Agentes negros morrem mais do que colegas brancos e são minoria desproporcional nos cargos mais altos. Mesmo sofrendo racismo organizacional, muitos enxergam o mundo e agem pela lente da instituição, diz especialista.
Publicado em 16/05/2023
Por Matheus Moreira
DW — Em média, um policial foi assassinado – dentro ou fora do serviço – no Brasil a cada dois dias em 2020, segundo dados do Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Ao todo, são 194 policiais, entre civis e militares. Destes, 121 eram negros, o equivalente a seis em cada dez.
Policiais negros são a minoria nas policias do Brasil. Na Polícia Militar, são cerca de 150 mil dos mais de 385 mil PMs. Já na Polícia Civil, são ainda menos presentes, menos de 24 mil dentre 94 mil.
A presença de policiais negros nos efetivos não impede que a maior parte das vítimas da letalidade policial no país também sejam negras. Em 2019, mais de 6.351 pessoas foram mortas por policiais civis e militares, destas, cerca de 5.000 eram negras — oito em cada dez.
Os números falam por si, mas não explicam por que a presença de policiais negros nas forças de segurança não impede a violência contra a população negra.
Isso acontece porque policiais negros são, sobretudo, policiais, segundo Livio Rocha, investigador da polícia civil e conselheiro do FBSP.
“Ser policial é um modo de vida. Na polícia, é o modo de ver o mundo, pela lente da instituição”, afirma.
A pesquisa de doutorado de Rocha na Universidade Federal do ABC (UFABC), em São Paulo, abrange o que chama de racismo organizacional, aquele que parte da instituição contra as pessoas negras que integram a própria instituição.
Embora o racismo organizacional não esteja restrito à polícia, o investigador ressalta que a prática discriminatória dentro das forças de segurança eleva o perigo da violência nas ruas.
“O policial carrega na cintura o poder entre a vida e a morte, por isso é essencial combater o racismo na polícia.”
A farda como ascensão social
A busca por ascender socialmente é um dos fatores que podem levar jovens a ingressarem nas forças de segurança, em especial na Polícia Militar, que tem um salário atrativo e requer um diploma de conclusão do Ensino Médio.
“Um policial militar com Ensino Médio começa ganhando mais de R$ 3.000. Que outro emprego cujo exigência é ter Ensino Médio completo e que abre milhares de vagas por ano que paga mais de R$ 3.000 como salário inicial?”, diz.
Para se ter uma ideia, no Rio Grande do Norte, estado com a menor remuneração do país para soldados da Polícia Militar, o salário inicial líquido em 2021 era de R$ 3.500. A média brasileira é de 5.800.
O salário não é o único fator. Questões externas à polícia também podem levar negros ao ingresso na corporação.
Jovens negros têm maior taxa de desemprego. De acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Continua (PNAD) de agosto de 2022, negros representam quase dois terços dos desempregados do país.
“Um cara que não recebe educação, saúde ou respeito da segurança pública, uma hora, decide virar o carrasco, ter respeito. Isso porque vivemos em uma sociedade violenta na qual aquele que tem poder de fogo é respeitado”, analisa Rocha.
O desejo de estar do outro lado da abordagem policial, para evitar truculência e ter reconhecida a sua integridade ética e moral, pode ser um fator para o ingresso de negros nas polícias, segundo a antropóloga Aline Maia, pesquisadora do Laboratório de Antropologia e História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Ascensão pela farda não é novidade
A ascensão social de negros por meio da farda não é novidade. Durante a escravidão, negros escravizados e alforriados ingressavam nas forças de segurança em busca da fuga de senhores de engenho e de respeito.
Apesar disso, hoje, os negros ainda são minoria nas patentes mais altas das forças de segurança. Há uma disparidade dentro das policiais entre os postos mais altos e mais baixos da cadeia de comando, segundo Maia.
“Na polícia há uma estratificação na voz de comando das hierarquias. Os praças são majoritariamente negros e os oficiais são pessoas que se autodeclaram brancas. Algumas carreiras de prestígio, como a de delegado, tem uma camada acentuada de pessoas brancas”, diz.
Maia explica que a criação do que seria a polícia militar como a conhecemos hoje nasce com a chegada da coroa portuguesa ao Brasil no século 19. Ela afirma que a massa de escravizados no país e a iminência da escravidão contribuíram para a um policiamento cujo princípio era garantir a supremacia branca.
Ela diz ainda que posições mais baixas nas cadeias de comando se devem ao que chama de trabalho sujo e que isso também não é novidade.
A pesquisadora cita a guerra do Paraguai como exemplo. O decreto Nº 3.725, de novembro de 1866, determinava que os escravos que estivessem em condições de servir o Exército na guerra contra o país vizinho seriam libertos.
“O racismo estrutural faz com que essas posições de menor prestígio tenham uma ocupação massiva da população negra. São trabalhos que a branquitude não quer fazer”, afirma a antropóloga.