Por Leonardo Rossatto
O Bolsonarismo foi uma enorme aglutinação de forças que não necessariamente se gostam, mas se reuniram em torno de um fator em comum: o ódio ao PT.
Foi assim que militares, evangélicos, o agronegócio, a maior parte da Faria Lima e ala punitivista do Judiciário, representado pela força tarefa da Operação Lava Jato, se juntaram em 2018 para viabilizar uma candidatura que, além de improvável, soava como abominável.
Naquele momento, ficou claro que esses grupos políticos se juntariam a qualquer pária (e Bolsonaro foi um pária por 28 anos na Câmara dos Deputados) para impedir o PT de voltar ao poder.
Os quatro anos desastrosos do governo Bolsonaro não tiraram a coesão desse grupo. E o motivo é relativamente simples:
Lula voltou a ser um ator político viável, com a anulação de suas condenações, após ficar claro que 1) Moro não poderia julgar as ações de Lula em São Paulo sendo juiz em Curitiba e 2) Moro era um juiz parcial, que agia em conluio com a força tarefa da Lava Jato.
O fato do PT ainda ser uma ameaça fez com que esses grupos voltassem à coesão em 2022, mesmo após afastamentos pontuais, como o do grupo da Lava Jato, ocorrido após Moro sair do governo Bolsonaro em abril de 2020. Em outubro de 2022, Moro estava de volta, fazendo papel de assessor para Bolsonaro nos debates presidenciais do segundo turno.
Lula venceu a eleição não pelo esfacelamento do bolsonarismo, mas pela organização da sociedade em torno da necessidade de superar Bolsonaro. É bom lembrar que, apesar de fazer um governo péssimo, Bolsonaro teve, no segundo turno de 2022, mais votos do que no segundo turno de 2018.
Óbvio que o uso da máquina contou para isso: o orçamento secreto, as manipulações eleitoreiras, as medidas populistas e a coação de eleitores tiveram patamares inéditos nas eleições pós Constituição de 1988, mas isso não anula o fato de que os mesmos grupos políticos, econômicos e sociais que estavam aglutinados em torno de Bolsonaro na eleição de 2018 tornaram a se aglutinar em torno de Bolsonaro na eleição de 2022.
Mesmo assim, Bolsonaro perdeu. A vitória de Lula foi um milagre da democracia, uma revolução que ocorreu sem nenhum tiro. E era algo tão fora do radar pelos bolsonaristas que desencadeou uma série de tentativas de anulação do pleito.
Algumas oficiais, como o processo em que o PL tentou anular 250 mil urnas (mais de 60% das urnas, uma completa maluquice) e terminou tomando uma multa de R$ 22 milhões. Outras extra-oficiais, como a minuta de golpe encontrada na casa de Anderson Torres e as conversas entre oficias das Forças Armadas para tentar convencer o comando das Forças Armadas a aderirem ao golpe, “soltando uma ordem de prisão para o Alexandre de Moraes”.
Tudo soa como maluquice – e é, mas de fato tudo foi cogitado por Bolsonaro e por seus auxiliares – e, de acordo com eles, esses movimentos todos estavam “dentro das quatro linhas da Constituição”.
Em nenhum momento Bolsonaro reconheceu a derrota. Fomentou os acampamentos em frente aos quartéis e os bloqueios de estradas, embora não pudesse fazer isso em suas redes oficiais. Mandou emissários, como Braga Netto, para dizer aos acampados para que eles “mantivessem a esperança”.
Todo esse movimento culminou na grotesca tentativa de golpe de 08 de janeiro, quando bolsonaristas invadiram os prédios dos três poderes sob o olhar benevolente de forças de segurança completamente paralisadas.
Por que é necessário fazer toda essa recuperação para explicar a crise atual do bolsonarismo? Embora o bolsonarismo ainda tenha força inquestionável no Congresso, só para ficarmos em um exemplo, o fato é que a tentativa de golpe de 08 de janeiro deu legitimidade para que as instituições reagissem contra todo o conjunto de ataques cometidos pelo bolsonarismo contra a democracia nos últimos quatro anos.
E essa reação tem revelado um número acintoso de crimes cometidos por Bolsonaro e por seu grupo de ajudantes mais próximo. Mas também tem tido outro efeito: o de desfazer essa aglutinação de forças que se juntou em torno do bolsonarismo. Em um contexto em que todos são investigados, a luta agora é pela sobrevivência política e pelo reposicionamento em um cenário de consolidação do governo Lula. E nisso alguns grupos estão agindo de maneira mais assertiva que outros.
Os militares, por exemplo, foram o primeiro grupo atingido. O processo de desbolsonarização das Forças Armadas contou com a troca de comando com 20 dias de governo – saiu o General Júlio César de Arruda, que não mostrou disposição ao diálogo com o governo Lula, e entrou o General Tomás Miguel Miné Ribeiro Paiva, que tomou para si a missão de “despolitizar” as Forças Armadas.
