O PL2630, o “Projeto de Lei das Fake News”, é boa e necessária medida para contenção do poder das big techs num mundo não mais separado das redes.
Publicado em 05/05/2023
Por Pedro Marin – Revista Opera
Revista Opera — Nos princípios da internet comercial, quando prevaleciam na rede os sites estáticos, os bravos que se dispunham a enfrentar a nova tecnologia diziam que iriam “surfar” na web. Pouco tempo depois, o verbo utilizado era “navegar” na internet. Os que viram a aparição das primeiras redes sociais adaptavam-se, dizendo que iriam “entrar” na internet – tal como se “entrava” no MSN Messenger ou no Orkut. Toda essa terminologia se tornou assustadoramente obsoleta, arcaica e empoeirada, como mouses de bolinha, disquetes ou telas de tubo, à medida que a internet se complexificou, com a aparição de algoritmos e cada vez mais redes sociais, ao mesmo tempo em que o acesso a ela era facilitado, com a popularização de smartphones e redes móveis.
Com o acesso à internet garantido em cada bolso, e com televisões, lâmpadas, geladeiras, câmeras de vigilância, tomadas e uma infinidade de parafernalhas conectadas à rede (a chamada “Internet das Coisas”), a ideia de “surfar”, “navegar” ou mesmo “entrar” na internet se tornou absolutamente incongruente. A internet, antes um espaço virtual, decididamente separado da vida real e acessível por um tempo limitado, tornou-se parte integral desta mesma vida real, 24 horas por dia: antes um espaço acessível a partir dos pulsos de um cabo telefônico, tornou-se coisa indistinguível do ar, pelo qual as ondas de Wi-Fi ou 4G se espalham sem causar maior impressão. Se poderia dizer que a “rede mundial de computadores” tornou-se, efetivamente, uma rede mundial de pessoas, casas, instituições, sentimentos, vocações, pensamentos, produtos, vontades, etc., graças à onipresença das redes e à supremacia dos algoritmos. Ou, ainda – o que talvez seja uma aproximação mais verdadeira – que tais pessoas, casas, instituições, sentimentos, vocações, pensamentos, produtos e vontades tenham se tornado cada vez mais computadorizadas, à medida que se conectavam à rede. Todo meio de comunicação é uma extensão do homem: mas o sentido dessa extensão não é só do homem em relação ao meio; é também do meio em relação ao homem.
A dissolução da fronteira entre o “mundo real” e a internet trouxe intensas mudanças às sociedades, em efetivamente todos os campos humanos: da economia à psique, da política ao entretenimento, da educação à saúde. Houve mudanças boas, evidentemente: esta Revista Opera mesmo não existiria, de forma alguma, sem a internet. Mas há também as negativas: basta imaginar quantos brasileiros não morreram ao longo da pandemia de Covid-19 por conta das mentiras espalhadas ou, ainda, nos assustadores casos de atentados a escolas que testemunhamos nos últimos meses.
Ocorre que, ao contrário do que supunha a maioria daqueles que “surfavam”, “navegavam” ou “entravam” na internet, a rede, que nunca foi verdadeiramente “livre” e “descentralizada”, tornou-se cada vez mais regrada e centralizada. Que essa centralização tenha se dado em torno das mesmas empresas às quais alegremente entregamos nossos dados em troca de entretenimento, e que essas regras sejam invisíveis a ponto de definirem alguns de nossos desejos mais recônditos sem nos darmos conta; tudo isso só prova a efetividade do controle da internet pelas chamadas “big techs” – as grandes empresas de tecnologia – e seus algoritmos. Mesmo aquele cidadão que se afaste do meio, que de bom grado abra mão de ter celulares, televisores ou computadores, se verá inevitavelmente conectado à internet, na mesma medida em que estiver conectado à sociedade. É bastante revelador do impacto social da internet que a única forma de um indivíduo se ver livre de seus efeitos seja, justamente, se separando da própria sociedade. A vida social está tão cabeada à internet hoje quanto os modens dos princípios dos anos 2000.
