. Os poucos que tinham conseguido o registro civil de casamento tinham entrado com ações na Justiça. Mas por uma coincidência feliz, a união foi oficializada de forma mais simples e rápida do que pensavam.

“A gente deu entrada nos papéis em maio de 2013 e normalmente o processo todo levava 30 dias, que era o tempo padrão para o Ministério Público manifestar se existia algum tipo de irregularidade. Isso para qualquer casal, inclusive hétero. Nesse tempo, a CNJ determinou que nenhum cartório poderia negar o registro para casais homoafetivos. E o nosso pedido foi o primeiro a ser aprovado no estado do Rio”, lembra Fernando.

Em julho, eles estavam legalmente casados e, em setembro, celebravam em uma festa com amigos e família. Todo o processo até o dia cerimônia acabou despertando nova consciência no casal. Eles contam que até, então, não tinham passado por situações mais graves de homofobia. O que admitem ter muita relação com algumas posições de privilégio: são homens, brancos, de classe média, morando em um bairro como Ipanema, que concentra um número grande de pessoas LGBTQIA+.

“Eu sempre falava que não queria ficar levantando bandeira por ser gay. E o nosso casamento foi a grande virada de chave na minha vida. Pela primeira vez, de forma repetida, eu tive que lidar com situações de homofobia. Na hora de organizar o casamento, por exemplo, a maior parte dos fornecedores não estava preparada para celebrar uma relação homoafetiva. E tinha de tudo, desde a pessoa que achava que na cerimônia ia descer uma drag queen do teto, até as pessoas que perguntavam quem ia fazer o papel da noiva”, conta Otávio.

A partir desse conjunto de experiências, os dois passaram a se preocupar com pautas que iam além da própria “bolha”.

“A gente pensava no casamento como um momento só nosso. E começou a perceber que era egoísmo pensar daquele jeito. Na cerimônia, uma das nossas madrinhas falou de como nossa decisão iria atingir outras pessoas. E aí, mais uma vez, caiu a ficha de que aquilo também era um ato político, que já tinha começado lá atrás quando a gente decidiu registrar em cartório. Outras situações foram surgindo e mostrando que eu deveria aprofundar esse caminho do ativismo. Usar o nosso privilégio para abrir portas a outras pessoas”, afirma Otávio.

Fabia e Gabi

Gabi Torrezani (31 anos, produtora audiovisual e doula) conseguiu uma oportunidade de estágio na produtora de vídeo da Fabia Fuzeti (47 anos, videomaker). Durante meses, a relação entre as duas evoluiu das conversas sobre trabalho para a amizade e, então, o namoro. Depois de dois anos, veio a ideia do casamento. O pedido, feito pela Fabia, está registrado em áudio no início do documentário “Vestidas de Noiva”, produzido pelas duas para falar tanto do processo de casamento delas, que aconteceu em 2014, quanto do histórico da união homoafetiva no Brasil.

Gabi Torrezani e Fabia Fuzeti. – Foto Ivson

“Com a gente foi super fácil, o juiz de paz foi bem fofo, quis tirar foto com as noivas. Mas a gente sabe que nem todos os cartórios foram assim. Na época, muitas pessoas ainda escreviam para a gente e falavam que tinham tentado casar na cidade em que moravam e não deixaram. Era obrigatório, mas muitos cartórios alegavam que não faziam o registro lá”, diz Fabia Fuzeti.

Até o dia oficial do “sim”, as duas tiveram de passar por algumas situações desconfortáveis. A mãe de Fabia teve dificuldades para lidar com o fato de a filha estar namorando uma mulher. Mas ao ver que outras pessoas ao redor não se importavam com a situação, não só superou o estranhamento como ajudou nos preparativos do casamento. Os avós da Gabi não compareceram no dia da cerimônia, o que a deixou muito triste pela proximidade que tinha com eles. Mas um ano depois estavam presentes no lançamento do documentário.

As duas dividem um blog de viagem chamado Estrangeira, que com o tempo passou a focar em experiências específicas do público LGBTQIA+. Além das dicas de viagens sobre destinos mais atrativos e mais seguros, compartilham momentos do casal. Dizem que estavam cansadas de ver histórias com mulheres homossexuais sempre a partir de um viés negativo, seja na ficção ou no noticiário: “A gente queria ser um modelo de final feliz”, diz Fabia.

Por ser uma história ainda em construção, elas pensam nos próximos capítulos e em novas lutas que precisam ser superadas. O casal planeja ter filhos e lamenta não ver uma movimentação política mais contundente sobre a igualdade quando se trata dos direitos de maternidade para as mulheres homossexuais.

