O “whatsapp da Abin” e o déficit cognitivo da Folha

(Brasília - DF,18/07/2022) Encontro com chefes de missão diplomática. Foto: Clauber Cleber Caetano/PR

E temos mais uma manchete sensacionalista da Folha, fruto de uma mescla explosiva de déficit cognitivo, irresponsabilidade e desonestidade jornalística.

Vamos lá: a manchete diz que os “Alertas do 8/1 foram enviados pelo whatsapp e Abin defende o mecanismo”.

As mensagens “vazadas” para a Folha, como já vimos, não constituíram nenhum alerta sério. Os bolsonaristas vinham promovendo badernas desde o o final do segundo turno das eleições presidenciais, e suas ameaças vem de longe. De maneira que um alerta de que haveria algum “risco” de bagunça bolsonarista não significa nada. O que diferencia um alerta de outro é o tom, a ênfase. Alerta vermelho, alerta amarelo, alerta laranja.

É claro que havia risco de bagunça bolsonarista. Isso tanto o governo federal quanto o do DF sabiam, tanto que havia esquema de segurança especial  da Polícia Militar, com barreiras e tudo. O alerta que deveria ser feito, portanto, não era da existência de risco de que bolsonaristas tivessem intenção de bagunçar, e sim que a PM do Distrito Federal estivesse mancomunada com os terroristas.

O único alerta eficaz da Abin deveria ser nos seguintes termos: há risco de ataque terrorista às sedes dos Três Poderes no dia 8 de janeiro e as forças de segurança do Distrito Federal não oferecem confiabilidade, a começar pelo chefe da Secretaria, Anderson Torres.

Ou então assim: Anderson Torres, secretário de segurança do DF, é um terrorista, subordinado a um outro terrorista, chamado Jair Bolsonaro, e ambos estão dispostos, por omissão administrativa e conivência, no caso de Torres, e por omissão política e cumplicidade criminosa, no caso de Bolsonaro, a fomentar atos terroristas e golpistas contra a república no dia 8 de janeiro.

A desonestidade da Folha é tão grande, que uma das reportagens diz que houve, sim, “alerta” sobre omissão das forças de segurança, mas apenas “MINUTOS ANTES” da invasão. É muita cara de pau. É como se um órgão de inteligência dos EUA se gabasse que avisou o governo americano sobre os ataques do 11 de setembro, 3 segundos antes do segundo avião se chocar contra o World Trade Center.

Não sou especialista em contra-inteligência, mas tenho bom senso, e estaria contente que os serviços de inteligência do meu país também o tivessem.

Reitero: um alerta decente, eficaz, sério, NÃO se limitaria a avisar sobre riscos de bagunça bolsonarista. Esse não era o perigo.

O ataque não veio apenas dos bolsonaristas. O ataque também se materializou pela omissão e conivência das forças de segurança do Distrito Federal, comandadas por Anderson Torres, que além de terem seu  efetivo reduzido pela metade exatamente no 8 de janeiro (conforme revelado há pouco pelo coronel da PM-DF na CPI em curso na Assembléia do DF), ainda abriram espaço para que os terroristas passassem as barreiras.

Além do mais, um alerta dado MINUTOS ANTES do ataque acontecer é palhaçada, porque não adianta nada.

Sobre o whatsapp, é um meio de comunicação muito rápido e eficiente, mas é óbvio que um fato dessa gravidade não pode se limitar a uma mensagem num grupo.

Novamente apelo ao bom senso. Imagine que sua mulher entrou em trabalho de parto, e começou a sofrer dores. O que você faz? Manda uma mensagem num grupo de whatsapp, ou LIGA para a médica?

Há um outro ponto: a reportagem diz que a Abin “defende mecanismo”. Mais um problema que mescla déficit cognitivo e desonestidade, porque o problema não é o uso do whatsapp, mas a gravidade do alerta, a identidade de quem recebeu a mensagem, e a confirmação do feedback do receptor.

Um trecho da matéria da Folha ajuda a entender a superficialidade e inutilidade do alerta:

O relatório da Abin afirma que o grupo era composto por representantes do GSI, PF (Polícia Federal), PRF (Polícia Rodoviária Federal), DINT/SEOPI/MJSP (Diretoria de Inteligência da Secretaria de Operações Integradas do Ministério da Justiça), PM/DF (Polícia Militar do Distrito Federal), PC/DF (Polícia Civil do Distrito Federal) e SSI/DF (Subsecretaria de Inteligência da Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal).

Ou seja, todo mundo recebeu, incluindo a Secretaria de Segurança do Distrito Federal.

Pela Constituição, o órgão responsável pela segurança da Esplanada dos Ministérios, desde muitos anos, é a Secretaria de Segurança do DF.

Se o órgão recebeu os “alertas”, então o governo federal não deveria se preocupar, porque isso significaria que a Esplanada estaria garantida pela Polícia Militar. Bem, o que vimos foi que a PM, após os alertas, reduziu pela metade o efetivo, e exatamente no dia 8 de janeiro.

A única narrativa honesta, portanto, e infelizmente não tem sido essa a abordagem semiótica da Folha, é que os alertas da Abin implicam ainda mais gravemente a Secretaria de Segurança do DF e seu responsável, Anderson Torres.

Outro ponto importante nessa história seria saber que pessoas exatamente estavam no grupo de whastapp. Sim, porque não basta dizer que havia gente do GSI ou do Ministério da Justiça. É preciso investigar exatamente quem estava no grupo. Eram remanescentes do governo anterior? E, sobretudo, houve algum feedback?  Qual era o nível de interação desse grupo? Apenas a Abin podia falar, ou seja, apenas ela era administradora do grupo, e outros podiam apenas ouvir? Ou outros também podiam interagir?

A mídia brasileira precisa ser mais responsável. Ela não pode tratar o 8 de janeiro isoladamente. Os atos terroristas desse dia foram a sequência de uma série de ataques à democracia deflagrados, inicialmente, por discursos do ex-presidente Jair Bolsonaro.

Foram inúmeras as vezes em que o ex-presidente acusou o sistema eleitoral brasileiro de fraude. Inúmeras, desde 2021. Falou em entrevistas. Falou em lives. Falou no cercadinho. Chegou a convocar embaixadores do mundo inteiro para dizer a eles.

Após a divulgação do resultado eleitoral, Bolsonaro jamais deu uma declaração aceitando o resultado, como todos os candidatos derrotados tinham feito anteriormente. E não fez isso sequer após ver seus seguidores fazendo bloqueios terroristas nas estradas.

Jair Bolsonaro é, portanto, o mentor intelectual do 8 de janeiro. Toda a narrativa midiática que use estratégias semióticas que ignorem esse fato principal, e que publiquem manchetes sensacionalistas que alimentem conspirações terraplanistas do bolsonarismo, deve ser severamente denunciada como cúmplice do golpismo!

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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