Apesar dessa intensa conexão entre o “mundo real” e a internet, prevalece o fetiche da rede como um espaço “neutro”, “livre” e sem regras; um mundo à parte que no entanto invade nosso mundo. O mesmo usuário que assina dezenas de contratos ao clicar em botões “eu aceito” é aquele que se insurge contra a regulação da rede; o mesmo cidadão que acredita em notícias falsas é aquele que reclama do “controle da internet” na China; aquele que com satisfação consome as sugestões personalizadas (e indetectáveis) de vídeos, músicas, notícias ou séries é também o que festeja sua libertação da programação televisiva.
Esta confusão da internet como um mundo à parte e neutro é também, em grande parte, alimentada pelas mesmas gigantescas empresas de tecnologia que efetivamente controlam as redes. Elas costumam se opor a projetos de regulação sob o argumento de que eles facilitariam uma espécie de censura governamental sobre a internet. Os incautos acreditam, e reproduzem a versão. Não param para pensar que as leis do governo que em tese censurariam a internet seriam conhecidas; e que este mesmo governo poderia ser alvo tanto de processos quanto de críticas. Mas e as big techs? Quais são as “leis” que, por meio dos algoritmos, impõem à internet e, de quebra, às sociedades que a ela se conectam? Hoje, efetivamente, pouco sabemos sobre estas regras, e quase nada podemos fazer contra elas, a não ser que escorados nas leis do País, nas instituições públicas do mundo real. Isso é: as redes já são reguladas. Mas são reguladas pelas empresas que as controlam, e tal regulação é de todo desconhecida para nós.
Como fica claro, há um problema de soberania não só nacional, mas global: as redes invadiram a vida social no planeta inteiro, que se organiza de acordo com suas próprias leis nacionais, conhecidas por todos. Mas as regras destas redes, impostas pelas empresas, são desconhecidas, invisíveis, e não respeitam fronteiras. Daí decorre que boa parte das regras que regulam a vida social hoje não foram legitimamente legisladas, nem são conhecidas; mas são impostas, sem o conhecimento do cidadão, a toda a sua vida, individual e socialmente.
Usando uma metáfora simples: o uso assíduo de palavrões é, no geral, coisa mal-vista na sociedade brasileira. Se alguma empresa passasse a premiar a esculhambação verbal, os palavrões tenderiam a ser mais usados, e até mais aceitos – e mesmo aqueles que mantivessem a singeleza no falar, mesmo aqueles que se recusassem a vender seus modos por uma premiação privada, inevitavelmente se veriam em um meio social em que os xingamentos tornaram-se comuns, e a única forma de libertar-se dessa nova gramática seria isolando-se do meio social. Assim operam os algoritmos, numa infinidade de campos e temas, com as nossas sociedades. Se o leitor precisar de uma metáfora mais grave e, infelizmente, mais realista, basta substituir a “empresa” usada no exemplo anterior pelas big techs; a premiação oferecida pelo alcance nas redes; e o uso de palavrões por atentados em escolas ou linchamentos. A coisa é gravíssima.
Efetivamente, a internet em sua forma atual – como espaço social virtual regido por algoritmos desconhecidos – põe em xeque, se bate, com a forma social real e suas leis oficiais. Não é, como muitos têm dito, que a internet seja uma “terra sem lei” – ela tem suas próprias leis, invisíveis, que embora típicas do espaço virtual, conflitam com as leis reais e as formas sociais como um todo.
Estas empresas, presentes em todo o mundo, se insurgem agora, no Brasil, contra a o Projeto de Lei 2630 (PL 2630), o chamado “PL das Fake News”, que visa instituir a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet. A votação do PL, proposto há três anos pelo senador Alessandro Vieira (PSDB-CE) e relatado pelo deputado Orlando Silva (PCdoB-SP), estava prevista para a última terça-feira (2), mas foi adiada, em meio a uma ação coordenada de deputados oposicionistas – majoritariamente da extrema-direita – e das grandes empresas tecnológicas.
Do que trata o PL?
