Evento inédito teve como objetivo conectar intelectuais e aproximar mídias de países do Sul Global
Publicado em 07/05/2023 – 13h18
Por Mauro Ramos – Brasil de Fato – Xangai (China)
Brasil de Fato — “O conflito imposto pelos Estados Unidos [à China] se deve em parte à queda do controle ocidental sobre a ciência e a tecnologia. Gradualmente, o controle neocolonial sobre as finanças, recursos e ciência e tecnologia se esgotou, mas a estrutura neocolonial permanece no que diz respeito ao controle ocidental sobre os sistemas de armas e informações”, disse Vijay Prashad, diretor do Instituto Tricontinental e editor-chefe do Globetrotter, na abertura da conferência “Comunicação como Solidariedade”, organizada pela Escola de Comunicação da Universidade Normal da China Oriental junto a outras diversas entidades chinesas em Xangai, na China.
Além de representantes da Press TV, TeleSUR, da russa RT e da chinesa CGTN, o evento contou com integrantes de mídias populares como Pan African TV, ArgMedios e o Brasil de Fato, reunindo mais de 100 pesquisadores e profissionais de mídia da China, Índia, Gana, Zâmbia, África do Sul, Brasil, Rússia, entre mais de 15 países.
Prashad afirmou que as potências ocidentais têm controle quase absoluto sobre os sistemas de informação. “Esse controle é exercido por meio da dominação ocidental da infraestrutura, como cabos submarinos, e redes humanas de produção de informações, e pelo poder ideológico da mídia ocidental estabelecida durante os tempos coloniais.”
Uma das anfitriãs do encontro, Lu Xinyu, diretora do Centro Cornell de Humanidades Comparadas, da Universidade Normal do Leste da China, afirmou que o movimento por uma nova ordem da década de 1970 tentou resolver o problema do desequilíbrio da estrutura da mídia global, mas falhou. “Então hoje esperamos re-entender esta questão: um dos aspectos é o domínio da mídia por parte do Ocidente. Isso exige que nós, os meios de comunicação e as organizações de mídia do Sul global, trabalhemos juntos.”
Encontro inédito entre mídias alvo de sanções e censura pelo Norte Global
Em 2010, documentos do Departamento de Estado dos EUA divulgados pelo WikiLeaks revelaram que o Ministério das Relações Exteriores do Reino Unido havia comunicado à embaixada dos EUA nesse país que o governo britânico estava “explorando maneiras de limitar as operações do serviço Press TV”.
No documento, a chancelaria britânica afirmava que a legislação nacional e internacional não permitiam retirar a licença da Press TV, e que uma possibilidade poderia ser aberta caso mais sanções fossem impostas ao Irã.
Finalmente, em 2013, a licença do canal estatal iraniano foi revogada no Reino Unido por ter supostamente violado a Lei de Comunicações do país. Nos anos seguintes, a mídia sofreu diversos bloqueios em suas contas do YouTube e Gmail, foi banida do Facebook, teve seu site presstv.com confiscado e, no final do ano passado, a operadora de satélite francesa Eutelsat decidiu tirar o canal do ar.
Em diferentes níveis, as mídias estatais presentes no encontro vêm enfrentando censuras, bloqueios e sanções impostas pelos Estados Unidos e Europa ou governos de direita, como no caso da TeleSUR.
A multiestatal já foi retirada da programação da Corporação Nacional de Telecomunicações, um canal estatal do Equador em 2018, sob o governo de Lenín Moreno. Após o golpe de Estado contra Evo Morales na Bolívia em 2019, a estatal Entel, sob o governo de facto de Jeanine Áñez, suspendeu a transmissão do canal fundado por Hugo Chávez.
Em 2021, o Reino Unido retirou a licença da CGTN sob o argumento de que a emissora seria controlada diretamente por um partido político, o que não é permitido no país. Já a RT tem sido banida de todo o território europeu e de plataformas como YouTube. A versão em espanhol do canal na plataforma de vídeos de propriedade do Google tinha 6 milhões de seguidores até ser derrubada.
