A Folha nos brindou com essa pérola da irresponsabilidade jornalística. Volto em seguida.
Quando a gente examina a reportagem com mais atenção, constata que é um click bait desonesto, porque o teor das mensagens divulgadas, com tanto estardalhaço, significa exatamente o oposto do que diz a manchete e a chamada principal.
Os “documentos” mostram que NÃO houve nenhum tipo de alerta sobre o 8 de janeiro, nem da Abin, nem do GSI, nem de nenhum serviço de inteligência do governo.
O que há são recadinhos apócrifos, contraditórios, desencontrados, totalmente desprovidos de qualquer ênfase, sobre a possibilidade de bolsonaristas promoverem baderna no Distrito Federal.
Confiram por si mesmo os documentos obtidos pela Folha, com “exclusividade”, provavelmente oferecidos por algum agente demitido do GSI, ou de outro órgão de inteligência estatal, cheio de rancor e malícia em seu pequeno coração golpista.
Nosso comentários estão entre colchetes.
VEJA ALERTAS EMITIDOS PELA ABIN A MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E GSI SOBRE 8/1
- 6.jan.23, às 19h40
Perspectiva de adesão às manifestações contra o resultado da eleição em Brasília permanece baixa. Contudo, há risco de ações violentas contra edifícios públicos e autoridades. Destaca-se a convocação de caravanas para o deslocamento de manifestantes com acesso a armas e a intenção manifesta de invadir o Congresso Nacional.
[A chamada da matéria da Folha se baseia fundamentalmente nesse “alerta” emitido no dia 6 de janeiro de 2023. Leia a primeira frase: “perspectiva de adesão às manifestações (…) permanece baixa”. A menção ao “risco de ações violentas”, portanto, é neutralizada logo no início do texto. Que tipo de alerta é esse? ]
- 7.jan.23, às 10h30
Há registro de chegada no QG do Exército de 18 ônibus de outros estados para participar de manifestações. Mantêm-se convocações para ações violentas e tentativas de ocupações de prédios públicos. Desde a madrugada de hoje, caminhões tanque que transportam combustível não acessam a distribuidora de combustíveis anexa à refinaria (REVAP) de São José dos Campos-SP. Há presença de manifestantes autointitulados “patriotas” no local.
- 7.jan.23, às 12h00
Conforme a ANTT, houve aumento do número de fretamentos de ônibus com destino a Brasília para este final de semana. Há um total de 105 ônibus, com cerca de 3.900 passageiros. Mantêm-se convocações para ações violentas.
[Essas “convocações para ações violentas” fazem parte do submundo da extrema direita brasileira desde que Bolsonaro assumiu o poder. Toda essa história é incrivelmente ridícula. Nem o governo Lula, nem ninguém no Brasil ou no mundo, poderia imaginar que os bolsonaristas teriam a coragem de fazer o que fizeram. O que poderia se esperar, sim, seria uma manifestação em Brasília, inclusive na Esplanada dos Ministérios.
A reportagem da Folha vem construída de uma maneira estranha, deixando em segundo plano o fato mais importante para se avaliar o 8 de janeiro: a responsabilidade pela segurança ostensiva e objetiva de Brasília, incluindo a Esplanada, é da polícia militar do DF. Essa é a razão pela qual o senhor Anderson Torres, ex-secretário de Segurança do DF, permanece preso. Ele não conseguiu explicar porque estava fora do país no exato momento em que havia, desde o dia 6 de janeiro, ou talvez desde bem antes, informes da inteligência da polícia do DF prevendo algum tipo de confusão naquele período.]
- 8.jan.23, às 08h53
Cerca de 100 ônibus chegaram a Brasília para os atos previstos na Esplanada dos Ministérios.
- 8.jan.23, às 10h00
Em Brasília, continua chegada de manifestantes no QG do Exército, em fluxo menor que o registrado ontem. Houve incremento no número de barracas, com estruturas maiores. Permanecem convocações e incitações para deslocamento até a Esplanada dos Ministérios, ocupações de prédios públicos e ações violentas. Em votação, decidiram que a marcha só iniciará quando todas as caravanas chegarem.
[Mais um recado que não diz nada, pois começa o “alerta” falando em “fluxo menor que o registrado ontem”. Que tipo de alerta é esse que começa minimizando o risco? ]
- 8.jan.23, às 12h05
Deslocamento dos manifestantes para a Esplanada está previsto para as 13h00. Ânimo pacífico no momento, mas há relatos de pessoas que se dizem armadas.
[Outro alerta sem pé nem cabeça. Só mesmo um texto escrito por uma “inteligência” bolsonarista associaria ânimo pacífico a relatos de pessoas que se dizem armadas. Ou é pacífico ou porta armas em manifestação. Os dois juntos não dá.]
- 8.jan.23, às 13h00
Identificado discurso radical de vândalo com perfil já conhecido e ânimo exaltado.
- 8.jan.23, às 13h40
Iniciado o deslocamento para a Esplanada. Há discursos inflamados com pessoas pintando o rosto com [sic] se fossem para um combate. Há entre manifestantes relatos de que as forças de segurança não irão confrontá-los.