O escopo fundamental do PL 2630 é a regulamentação da ação dos chamados “provedores” (redes sociais, buscadores, serviços de “mensageria” e serviços de conteúdo por assinatura) quanto aos conteúdos de terceiros, publicados nas suas plataformas, que digam respeito a sete tipos penais específicos: crimes contra o Estado Democrático de Direito; atos de terrorismo e preparatórios; crime de induzimento, instigação ou auxílio a suicídio ou a automutilação; crimes contra crianças e adolescentes previstos na Lei nº 8.069 e de incitação à prática de crimes contra crianças e adolescentes ou apologia de fato criminoso ou autor de crimes contra crianças e adolescentes; crime de racismo; crime de violência contra a mulher; infração sanitária. A lei só impõe ônus a provedores, e especificamente àqueles que tenham mais de 10 milhões de usuários; e os ônus só dizem respeito a estes sete crimes específicos.
A extrema-direita e setores ultra-liberais da Câmara (como políticos ligados ao MBL e ao Partido Novo) taxaram o PL, em conluio com as big techs, como o “PL da Censura”, insistindo que ele instituiria um “Ministério da Verdade” orwelliano, embora o PL literalmente só trate destes sete crimes. Se conclui que as big techs, a extrema-direita e estes ditos liberais considerem atentar contra o Estado Democrático de Direito, realizar atos de terrorismo, induzir ao suicídio ou à automutilação, crimes contra crianças e adolescentes, racismo, violência contra a mulher e infrações sanitárias todas questões de “liberdade de expressão” (embora no mundo real sejam crimes, com penas bastante profundas e efeitos bastante graves para a sociedade; no mundo virtual dessa gente talvez sejam os comentários típicos de uma pausa para o café). Esses crimes são listados no texto, e parágrafo único do Art. 13 da Seção IV do PL versa que: “a responsabilidade dos provedores por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros […] será restrita aos temas e hipóteses nele [protocolo] estipulados”. O princípio é reafirmado no Art. 14: “delimitação temática de quais conteúdos gerados por terceiros serão passíveis de responsabilização” – os sete crimes mencionados. Não; o PL não autoriza que as big techs tomem nenhum tipo de medida quanto a críticas políticas, mesmo as mais radicais e até mentirosas, nem institui em lei o reconhecimento da natureza da superfície terrestre (ela é redonda, mas os que a dizem plana poderão continuar a dizê-lo, estúpida e livremente). O PL não altera nada para qualquer crime que não estes sete descritos, nem busca instituir um novo tipo de responsabilização dos usuários.
Ressalte-se, ainda, que o PL tem, no texto, um sentido de coibir grandes movimentações na internet (chamadas de “riscos sistêmicos”), não manifestações individuais: é evidente o interesse do texto por ações coordenadas na internet que se encaixem nestes crimes, como as ações preparativas para o 8 de janeiro (“Festa da Selma”) ou as postagens sobre supostos atentados em escolas planejados para o dia 20 de abril. O foco do texto não é que as big techs restrinjam mais as possibilidades de discurso individual dos usuários (coisa que elas já fazem hoje, mas a seu bel-prazer e sem o conhecimento do usuário), mas sim movimentações em massa, muitas vezes estimuladas por robôs e contas falsas.
O PL só cria para as big techs as ideias de “responsabilidade solidária” e “dever de cuidado”. Isso significa que as big techs haveriam de se responsabilizar por eventuais conteúdos publicados por usuários que se apliquem a estes sete crimes – ou seja, as empresas não poderiam seguir usando a desculpa esfarrapada de que “não são responsáveis por conteúdos de terceiros publicados nas suas plataformas” – e estabelece que, por essa responsabilidade solidária, têm o “dever de cuidado” – isto é, uma vez notificadas sobre uma ação criminosa coordenada na internet, devem atuar, caso contrário poderão ser punidas no futuro. Perceba-se que as novas punições instituídas pelo PL só se aplicam aos provedores, às big techs, não aos usuários. O PL institui inclusive a obrigatoriedade de que as big techs avisem os usuários quando um eventual conteúdo tiver sua distribuição restringida ou for excluída, e que elas forneçam um canal direto e rápido para que o usuário possa recorrer dessa decisão. Hoje, podemos ter nosso alcance restrito sem sequer um aviso das redes sociais.