Em debate sobre a busca de soberania para as mídias do Sul Global, a presidenta da TeleSUR, Patricia Villegas, defendeu que os países incluídos no conceito desenvolvam plataformas próprias, como satélites, servidores e redes sociais. “Os conteúdos que fomos construindo estão em grandes rodovias que são emprestadas e, como os donos são outros, são eles que definem e mudam as regras, bloqueiam você quando quiserem, em função dos interesses que eles defendem. Por isso, se quisermos continuar contando realmente o que acontece em cada um destes territórios, temos que lutar para construir as nossas próprias rodovias”, afirmou.
Para a diretora do Brasil de Fato, Nina Fideles, há uma importância histórica na realização da conferência, “pelo próprio fato de reunir, ao longo de dois dias, pessoas e veículos de mídia de diversos países, que puderam compartilhar experiências e ideias sobre a comunicação do Sul Global”. “Além de termos tido a oportunidade de conhecer melhor a experiência chinesa com relação a comunicação e também ao modelo econômico e social em curso e seu papel na reorientação do cenário geopolítico global”, complementou Fideles.
O fundador do Zambian Post, Fred M’membe, afirmou que o encontro entre as diferentes mídias foi pioneiro. Ele também ponderou que mídias como TeleSUR, RT e CGTN entre outras têm a grande responsabilidade de usar o conhecimento e recursos que possuem para ajudar a criar uma nova mídia, uma nova forma de comunicação. “Nossos adversários, aqueles que querem continuar com as ideias de exploração e humilhação dos outros, estão investindo bilhões em todo o mundo para consolidar suas ideias de dominar o mundo”, disse M’membe, que também é presidente do Partido Socialista da Zâmbia.
Mídias progressistas e pan-africanismo
Outro dos eixos de debate da conferência foi o cenário da mídia no continente africano, assim como a pauta do pan-africanismo. Kambale Musavuli, diretor da TV Pan-Africana, considera que o pan-africanismo vem se enraizando no continente e que o papel das mídias progressistas é essencial ao projeto.
“Conseguimos alcançar o pan-africanismo em nível político reunindo os países na União Africana, mas agora precisamos do pan-africanismo dos povos. Onde está o povo? Ele está nas comunidades rurais, e para alcançá-lo você precisa da mídia, da rádio, da televisão, dos jornais. Estamos usando a mídia, principalmente a TV, para chegar ao povo em áreas remotas. Assim, usando rádios comunitárias, usando televisões administradas por organizações progressistas, será possível disseminar essa visão de uma África unida sob o pan-africanismo”, explica Musavuli.
Kwesi Pratt Jnr, fundador do canal, disse que a imagem e a história da África são permanentemente distorcidas pela mídia hegemônica. “Há uma histeria em todo o mundo que nos impede de escolher nossos próprios amigos e decidir nosso próprio destino. A realidade africana hoje é: aqueles que nos colonizaram e nos escravizaram estão explorando e roubando nossos recursos para maximizar os lucros das corporações multinacionais em vez de desenvolver a África. Esta é a história que precisamos contar e precisamos contá-la à nossa maneira, usando nossos próprios instrumentos.”
A conferência foi escolhida como espaço para a inauguração oficial do Instituto de Pesquisa de Comunicação Internacional da Universidade Normal da China Oriental, que terá Lyu Xinyu como reitora.
A entidade visa contribuir para o desenvolvimento de plataformas de comunicação internacional e redes para os países e regiões do Sul Global, conduzir práticas de comunicação internacional multinível e multicanal para o público do Sul Global e, gradualmente, construir uma instituição de pesquisa abrangente, estratégica e profissional para o trabalho de comunicação internacional da China visando o Sul Global, fornecendo suporte teórico e prático para a China estabelecer uma imagem internacional crível, amável e respeitável no Sul Global.
Edição: Nicolau Soares