O Brasil tem uma das melhores elites do mundo quando o assunto é autopreservação.
Ninguém está dizendo que as elites brasileiras são boas ou que elas tem qualquer preocupação com o desenvolvimento do país. Muito pelo contrário, inclusive: historicamente, as elites brasileiras sempre contaram com uma massa de cidadãos miseráveis justamente para ter um exército de subservientes ao seu dispor. Isso implica em fazer escolhas completamente prejudiciais para o país em nome dessa autopreservação. O exemplo mais claro nesse sentido é o processo de desindustrialização do Brasil nos últimos 40 anos, acompanhado de uma estagnação geral da produtividade empresarial: nossas elites preferem investir em commodities e em rentismo do que no desenvolvimento empresarial do país. E fazem isso por uma escolha político-econômica: produtividade estagnada implica em salários mais baixos na indústria e é fruto da falta de investimento dos próprios empresários, que no Brasil são historicamente dependentes do governo – não só para investir, mas também para impor barreiras protecionistas aos produtos estrangeiros, em geral mais competitivos que os nosso justamente porque a elite brasileira prefere pagar baixos salários ao invés de investir em produtividade.
É por isso que programas como o Bolsa Família fizeram tanta diferença na realidade das classes mais pobres do país. Em um cenário em que os salários são cronicamente baixos e há pouco ou nenhum incentivo para a educação de qualidade, a transferência direta de renda por parte do governo tem seu efeito amplificado na dinâmica econômica do país. O Brasil tem salários baixos, pouca poupança interna e uma população extremamente endividada. Enquanto isso, nossas elites seguem vivendo de forma nababesca, enaltecendo seu próprio mérito e dizendo que “todo mundo pode chegar lá”, enquanto eles mesmos se encarregam de chutar a escada para que ninguém mais “chegue lá”. A transferência de renda aumenta um pouco essa esperança fugidia que o brasileiro insiste em ter em “melhorar de vida”.
De vez em quando, porém, essas elites brigam entre si. E essas brigas em geral são por poder, ocorrendo quando um grupo invade o espaço do outro. Dois dos grupos mais privilegiados do Brasil, historicamente, são o oficialato militar e o “Judiciário Superior”, que inclui magistratura e Ministério Público, sem desprezar toda uma gama de profissionais de Direito em áreas tão diversas da sociedade quanto os cartórios (como tabeliões) ou as delegacias de polícia (como delegados).
Os militares dispensam apresentações. Desde a Proclamação da República, eles se consideram uma espécie de “Poder Moderador” no país, sempre a serviço das elites. Foi assim durante a República Velha, quando eles observavam de perto as transições de poder entre presidentes paulistas e mineiros. Quando o acordo se quebrou, posicionaram-se rapidamente e passaram a dar suporte a Vargas. Depois, protagonizaram a redemocratização com Dutra e tentaram tutelar o poder de diversas formas, tendo papel crucial em crises como a que ocasionou o suicídio de Vargas e a causada pela renúncia de Jânio Quadros. Quando as elites se sentiram ameaçadas, usaram os militares para deflagrar um golpe de estado e instalar um aparato de repressão que durou mais de vinte anos. E, mesmo na redemocratização, firmaram um acordo com as elites do país para evitar qualquer punição pelos crimes cometidos na ditadura. Quando viram esse acordo em risco, decidiram tomar os espaços de poder novamente para si, usando para isso um enorme aparato de produção de desinformação e, novamente, as elites conservadoras com as quais eles sempre contaram.
Outra parte dessa elite, por sua vez, é o Judiciário. O Judiciário no Brasil sempre foi inchado, mas após a redemocratização, esse inchaço ganhou corpo. Proporcionalmente, o Judiciário brasileiro é o mais oneroso do mundo: em 2020, custava 1,5% do PIB do país. De acordo com o própria OAB, o Brasil tem um advogado para cada 164 habitantes. São 1,3 milhão de pessoas pagando sua anuidade da OAB regularmente. É um número estarrecedor. Mas ainda mais estarrecedor é o número de alunos nas Faculdades de Direito: hoje, temos cerca de 1.800 cursos de graduação em Direito funcionando regularmente, com 700 mil alunos matriculados. Ainda que parte desses alunos não se forme, estamos falando de um ingresso no mercado de profissionais formados em Direito na casa da centena de milhar por ano. E a própria OAB mostra que a média de aprovação nas provas do órgão, que na prática é o que habilita o profissional a exercer a advocacia, gira em torno de 20 a 30%. Isso quer dizer que muitos profissionais formados em Direito nunca vão exercer a profissão, mas vão atuar em outras profissões ligadas ao Direito, especialmente dentro da máquina estatal.