Além disso, o General Gonçalves Dias, que cuidava do GSI em 08 de janeiro, ainda com o corpo funcional contratado pelo General Heleno, também saiu no final de abril. No lugar, entrou o General Marcos Antonio Amaro dos Santos, mas as funções do GSI foram bastante reduzidas: a ABIN passou para a Casa Civil, enquanto a segurança pessoal do presidente Lula ficou à cargo da Policia Federal.
Os evangélicos bolsonaristas, apesar de reiteradas reclamações, seguem completamente ignorados pelo governo Lula. Alguns chegaram a ser investigados pelos episódios de 08 de janeiro, embora os nomes mais importantes do entorno de Bolsonaro, como o Pastor Silas Malafaia e a família Valadão, da Igreja Batista da Lagoinha, tenham passado incólumes até o momento.
O agronegócio viu, na Agrishow, que não será tratado com a mesma prioridade se continuar defendendo a agenda do ex-presidente Bolsonaro. A feira agrícola realizada em Ribeirão Preto convidou Bolsonaro para o evento de abertura, mesmo sabendo que Bolsonaro não era mais o Presidente da República.
O governo Lula, em resposta, cancelou todas as programações que tinha na feira. Para além disso, também viu ministros comparecerem em peso à feira do MST, realizada no Parque da Água Branca entre os dias 12 e 14 de maio. O recado do governo Lula para esses dois grupos é relativamente simples: ameaçar não vai adiantar nada. Ou esses grupos se enquadram ao novo momento do país ou tendem a perder protagonismo na discussão de políticas públicas.
Com a Faria Lima, o grande recado, para além da discussão com o Banco Central, veio nessa semana: o governo Lula anunciou o fim do PPI (Preços de Paridade de Importação) e também uma redução expressiva no preço dos combustíveis (na faixa de 12% para gasolina e diesel e na faixa de 21% para gás de cozinha).
O preço de paridade de importação, imposto pelo governo Michel Temer, vinculou o preço dos combustíveis a fatores como a cotação do dólar e o preço internacional dos barris, sem travas que tornassem o reajuste de preços mais previsível.
Com o PPI, foram realizados inacreditáveis 117 reajustes de combustível no ano de 2017, o que contribuiu bastante para a paralisação dos caminhoneiros em maio de 2018, e o preço médio do combustível mais do que dobrou até maio de 2022, quando Bolsonaro trocou a direção da Petrobrás e trabalhou em medidas paliativas para controlar o preço dos combustíveis até a eleição.
Todo esse cenário de desestruturação está sendo revertido agora, e o mercado aparentemente entendeu o recado: as ações da Petrobrás subiram mais de 2% após o anúncio da mudança na política de preços.
Com um dos grupos, porém, não há qualquer possibilidade de conversa: os punitivistas da Lava Jato. E isso porque eles agiram em conluio para inviabilizarem Lula, tanto politicamente quanto juridicamente. É por isso que personagens importantes do governo, como o Ministro Flávio Dino, não fazem qualquer cerimônia ao comemorar a cassação do mandato de Deltan Dallagnol, determinada pelo TSE.
Para o governo Lula, o modus operandi da Lava Jato deve ser desencorajado, e ações como a cassação de Deltan pelo Poder Judiciário são um passo decisivo nisso. Mas é preciso ressaltar: embora a cassação de Deltan seja positiva do ponto de vista político, fica sempre um enorme desconforto com o protagonismo excessivo do Poder Judiciário nas decisões do país.
Deltan deveria ter sido impedido pelas urnas. Embora o Judiciário tenha tido um papel fundamental na proteção à democracia, não podemos, enquanto sociedade, dar carta branca para que ele decida aquilo que é prerrogativa do Executivo, do Legislativo ou da sociedade civil.
Nosso Judiciário está hipertrofiado e, normalmente, é um instrumento de proteção às elites do país. Não é o Poder Judiciário, na composição atual, que vai ajudar a tornar o Brasil mais justo e menos desigual (mas, reitero, muito obrigado pelos serviços prestados na manutenção da democracia).
No entanto, segue sendo uma boa notícia a menor aglutinação do bolsonarismo após a saída de Bolsonaro do poder. Embora o bolsonarismo continue sendo muito forte nas redes sociais, o discurso antipetista não parece ser suficiente para produzir o mesmo nível de mobilização que se produzia enquanto Bolsonaro estava no poder, especialmente agora em que o governo Lula começa a apresentar, de fato, seus primeiros resultados.
Se a popularidade de Lula subir, a tendência de “despolitização” nesses grupos deve aumentar. Com exceção da Lava Jato: esse grupo, em específico, só sobrevive apostando na radicalização contra o governo Lula. Especialmente agora em que eles se veem como na inusitada posição de alvo da Justiça.