Mas os capítulos que realmente motivam a fúria das big techs são o IV, o V, o VI e o VII, que tratam respectivamente dos deveres de transparência, da publicidade digital, dos direitos de autor e do conteúdo jornalístico.
O capítulo sobre os deveres de transparência impõe, entre outras coisas, que os provedores informem “os principais parâmetros que determinam a recomendação ou direcionamento de conteúdo ao usuário”, incluindo uma descrição dos algoritmos usados, os parâmetros usados nas recomendações, e as razões pelas quais determinados conteúdos aparecem ao usuário. Ele inclusive obriga que seja possível ao usuário “optar entre diferentes formas de exibição, gestão e direcionamento de conteúdos na plataforma”, e impõe aos provedores identificar, de forma clara, quais conteúdos chegam ao usuário por serem “recomendados” e quais são de fato selecionados pelo usuário. Isto é: as big techs terão que desnudar seus algoritmos para o usuário, possibilitando inclusive que ele, o usuário, personalize seus usos. Além disso, os algoritmos teriam de ser disponibilizados para a pesquisa de instituições científicas e tecnológicas – ou seja, as trapaças das redes poderiam ser expostas por gente versada nas linguagens de programação.
Quanto à publicidade digital, é o capítulo que mais enfurece as big techs. Ele impõe que a publicidade deve ser identificada, bem como os seus anunciantes; que o usuário pode alterar os parâmetros que o levaram a receber um anúncio em questão; que os anunciantes sejam obrigados a informar seus documentos antes de realizarem anúncios; que o histórico dos conteúdos publicitários e os critérios e procedimentos utilizados para o perfilamento do usuário sejam acessíveis a ele por até seis meses; e, finalmente, que a publicidade nas plataformas siga a legislação brasileira sobre publicidade, não importando se a rede social em questão ou o anunciante é estrangeiro. Aqui o PL toca no coração financeiro das big techs: os anúncios.
Quanto aos direitos autorais, o PL impõe, fundamentalmente, que os conteúdos protegidos por direitos de autor sejam pagos pelas big techs para nelas serem veiculados. Um dos pontos mais interessantes é o capítulo que proíbe que os provedores de conteúdo sob demanda “aumentem ou reduzam artificiosamente” o uso de obras “a fim de privilegiar, nos sistemas de recomendação baseados em algoritmo, a remuneração a empresa integrante do mesmo grupo econômico […], sócia, controladora ou coligada da plataforma”. Também se impõe que essas plataformas atuem para neutralizar o uso de contas automatizadas “que distorçam artificialmente ranqueamentos e listas de reprodução”. Em resumo: as big techs deverão pagar os artistas, gravadoras e estúdios, mas não poderão privilegiar aqueles que são parceiros.
Por fim, o polêmico capítulo VII, que trata dos conteúdos jornalísticos, obriga as big techs a pagarem às empresas jornalísticas pelo uso, nas suas plataformas, de conteúdos jornalísticos. O texto impede que essa remuneração devida pelas big techs onere o usuário final, bem como proíbe que as big techs façam a remoção de conteúdos jornalísticos para se eximir dos pagamentos. Além disso, define o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) como responsável por coibir eventuais abusos do uso da posição dominante das big techs nas negociações com as empresas jornalísticas.
Dissenso em busca do consenso
A discussão do PL tem sido marcada pelo dissenso. Há quatro grandes grupos de interesses em disputa: 1 – as big techs (Facebook, Instagram, Twitter, TikTok, Google, Whatsapp, Telegram, Netflix, Spotify e seus congêneres); 2 – a extrema-direita e a direita neoliberal, associadas às primeiras, e o governo e a centro-esquerda, em disputa; 3 – as gravadoras, estúdios audiovisuais e seus artistas; 4 – a grande imprensa hegemônica (Folha, Estadão, Uol, Globo, etc.), e a imprensa independente.