No governo Bolsonaro, os militares tentaram se infiltrar em diversas esferas da sociedade. Conseguiram, em grande medida. O próprio Ministro Dias Toffoli, enquanto Presidente do STF, teve um assessor militar, que depois se tornou Ministro no governo Bolsonaro (o General Fernando Azevedo e Silva). Tivemos militares em ministérios tão diversos como infraestrutura, minas e energia e até na saúde, no meio de uma pandemia. A impressão é a de que os militares estavam em todos os lugares, referendando e dando guarida a um governo fascista.
Esse movimento também chegou ao Judiciário. E começou a incomodar, especialmente quando Bolsonaro tentou influenciar o processo eleitoral, questionando a democracia. Com suporte dos militares, Bolsonaro insistia que as urnas eletrônicas, usadas sem problemas desde a década de 90, não eram seguras. Para piorar, Bolsonaro tinha sérios problemas com o STF à partir do momento em que a instituição começou a colocar limites em sua máquina de difusão de mentiras, através do inquérito das fake News.
Essa briga entre os militares e a cúpula do Judiciário (tem partes do Judiciário bem fieis ao Bolsonaro, vide Sérgio Moro e amigos) atingiu o seu ápice na eleição de 2022: enquanto Bolsonaro e os militares tentavam sabotar o processo de toda forma, o Judiciário deu uma procuração para Alexandre de Moraes segurar a democracia na unha, impedindo o que seria a maior fraude eleitoral da história do país.
Nesse cenário todo, ressurge um grande protagonista: Lula, um homem do povo que sabe transitar bem entre as elites. Os dois governos dele atestaram essa capacidade de maneira inegável. Mais do que isso: Lula tinha sido perseguido pela parte do Judiciário que se tornou bolsonarista. Isso quer dizer que, para a cúpula do Judiciário, lutar por uma eleição justa significava mais do que a mediação de um processo eleitoral. Com Bolsonaro tentando tomar para si o poder, através do “Judiciário bolsonarista”, a manutenção da democracia era questão de sobrevivência.
Lula entendeu muito bem essa lógica, venceu a eleição, tomou posse, sofreu uma tentativa de golpe e está tentando reconstruir as instituições democráticas do país. Para isso, tem um trunfo: um Judiciário atuante e com disposição de punir os militares bolsonaristas que ultrapassaram os limites da democracia. Para esse processo não virar um justiçamento nos moldes do que o próprio Lula sofreu na Lava Jato, no entanto, os limites estão bem estabelecidos: não serão as instituições que serão punidas, e sim as posturas.
Com isso, Lula tenta separar o joio e o trigo dentro das instituições, ainda que em muitas delas joio e trigo pareçam estar misturados. Lula não quer a punição dos militares: quer a punição dos bolsonaristas dentro da caserna. Não quer a punição do agronegócio como um todo, e sim a dos latifundiários que apoiaram a tentativa de golpe. E o Judiciário parece estar feliz com essa postura. Prova disso é a operação que prendeu Mauro Cid, coronel que era ajudante de ordens de Bolsonaro até cinco meses atrás, e outros auxiliares de Bolsonaro, além de apreender o celular do ex-presidente. Tudo porque Bolsonaro e Mauro Cid fraudaram suas carteiras de vacinação e as carteiras de outros familiares para entrarem nos EUA sem problemas.
E as demais elites, como ficam? Elas estão bem, também. Já se assentaram ao novo arranjo de poder. Bolsonaro vai ficando para trás, e, embora o bolsonarismo siga incomodando (vide o caso do PL 2630, em que as big techs se associaram ao bolsonarismo mais rasteiro para obstruir a pauta), parece cada vez mais certo que essas elites hoje veem Bolsonaro como um nome tóxico, especialmente porque, com Lula, elas estão enxergando maiores oportunidades de inserção brasileira no mercado internacional, em que pese a nossa medíocre competitividade até o momento.
Esse é outro desafio que Lula terá para os próximos anos.