“Para a mulher que não é a gestante do casal registrar o bebê como filho dela, tem que ter feita a fertilização em uma clínica. As duas têm que levar um papel provando que são casadas e que fizeram o processo na clínica. Quando um casal hétero vai ao cartório, ninguém pede para ver o papel com o registro da relação sexual que gerou o bebê. Simplesmente chega lá e registra. Isso faz com que mulheres que não tenham grana para procurar uma clínica, que topam uma inseminação caseira, estejam à margem da lei e precisem entrar com uma petição judicial. Isso, para a gente, é muito violento”, afirma Gabi.

As duas defendem a necessidade de que o Sistema Único de Saúde (SUS) possa oferecer o direito de fertilidade assistida para todos os que desejarem. Hoje, a legislação privilegia apenas casais heterossexuais.

“A fertilidade assistida no SUS é para pessoas que eles consideram inférteis, que são basicamente os casais héteros que passam por uma triagem. Mulheres saudáveis, férteis, que precisam do tratamento para engravidar e ter acesso ao banco de sêmen não se encaixam nessa categoria. Toda uma população fica excluída de um serviço de saúde que teoricamente é universal”, diz Gabi.

Toni e David

Toni Reis (59 anos) e David Harrad (65 anos) se conheceram na saída da estação de metrô Highgate Station, em Londres, em uma noite de março de 1990. Nascido no interior paranaense, Toni tinha se formado há um ano em letras na Universidade Federal do Paraná (UFPR) e passava uma temporada na Europa para estudar e conhecer novas culturas. Nascido no interior da Inglaterra, David era casado com uma mulher quando conheceu Toni. Do encontro veio a convicção de que era o momento certo para viver um relacionamento homoafetivo. Ele se separou da mulher e em 1991 os dois vieram juntos para o Brasil.

No novo país, David viveu um tempo com a documentação irregular e acabou sendo preso em 1995. Tinha duas opções para não ser deportado e conseguir o visto de permanência: se casar com uma mulher brasileira ou assinar um contrato de trabalho com uma empresa local. A segunda alternativa era a única viável naquele momento, porque o casamento homoafetivo estava longe de ser autorizado no Brasil. Até que em 2011, depois da decisão do STF, o casal conseguiu registrar a união estável.

“Aparecíamos nas paradas LGBTI+ vestidos iguais de smoking, de noivos, para chamar a atenção pelo direito ao matrimônio igualitário. Mas além do significado político, o registro da união estável proporcionou uma segurança jurídica que nós não tínhamos antes como casal. Cansei de conhecer histórias de famílias que queriam tomar os bens do parceiro do filho, quando este faleceu. Também possibilitou que pudéssemos finalmente realizar o sonho de adotar filhos e ser pais”, explica David.

O casamento civil dos dois no cartório, apesar de autorizado pelo CNJ desde 2013, só aconteceu em 2018. Até então, consideravam a união estável suficiente. O que os fez mudar de ideia foi o medo de que a eleição de Jair Bolsonaro provocasse a perda de direitos, uma vez que sempre foi explícito o posicionamento homofóbico do ex-presidente. Eles cogitaram morar fora do país e queriam mais uma proteção jurídica caso precisassem viajar com os três filhos, então adolescentes.

Toni Reis, David Harrad e filhos. Foto divulgação.

“A gente nunca precisou do papel para o amor. Porém, ele dá segurança jurídica para o patrimônio e para os filhos. Então, tem as vantagens legais. E tem o significado político. Hoje, ninguém pode falar que nós não somos uma família”, afirma Toni Reis.

Toni se tornou uma referência na luta pelos direitos da população LGBTQIA+. Ele foi o primeiro presidente da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), fundada em Curitiba em 1995. É especialista em sexualidade humana, mestre em filosofia e doutor e pós-doutor em educação. Para ele, o direito ao casamento foi uma vitória importante, mas ainda existe uma série de desafios a serem superados.

“Todas as nossas decisões sobre direitos LGBT foram tomadas pelo STF. O que nós precisamos é colocar todas essas decisões de adoção, casamento, doação de sangue, discriminação em leis que passem no Congresso Nacional. Pode durar cinco, dez ou 50 anos, mas nós vamos conseguir. Nós queremos ter também o nosso Estatuto da Diversidade Sexual e um estatuto que proteja todas as famílias”, diz Toni Reis.

Edição: Graça Adjuto

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