O primeiro aspecto do PL – a imposição da “responsabilidade solidária” e do “dever de cuidado” associados aos sete tipos penais mencionados – incomoda especialmente à extrema-direita por razões óbvias: alguns dos crimes mencionados são, digamos, bastante recorrentes nestes meios, em especial por meio dos aplicativos de mensagens, do qual trata o capítulo XI. A extrema-direita sustentou sua ascensão e manutenção política nos últimos anos, em boa parte, no desregramento geral de seus discursos e meios. Este é o primeiro grupo contrariado pelo PL. Às redes sociais, o incômodo com este ponto se refere especialmente ao fato de que haveriam de aumentar equipes para lidar com estes “riscos sistêmicos”, o que implicaria mais gastos, e o fato de que haveriam de restringir conteúdos criminosos que, a despeito dos perigos, também geram lucros e anúncios. Mas esse não é o ponto fundamental.
As big techs são as grandes perdedoras no PL porque são impedidas de prosseguir vivendo no mundo virtual que criaram para si mesmas, tendo de se adaptar ao mundo real – e às leis que elas não impõem ao mundo, mas sim que o mundo impõe a elas. Este mundo virtual criou excepcionalidades que lhes trazem vultosos lucros: a produção de conteúdo gratuito por empresas terceiras; a possibilidade de manipular usuários e conteúdos nos termos que lhes convém (por meio do algoritmo); a possibilidade de vender anúncios com base nestes termos, ferindo a privacidade dos usuários, com condições excepcionais (anúncios que não seguem o regramento brasileiro) e sem o conhecimento dos mecanismos pelo qual distribuem os anúncios; e a possibilidade, enfim, de “privilegiar” determinados conteúdos que lhes sejam economicamente benéficos (como de empresas parceiras). Efetivamente, é isso que mais as preocupa, porque é onde seus lucros serão mais contidos e sua verdadeira natureza será deixada mais exposta.
Uma vez que o PL já desagradava, pela sua própria natureza, uma boa parte dos deputados e algumas das maiores empresas do planeta, o relator Orlando Silva aparentemente se movimentou no sentido de acolher demandas de outros setores, como artistas – no caso dos direitos autorais – e grandes grupos midiáticos – no caso dos conteúdos jornalísticos –, com o fim de reforçar o apoio ao PL. Além disso, fez algumas concessões a uma parte dos deputados – como a de estender a imunidade parlamentar para as redes sociais. Quanto a esse último ponto, não há muita novidade: entende-se que a mesma premissa que os representantes têm na tribuna real do Congresso, têm nas tribunas virtuais das redes. Importante notar: imunidade parlamentar não implica em licença para cometimento de crimes.
Ocorre que, precisamente pela amplitude do projeto, pela proposta tratar de temas tão distintos, o efeito buscado por Silva parece ter sido o contrário. À medida que ampliaram-se os aliados do projeto, ampliaram-se também seus inimigos. Aquilo que deveria ser incômodo para uns poucos poderosos passou a ser incômodo de muitos, inclusive não tão poderosos (apesar de aparentemente conservarem tal autoilusão). Setores que antes se supunha apoiadores de primeira hora passaram, do dia para noite, a críticos ferozes.
Curiosamente, um desses setores tem sido a imprensa independente progressista, no geral alinhada ao governo. O motivo da crítica está precisamente na redação do capítulo sobre conteúdos jornalísticos. No geral, os críticos desse grupo reclamam que a proposta não os protege, e que os grandes meios tendem a ser beneficiados, já que terão mais força para negociar com as big techs. Alguns chegam a dizer que isso vai “reviver os grandes meios”, como a Rede Globo. Há ainda os que argumentam que os gastos que as big techs terão com a remuneração ao conteúdo jornalístico será retirado do bolo de seus gastos publicitários; assim, os grandes meios “ficarão com a maior parte do bolo”, em detrimento dos médios e pequenos independentes. Por fim, uma série de produtores individuais de conteúdo, no geral youtubers, também protestam pelo mesmo motivo: suas receitas de anúncios cairiam, dizem, em proveito dos grandes meios. A constatação geral é de que o projeto não deveria tratar de remuneração jornalística, um tema que – argumentam – nada tem a ver com o ponto central do projeto; a desinformação.