- 8.jan.23, às 14h30
Frente da marcha alcançou a primeira barreira policial na via que passa ao lado da Catedral. Já há manifestantes em frente ao Congresso Nacional. Efetivos da PM encontram-se no local. Alguns manifestantes estão montando barracas na Esplanada dos Ministérios e artefatos potencialmente perigosos foram deixados no gramado.
[“Alerta” tardio, e sem a informação mais importante, que é a completa conivência da PM do DF com os atos. Um alerta que não menciona isso é uma farsa.]
- 8.jan.23, às 14h45
Em Brasília, marcha chegou em frente ao Congresso Nacional e manifestantes romperam a barreira policial. Grupo encontra-se na rampa do prédio.
[Outro “alerta” falso. Não houve rompimento de barreira, e sim cumplicidade criminosa das forças de segurança do DF.]
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Se foram apenas estes os “alertas” que a Abin enviou ao GSI, então essa é uma confirmação de uma verdade dura, a de que a Abin poderia se juntar às Forças Armadas e ao próprio GSI numa categoria muito própria, a de instituições completamente inúteis para o Estado e para a sociedade.
Há outros furos na reportagem da Folha, cujo erro maior é a criação de uma narrativa contrária à verdade. Por exemplo, não é correto afirmar que esses “alertas” foram comunicados ao ministério da Justiça ou ao GSI.
Os alertas, se é que se pode qualificar assim a essas informações inúteis, foram apenas recadinhos de whatsapp, em grupos dos quais os atuais membros do governo não faziam parte. Palhaçada!
Que o GSI foi incompetente, que faltou um serviço de inteligência decente ao governo Lula, isso também não é novidade. Era um governo de apenas 8 dias, sabotado na transição, e que sucedeu uma administração – agora já não há dúvidas – tomada por terroristas.
Entretanto, postar um “aviso” de risco de algum tipo de confusão num grupo desatualizado de whastapp não é bem o que se deveria entender como “inteligência”.
A CIA é uma das maiores agências de inteligência do mundo e, mesmo recebendo alertas sobre o 11 de setembro, não agiu a tempo para conter os ataques da Al Qaeda ao World Trade Center e ao Pentágono.
Ataques terroristas, frequentemente, são bem sucedidos porque a maioria das pessoas, incluindo autoridades, tem dificuldade de acreditar no potencial destrutivo de algumas pessoas.
Quem poderia imaginar que os bolsonaristas seriam tão idiotas, estúpidos e violentos a ponto de fazer uma manifestação cujo principal símbolo é um sujeito defecando, na frente de todo mundo, no congresso nacional?
Quem poderia imaginar que bolsonaristas seriam ignorantes a tal ponto de rasgar e destruir obras de arte de valor inestimável, como uma pintura de Portinari e um relógio Martinot, do século 17?
Agora está mais claro que agentes da Abin e do GSI foram incompetentes, omissos e desonestos, porque seus alertas, em verdade, minimizam o problema, ao invés de destacá-los. E o próprio vazamento seletivo dessas mensagens apenas confirma que o GSI estava (ou está ainda, não sabemos) tomado de infiltrados fascistas.
Ou todo mundo esqueceu que os bolsonaristas, antecipando o que estavam dispostos a fazer, bloquearam estradas após o final do segundo turno eleitoral?
Já se esqueceram da tentativa de explodir uma bomba num carro tanque estacionado próximo ao aeroporto de Brasília?
Já esqueceram da noite de horror do 12 de dezembro, quando golpistas incendiaram Brasília e tentaram invadir a sede da Polícia Federal?
Eram “petistas infiltrados”?
A Abin também mandou “alertas” sobre cada um deles?
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O que estamos vendo aqui, reiteiro, é uma guerra suja de informação, e a imprensa corporativa precisaria lidar com isso com mais seriedade e compromisso democrático.
Outro dia, vimos a CNN Brasil noticiar que uma estatal da Ucrânia queria investir 50 bilhões de dólares no Brasil, mas desistiu por causa das declarações de Lula. Quase um dia depois, a mesma CNN teve que desmentir o que ela mesmo havia publicado. Não havia um editor com juízo para avisar que a matéria era, notoriamente, lixo puro?
Assim como há bolsonaristas infiltrados nas Forças Armadas, deve haver muitos ainda na imprensa, e onde houver fascistas, haverá agitação fascista, manipulação fascista, violência fascista.
A matéria da Folha, reitere-se, está errada. Os tais “documentos” sinalizam, ao contrário do que diz a manchete, que o governo estava muito mal assessorado pelos serviços de inteligência.
Além disso, um dos legados extremamente negativos do bolsonarismo foi ter deixado todos os serviços de inteligência e informação num estado de completa desorientação e anomia, contaminados ideologicamente, e degenerados do ponto-de-vista democrático. Lula precisará reconstruir também isso, até para fazer frente às artimanhas e mentiras intermináveis que ainda serão contadas por aí ao longo dos próximos quatro anos.