Estado foi recordista em ocorrências no ano passado. Áreas de carvoaria, cafeicultura e trabalho doméstico são campeãs de denúncias.
Publicado em 27/04/2023 – 19h02
ALMG — O grande número de denúncias de trabalho análogo à escravidão em Minas Gerais e o predomínio de pessoas negras entre as vítimas foram temas de destaque abordados durante audiência pública da Comissão do Trabalho, da Previdência e da Assistência Social da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) nesta quinta-feira (27/4/23).
Coordenadora da Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Lívia Miraglia trouxe dados analisados pela clínica, entre 2017 a 2022, que incluíram 335 autos de infração emitidos no Estado. Segundo ela, dessas denúncias, 174 eram por trabalho análogo à escravidão.
“Minas é o estado que mais resgata, com mais atuações do Ministério Público do Trabalho. A maior parte dos casos, 31,6%, estão na região Norte, sendo a cidade de João Pinheiro (Noroeste) aquela com o maior número de ocorrências, especialmente na atividade de carvoaria”.
Lívia explicou também que a cafeicultura está em segundo lugar no ranking geral por atividades do Estado na qual são encontrados trabalhadores em situação análoga à escravidão, com 99,42% dos casos associado com condições degradantes de trabalho. “Pessoas que não têm onde dormir, acesso a banheiro nem água potável para beber. Além disso, a maioria dos resgatados no Estado é negra e do sexo feminino”.
Autor do requerimento para realização da reunião, o deputado Betão (PT) lembrou que Minas foi a recordista brasileira no ano passado, com o maior número de trabalhadores resgatados no País em 2022, com 27% dos casos registrados. Ele criticou também a reforma trabalhista, responsável por uma precarização ainda maior das relações de trabalho.
Desembargadora do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região, Paula Oliveira Cantelli apresentou dados do Radar SIT – Inspeção do Trabalho, que mostram que entre 1995 e 2022 mais de 60 mil trabalhadores foram encontrados em condição análoga à escravidão no País. Ela destacou que o que força as pessoas a aceitar trabalhos degradantes é a miséria e a necessidade de sobrevivência.
“Os sistemas de produção mudaram, mas a chaga da escravidão persiste e continua, uma doença que tem se transformado com nova roupagem e disfarces sórdidos, mas mantêm a mesma essência perversa que sempre carregou.”
Mãe de trabalhadoras resgatadas e mulher negra da Comunidade Quilombola de Chapada do Norte (Jequitinhonha), Nely Aparecida Rocha explicou que muitos jovens do Vale migram para as plantações de café porque é a única oportunidade de emprego que aparece e pediu por políticas públicas que levem melhorias para a região.
“Muitos não terminam os estudos e acabam seguindo esse mesmo caminho, migram por causa das dificuldades de renda, uma situação pesada e difícil. Seria importante termos mais oportunidades de emprego no Vale do Jequitinhonha”, afirmou.
Nely Aparecida Rocha pediu investimentos em empregos no Vale do Jequitinhonha – Willian Dias/Arquivo ALMG
Trabalho doméstico e terceirizado é propício a práticas escravagistas
Auditora fiscal do trabalho, Cynthia Mara Saldanha trouxe casos de trabalhadoras domésticas que foram resgatadas em condições deploráveis pelo Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM) da Subsecretaria de Inspeção do Trabalho (SIT).
Ela falou das dificuldades na fiscalização e no acolhimento posterior dessas pessoas, que são, em sua maioria, separadas de suas famílias. “Eu nunca participei do resgate de uma trabalhadora doméstica branca. Precisamos romper essa mentalidade distorcida de dizer que essas pessoas são da família, pois isso não é verdade”, apontou.
“Uma delas foi retirada de um orfanato ainda criança e passou por três gerações de uma família trabalhando, sem ganhar nada. Quando o empregador recebia visitas em casa, ela não tinha acesso ao banheiro, ficava escondida e fazia suas necessidades no chão. Conseguimos alfabetizá-la depois de resgatada”, contou.
Juíza do Trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região e professora de Direito e Processo do Trabalho da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Valdete Souto Severo enfatizou que o estado brasileiro sempre estimulou a discriminação racial, desde o estabelecimento do crime de vadiagem no Código Penal de 1890 até o estímulo à vinda de trabalhadores brancos de outros países, para o projeto de branqueamento da população brasileira.
“Num País como o nosso, onde o racismo é estrutural, a terceirização é uma porta aberta para a escravização. As agressões cotidianas a esses trabalhadores naturalizam esse processo. As pessoas não tem outro jeito de trabalhar”.
A deputada Andréia de Jesus (PT) lembrou que a Comissão de Direitos Humanos da ALMG realizou, no ano passado, audiência pública com Madalena Gordiano, resgatada em Patos de Minas (Triângulo Mineiro) depois de uma vida inteira trabalhando para a mesma família.
“Dói ver a cor daqueles que são as vítimas do trabalho escravo. Precisamos do reconhecimento do trabalho negro nesse país. Naturalizam que nosso trabalho não tenha direito a remuneração, não podemos voltar para casa para descansar ou passar tempo com nossos filhos. Os criminosos não são responsabilizados, o patrimônio deles não é alcançado.”
Desafio é interromper ciclo vicioso
Coordenador-geral da Articulação dos Empregados Rurais de Minas Gerais (Adere/MG), Jorge Ferreira dos Santos Filho enfatizou a necessidade de atacar as grandes empresas e interromper o ciclo vicioso do trabalho análogo à escravidão punindo aqueles que lucram com ele.
“Até quando não vamos ver escravocratas presos? Ninguém prende essas pessoas. A Justiça é classista, só prende pobres e pretos. Estamos cansados.”
Superintendente do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), Carlos Calazans reforçou que nada mudou do século XVIII para cá e lembrou da Chacina de Unaí, ressaltando que a impunidade propicia que nada mude.
“Há 20 anos, quatros servidores foram interceptados em Unaí e morreram. E 20 anos depois, os mandantes ficaram impunes. Estão soltos, com fazendas enormes e produtivas. O que mudou? Esse shopping de rico aqui do lado, tiraram os bebedouros para os trabalhadores não tomarem água, eles são proibidos de escovar os dentes nos banheiros, porque as madames não gostam. Não foi no interior do estado, foi aqui”, lembrou.
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