Aqui não se pode ter meias-palavras: na crítica misturam-se preocupações válidas quanto ao futuro – como o modelo funcionará na prática, se implementado – com deduções absurdas quanto a pontos sobre os quais o texto não versa, suposições tortas sobre a própria grandeza, e uma visão ingênua sobre os grandes meios e a natureza da própria comunicação na internet. É bastante provável que os grandes meios de fato se saiam melhor nas negociações com as big techs, em comparação aos médios e pequenos. São, afinal, grandes. Ocorre que, em contrapartida, todo veículo constituído, médio ou pequeno, receberá uma porção do bolo das big techs, necessariamente. Isto é: mais gente – especialmente os menores entre os menores – terá uma nova fonte de financiamento¹. Os que falam numa “ressureição dos grandes meios” parecem estar apartados da própria realidade: crêem sinceramente que os Marinho já são “coisa do passado”, enquanto constituem nova capitania da indústria jornalística? Parece um tanto ingênuo supor que os meios progressistas são os que estão com a maior parte do bolo publicitário na internet, enquanto a Globo está nas cordas, e que essa situação de alguma forma se reverterá com uma proposta que imporá pagamento a todos os meios de comunicação. Curiosamente, muitos dos que lamuriam abandonaram a bandeira da democratização total dos meios no Brasil, da TV, do rádio, e dos jornais, sob o argumento de que “a internet já promoveu tal democratização” e “a TV, o rádio e o jornal impresso estão morrendo”. Se trata simplesmente de repetir aquela tola suposição dos internautas dos 90: a de que a internet está “democratizando” a comunicação, tornando-a “mais livre”. Não está: os sites progressistas não estão nem estarão em condições de combater a Rede Globo sem que se faça uma ampla e radical reforma dos meios de comunicação no Brasil, gostemos disso ou não.
Mas a coisa é ainda pior. A evolução da internet não impactou os meios jornalísticos só em função da diminuição da receita publicitária; impactou também porque os conteúdos disponíveis ao leitor – e aos anunciantes – se tornaram mais variados, e mais úteis à publicidade. Não é que o jornal impresso tenha perdido espaço para a internet; o jornalismo perdeu espaço para o entretenimento, muito mais apetitoso ao seu leitor contumaz do que o empilhamento diário de fatos. O TikTok é capaz de perfilar um novo usuário em minutos, bombardeando-o com uma miríade de vídeos – de piadas ruins a conteúdo semi-pornográfico, passando por vídeos de “ASMR”, de pets, de reformas e violência extrema. A jornalista francesa Judith Duportail revelou em seu “O algoritmo do amor” (Contra Editorial, sem tradução no Brasil) que aplicativos de namoro como o Tinder são capazes de saber, com base nos dados extraídos do usuário, informações como em que momento do dia ele se sente mais solitário, desesperado ou confiante. Alguns cliques na homepage de um jornal nunca oferecerão tal refinamento, o que ao fim impacta, precisamente, nos anúncios. Além disso, dificilmente a notícia do dia – por mais absurda que seja – será tão atrativa ao público quanto uma gravação de uma briga de rua, a promessa de encontrar o grande amor por meio de uma tela ou qualquer programa de entrevistas com famosos que, num cenário de bar, promulgue todos os dias “não fazer entrevistas”, mas sim “conversas”. Há uma tendência natural do público – especialmente num País tardiamente alfabetizado, pouco letrado, nada gutenberguiano e muito afeito às formas “quentes”² de comunicação, que aprendeu a imaginar as imagens a partir do rádio antes de decifrar as palavras – por conteúdos que o entretenham, não que o preocupem. Num espaço onde esse tipo de conteúdo abunda, e que é mediado por algoritmos tão precisos, há uma tendência ao esvaziamento do campo da obtenção do conhecimento em favor do campo do entretenimento (muito mais afim, a propósito, ao campo do consumo).
