Isabel Uchôa – mestranda em Ciências Sociais (UFRRJ) e pesquisadora do LAPPCOM
Mayra Goulart – Professora de Ciência Política da UFRJ e do PPGCS da UFRRJ e coordenadora do LAPPCOM
Foi instalado no dia 19 de abril de 2023 o Conselho de Ética e Decoro Parlamentar.
Leur Lomanto Júnior (UNIÃO/BA) foi o deputado eleito para presidir, pelos próximos dois anos, o colegiado. Criado em 2001, o Conselho de Ética e Decoro Parlamentar é um órgão da Câmara dos Deputados composto por 21 parlamentares e o mesmo número de suplentes, tendo um mandato de dois anos. Tais parlamentares têm o dever de zelar pela ética e dignidade da Câmara, aplicando penalidades àqueles que descumprirem as normas de decoro parlamentar. Dentre o regimento seguido pelo Conselho, o Código de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados, é destacado que algumas das condutas que atentam contra o decoro e que são passíveis de punição são: perturbar a ordem do Plenário durante sessões, agredir fisicamente ou moralmente outro parlamentar dentro da Câmara dos Deputados e ofender verbalmente, ou por meio de ações, outro deputado, além da realização práticas que desrespeitem a ética parlamentar.
O ex-presidente Jair Bolsonaro, em seu período como deputado federal do Rio de Janeiro, foi recordista no número de representações encaminhadas ao Conselho de Ética e Decoro Parlamentar: quatro processos. Até o momento, esse havia sido o maior número de representações contra um deputado desde a criação do órgão. Atualmente, o filho do ex-presidente, Eduardo Bolsonaro, lidera esse ranking, com 12 representações feitas contra o deputado, sendo que duas destas são apensadas à denúncia original, que trata-se do caso de uma ironia feita por Eduardo a respeito da tortura sofrida pela jornalista Miriam Leitão durante o período de ditadura militar.
A primeira representação contra Jair Bolsonaro foi realizada pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), no ano de 2011, quando o ex-deputado foi acusado de racismo, por conta de uma resposta dada em uma entrevista ao programa “CQC – Custe o que Custar”, da TV Bandeirantes. Bolsonaro e Preta Gil estavam participando do quadro “O povo quer saber”. Na ocasião, a cantora perguntou ao ex-deputado: “Se o seu filho se apaixonasse por uma negra, o que você faria?”. Bolsonaro, então, respondeu que não “discutiria promiscuidade” no programa e que não correria esse risco, já que os filhos do ex-presidente foram “muito bem educados”.
A resposta de Bolsonaro levantou discussões e uma série de denúncias, sendo apontada, inclusive, como um dos marcos na transição, operada pelo então deputado, que deixou de ser um ilustre desconhecido, sem espaço na mídia tradicional para se transformar em um ícone histriônico da direita brasileira.
Isto porque, a partir daquele momento, o ex-presidente começou a ser cada vez mais reconhecido por suas frases que geram polêmicas, discussões e denúncias, mas que, ao mesmo tempo, aumentavam, cada vez mais, o seu número de eleitores e admiradores, trazendo à luz uma parcela conservadora da sociedade brasileira que se sentia reprimida por não ter um representante nos holofotes da política, que vocalizasse seu modo de ver o mundo publicamente, legitimando e autorizando posicionamentos autoritários ou contrários aos direitos humanos.
Em 2013, Bolsonaro recebeu mais uma acusação no Conselho de Ética. Nessa segunda representação contra Jair Bolsonaro, o PSOL denunciou o ex-presidente por quebra de decoro parlamentar devido a uma acusação de agressão física contra o Senador da República Randolfe Rodrigues, em uma visita das Comissões da Verdade do Senado Federal, da Câmara dos Deputados e da OAB/RJ, acompanhadas de membro do Ministério Público Federal, ao 1º Batalhão de Polícia do Exército, na Tijuca (RJ), antigo prédio do DOI-Codi. Bolsonaro não fazia parte de nenhuma das Comissões e, portanto, não foi convocado, mas compareceu, perturbando a ordem com falas provocativas (1), além da acusação de agressão desferida a Randolfe Rodrigues.
