“Narcopentecostalismo” se torna fenômeno nas comunidades cariocas, influenciando na conduta dos traficantes e nas disputas por território
O Brasil, como um todo, tem se tornado mais evangélico. Segundo pesquisa do IBGE, o número de evangélicos cresceu 61% entre 2000 e 2010. José Eustáquio Diniz Alves, Doutor em demografia pela UFMG, aponta que o percentual de evangélicos na população brasileira pode chegar a 40% em 2030, caso essa crescente continue.
A religião se tornou referência nas comunidades do Rio por seu caráter acolhedor. As igrejas oferecem segurança, apoio material, espiritual e psicológico aos moradores, gerando identificação e sensação de pertencimento. No entanto, isso não se restringe apenas a eles. Narcotraficantes, chefes de facções criminosas nas comunidades, também têm se aproximado da crença, que influencia no comportamento dessas organizações.
A “Tropa de Arão”, nome que os próprios traficantes deram à facção, hoje domina as comunidades da Cidade Alta, Pica-Pau, Cinco Bocas, Parada de Lucas e Vigário Geral, Zona Norte do Rio. Os membros das organizações criminosas elegeram referências bíblicas como seus principais símbolos por conta dessa aproximação com a religião neopentecostal.
O território do qual detém o controle passou a ser chamado de “Complexo de Israel” pelo chefe da tropa e estrelas de David foram espalhadas por toda as comunidades.
A situação tem chamado atenção, inclusive, de pesquisadores, que denominaram o fenômeno de “Narcopentecostalismo”. “O termo tem sido empregado por diversos pesquisadores que analisam o fenômeno de narcotraficantes que assumem, de forma explícita e aberta, religiões neopentecostais, inclusive em suas atividades criminosas”, comenta Kristina Hinz, cientista política e pesquisadora do Laboratório de Análise da Violência da UERJ.
A religião assumiu importância tal para os chefes de facção, que tem influenciado tanto no comportamento pessoal dos traficantes, quanto nas estratégias de manutenção de poder e disputa de territórios, afirmam os pesquisadores.
“São traficantes que ao mesmo tempo participam da ‘vida do crime’ e da vida religiosa evangélica, indo a cultos, pagando o dízimo e até mesmo pagando por apresentações de artistas gospel na comunidade”, diz Hinz, enfatizando que mesmo “na vida do crime”, os criminosas também tem rotinas religiosas.
Exemplo disso é o chefe do tráfico no “Complexo de Israel”. Ele é alvo de 20 mandados de prisão por homicídio, tortura, tráfico, roubos e ocultação de cadáver, mas declarou-se abertamente evangélico, possuindo amigos pastores e espalhando “a palavra” pela comunidade. Além disso, ele também é chefe do TCP, terceiro maior grupo armado do Rio e rival histórico do comando Vermelho. O líder do tráfico tem imposto seu domínio e delimitado seu espaço de poder através da religião, espalhando símbolos e, por vezes, ordenando fechamento de terreiros e outros templos religiosos.
A rejeição por parte da comunidade evangélica é grande. Carlos Alberto, pastor há 17 anos na Cidade de Deus, já foi traficante, mas repudia a união da vida religiosa e da vida do crime. “O pastor tem que mostrar para a pessoa que ela pode se arrepender, mas para ser aceito como evangélico ela tem que largar tudo que é contrário aos princípios bíblicos, morais e éticos”, afirmou o líder religioso.
Além disso, evangélicos salientam a importância de ser “praticante” para realmente honrar a religião. O sociólogo Diogo Silva Corrêa, autor do livro Anjos de Fuzil, explica que apenas aderir às crenças religiosas não adianta de nada sem realmente adquirir um estilo de vida que esteja de acordo com a religião.
A pesquisadora Viviane Costa é contra o termo “narcopentecostalismo” porque, segundo ela, “a religião está presente na dinâmica do tráfico desde sua gênese”.
O filme Cidade de Deus, por exemplo, retrata uma situação recorrente nas décadas de 80 e 90. Traficantes mudavam seus nomes após se associarem a religiões afro-brasileiras, como candomblé e umbanda. Dadinho, personagem do filme, passa a se chamar Zé Pequeno após ter seu corpo fechado em um ritual religioso.
Kristina Hinz finaliza dizendo que o surgimento do “Complexo de Israel” é apenas a exemplificação dos contornos que a relação tráfico-religião assumiu, num universo que a dinâmica religiosa já existia e que, agora, incorpora a cultura neopentecostal.
Paulo
12/05/2023 - 22h54
Religião e crime, como conciliar mensagens tão opostas? Tudo parece possível na ótica do neopentecostalismo, uma heresia reformulada…