Daí que, ao tratar de desinformação na internet, seja chave estabelecer algum tipo de benefício àqueles que se dedicam a produzir retratos da realidade, não afrescos do etéreo; estímulos aos que se põem no campo da produção de conhecimento, não à massagem do espírito. Disso trata o estabelecimento de uma remuneração, pelas big techs, do conteúdo jornalístico. Os companheiros da imprensa independente que supõem estarem numa luta ganha contra a Globo hoje, sem esse tipo de medida, verão que em alguns anos estarão lutando pela atenção do leitor contra meios e formas talvez tão perniciosas quanto a Vênus Platinada, mas de certo mais atrativas.
Tendo em vista os limites de um projeto de lei de regulamentação da internet dentro de uma democracia liberal-burguesa e no Terceiro Mundo, e testemunhando a qualidade intelectual de nossos nobres deputados – uns mais preocupados com os likes no Instagram ou com as doações de grandes empresas tecnológicas na próxima campanha do que com a coerência lógica de seus próprios discursos na tribuna – o PL 2630 é muito bom. Poderia ser excelente se chegasse ao ponto de imiscuir-se mais nos próprios algoritmos das redes, determinando por exemplo “faixas mínimas” de difusão de determinados tipos de conteúdo; se previsse uma agência reguladora efetivamente independente (como constava mais ou menos na proposta original, até que a gritaria sobre um “Ministério da Verdade” começou); ou se tivesse medidas mais ousadas de educação midiática e fortalecimento de pequenos meios. Mas, neste caso, a votação do projeto não teria sido adiada na última terça-feira – teria sido rejeitada por princípio. Cenário que faria muito felizes as big techs – dentre elas o Google, que chegou a transformar sua homepage em um aríete contra o projeto, provando sua vontade de impôr a legislação dos algoritmos mesmo sobre o Congresso –, as grandes gravadoras e estúdios que são “amigos do rei”, a extrema-direita e seus asseclas.
A Globo há de ser derrotada pelo que sempre foi bandeira histórica da esquerda brasileira – um tanto abandonada nos últimos anos, é verdade – que é a efetiva democratização da propriedade dos meios de comunicação. Querer que o PL 2630 verse sobre o que não lhe cabe, sendo uma espécie de tábua de salvação da imprensa independente, ao mesmo tempo que se critica sua “amplitude” e se cala sobre a bandeira da democratização, é levar tão a sério o tema da comunicação quanto as big techs levam os temas da privacidade, do combate à desinformação e da soberania: palavras ao vento. Nele transmitidas.
Notas:
¹ – Esta revista não se inclui entre aqueles que poderiam receber o financiamento, simplesmente por não sermos ainda uma empresa legalmente constituída. A argumentação, portanto, não é em causa própria.
² – Meios quentes, em linhas gerais, são aqueles que oferecem um maior envolvimento entre o meio e o receptor; envolvimento que é menos aprofundado, já que a mensagem é oferecida com uma maior “definição” (rádio, televisão, etc.), isto é, a mensagem é “mais completo de sentido intrínseco”.
Pedro Marin
27 anos, é editor-chefe e fundador da Revista Opera. Foi correspondente na Venezuela pela mesma publicação, e articulista e correspondente internacional no Brasil pelo site Global Independent Analytics. É autor de “Golpe é Guerra – Teses para enterrar 2016” e co-autor de “Carta no Coturno – A volta do Partido Fardado no Brasil.
Paulo
06/05/2023 - 23h51
“A Globo há de ser derrotada pelo que sempre foi bandeira histórica da esquerda brasileira – um tanto abandonada nos últimos anos, é verdade – que é a efetiva democratização da propriedade dos meios de comunicação.”
Ninguém nega que a Globo tenha exercido certo monopólio de informação, nas últimas décadas, ou, quando menos, um oligopólio.
Mas daí a considerar que a “bandeira histórica da esquerda brasileira” seja a “democratização da propriedade do meios de comunicação” é exercer o papel de uma Globo às avessas. Pura bobagem ideológica…