A terceira representação contra o ex-presidente ocorreu no ano seguinte, em 2014. A acusação foi feita pelo PSOL, pelo Partido dos Trabalhadores (PT), pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB). A denúncia em questão dizia respeito a comportamentos e falas misóginas, homofóbicas, racistas e discriminatórias de Bolsonaro durante seu período como deputado. A representação foi feita após um discurso do então parlamentar que criticava o Dia Internacional dos Direitos Humanos, no Plenário da Câmara dos Deputados. Em sua fala, Bolsonaro, além de fazer críticas severas aos Direitos Humanos, teria insultado e proferido um discurso misógino e difamante à deputada federal Maria do Rosário (PT/RS) e à então Presidente da República Dilma Rousseff. Essa terceira denúncia ao Conselho de Ética também o acusava de crime de ameaça e crime contra a honra, já que, além de acusar ambas de práticas criminosas, Bolsonaro afirmou que apenas não estupraria a deputada porque ela “não merecia”. Essa terceira representação contra o então parlamentar buscou a punição do ex-deputado baseada nesse discurso em questão, mas também acusava-o de uso de um discurso de ódio e de um comportamento que não atendia às condutas de decoro durante toda a sua carreira parlamentar, enfatizando que essa postura seria um padrão de Bolsonaro enquanto deputado.
A última denúncia ao Conselho de Ética sofrida pelo ex-presidente foi feita pelo Partido Verde (PV), em 2016, e acusava Jair Bolsonaro de apologia ao crime de tortura, devido ao fato do então deputado federal ter dedicado seu voto a favor do processo de impeachment da ex-presidente Dilma ao coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, condenado em 2008 por sequestro e tortura durante o período de ditadura militar brasileira.
Todas as quatro representações em desfavor do ex-presidente Jair Bolsonaro enquanto estava no exercício de seu mandato como deputado federal foram arquivadas. Enquanto a denúncia realizada no ano de 2014 foi arquivada devido ao término da legislatura, as outras três foram arquivadas por ausência de justa causa, indicada pelos termos do inciso III do § 4o do art. 14 do Código de Ética e Decoro Parlamentar. É notável, portanto, como, apesar do envolvimento a diversas polêmicas ao longo de seu mandato, Jair Bolsonaro não sofreu nenhuma punição pelo Conselho de Ética da Câmara.
Em todos esses quatro casos mencionados que geraram denúncias ao Conselho é possível perceber um elemento em comum: a postura anti-establishment de Bolsonaro, isto é, seu antagonismo contra o sistema político, partidário e eleitoral brasileiro. Nessas quatro situações, o ex-presidente aciona uma narrativa “nós versus eles”, colocando integrantes destes sistemas como inimigos não apenas dele próprio, mas também da população. Assim, ele aciona o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra como um símbolo de oposição a essa elite de poder do sistema político democrático, colocando-se, dessa maneira, como uma espécie de “resistência” a tudo aquilo que ele considera como o grupo “dominante” que o ameaça: o sistema democrático, as mulheres, o movimento LGBTQIA+, o movimento negro, a Comissão da Verdade, dentre outros. Todos que são uma ameaça a uma ideia de ordem patriarcal e punitivista, refratária à ideia de igualdade e liberdade, inerente ao princípio de democracia social que estrutura à Constituição de 1988, promulgada após o fim da ditadura militar, da qual Bolsonaro e seus apoiadores são nostálgicos.
Existe, assim, uma retórica que rejeita o sistema político democrático e a própria imagem de um político a ele inerente, por isso, ele coloca-se como uma personalidade “distinta” naquele meio, um outsider, que deseja mudar o sistema e busca o apoio de um eleitorado insatisfeito com as mudanças sociais dos últimos anos, percebidas como ameaças aos seus privilégios particulares. Assim, ele atingiu um público conservador que atende ao apelo da ideia de um “passado nostálgico”.
1 MENDONÇA, Alba Valéria. Randolfe diz ter levado soco de Bolsonaro no Rio; deputado nega. G1, 2013. Disponível em: Acesso em: 02 maio 2023