Rogério Dultra: O que não é Lawfare?

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Por Rogerio Dultra

Fui processado injustamente. É Lawfare? Sou de movimento social, investigado e julgado em perseguição deliberada e enviesada. É Lawfare? Sou pobre e negro. Fui condenado por reconhecimento fotográfico de caráter racista. É Lawfare? Sou mulher e militante feminista, julgada por um sistema de justiça masculino e machista. É Lawfare?

São perguntas perfeitamente válidas. E todos estes casos “hipotéticos” remetem a um fenômeno muito antigo. Tão antigo quanto o capitalismo: o caráter de classe do Poder Judiciário.

Essas questões dizem respeito, portanto, às injustiças que caracterizam o funcionamento de um poder classista, racista, machista, misógino e homofóbico. Há exceções, que comprovam a regra (a regra da justiça criminal, mas não somente). Entretanto, a dinâmica de afirmação do cisheteropatriarcado não é somente cultural, mas se realiza através das instituições políticas, buscando reafirmar a supremacia masculina.

Criminalização dos movimentos sociais, racismo estrutural, perseguição por questões de gênero são, todavia, exemplos do chamado Lawfare?

Considero que as esquerdas não devem ser seduzidas pela tentativa de definir, de forma açodada, questões sociais complexas e suas imbricações na justiça simplesmente como “Lawfare”. Essa não é tão só uma armadilha que fragmenta e individualiza a luta social como também colabora para o predomínio divisivo das vaidades tão caro ao desenvolvimento do neoliberalismo.

Defenderei neste artigo, com argumentos, que não devemos utilizar esse conceito-chave – o “Lawfare” – como um guarda-chuva universal para ressaltar a importância de nossas lutas setoriais. E isto também pelo fato de que a generalização do conceito tem o condão de produzir o seu esvaziamento.

O que é Lawfare?

O que já é notório é que o Lawfare é um conceito sócio-político que deriva das palavras Law (Direito) e Warfare (estado ou campanha de guerra) e quer significar o recurso ao Direito para combater o inimigo político. A prática do Lawfare, portanto, pode ser sintetizada como o abuso das instituições jurídicas enquanto instrumentos estratégicos e/ou táticos para a perpetuação no poder. O Lawfare atua direta e especificamente contra o detentor momentâneo, democrático e legítimo de um aparato político de poder (leia-se Estado nacional).

Em outras palavras, o Lawfare é a utilização do direito enquanto instrumento de guerra política, com objetivos de desestabilização e domínio predatório de territórios que sejam independentes aos interesses daqueles abusadores. A prática do Lawfare, portanto, pode se utilizar do direito para a deposição antidemocrática de poderes estabelecidos originalmente pelos ritos constitucionais. 

Lawfare e Guerras híbridas

Nesse sentido, que considero mais restritivo e preciso – e mais profícuo e produtivo -, o conceito Lawfare se desenvolve como um instrumento preferencial ou relevante das chamadas “Guerras Híbridas”. O autor deste outro conceito, o analista político Andrew Korybko, as compreende como táticas político-militares de desestabilização e posterior deposição de governos não alinhados aos EUA através de meios indiretos, subreptícios, como o são as “revoluções coloridas”, articuladas com os instrumentos de “guerras não convencionais”.

O nome revoluções coloridas se refere não só ao uso massivo de soft power, como mídias sociais e convencionais, processos judiciais e protestos de rua, mas pela utilização de cores como marcas “nacionalistas” desses movimentos (Revolução Rosa, na Geórgia, em 2003, Revolução Laranja, na Ucrânia, em 2004 ou Revolução Púrpura, na justificativa de invasão do Iraque pelos EUA, em 2005, todas seguidas da queda de governos). Essas revoluções “pacíficas” são anabolizadas artificialmente pela injeção de recursos internacionais para o reforço e orientação das oposições políticas já existentes nos países-alvo. 

Já os instrumentos de guerra não convencional (forças clandestinas, mercenários, guerrilhas etc.) se colocam como alternativas bélicas de radicalização, caso aquelas manifestações de massa pseudo-revolucionárias e pseudo-democráticas falhem.

O aparato jurídico por excelência para a prática das guerras híbridas é o Poder Judiciário. A legitimidade formal e o véu de imparcialidade que recobrem a instituição têm a virtual capacidade de blindar, de esconder abusos e interferências sob o manto da lei e do procedimento.

Lawfare e geopolítica

O uso político do judiciário ou de determinados setores do sistema de Justiça como Lawfare se manifesta como uma perseguição deliberada, através da instauração de investigações e de processos judiciais sem real fundamento legal, com o objetivo de destruir a reputação e/ou a capacidade de ação de determinados indivíduos ou grupos identificados como inimigos estratégicos para a tomada de poder. Daí o vínculo necessário e inafastável do Lawfare com a geopolítica. O processo judicial, quando utilizado como Lawfare, se transforma numa narrativa usada na mídia para a fragilização da democracia em alguns países.

Isto porque ele impede que as disputas políticas (as eleições, por exemplo) sejam realizadas em condições de igualdade formal, numa situação em que os opositores atuem com liberdade e dentro das regras do jogo democrático.

Este último ponto, a questão geopolítica, talvez seja o elemento de diferenciação entre o “simples” abuso político usual do sistema de justiça e o Lawfare propriamente dito. Indivíduos, grupos e partidos políticos sofrem Lawfare se e somente se estão na posição de resistência a um movimento de soft power orquestrado para a realização de um golpe de Estado.

Políticos (vereadores, prefeitos, governadores, presidentes), por exemplo, podem ser cassados por questões relativas à afirmação hegemônica de grupos institucionalizados, sejam estes extremistas ou apenas conservadores. Mas tais eventos, de todo traumáticos e no fundo ilegais, não são Lawfare a não ser que estejam relacionados entre si e a um movimento mais amplo de desarticulação direta a um governo democrático e não alinhado geopoliticamente a determinados interesses.

O impeachment do Presidente Fernando Collor de Mello, no início dos anos 1990 no Brasil, pode ser questionado nos seus procedimentos normativos (o processo continuou até o fim, mesmo após a renúncia por escrito do Presidente, o que violaria a Lei do Impeachment), mas não pode ser classificado com facilidade como Lawfare.

Collor sofreu impeachment após denúncias comprovadas de corrupção e após seu governo ter confiscado as poupanças dos brasileiros sob a desculpa da estabilização da inflação. As manifestações de rua, na época, foram organizadas por partidos políticos institucionalizados e pelo movimento estudantil, centralizado pela UNE.

Já a deposição da Presidenta Dilma Rousseff, após as manifestações coloridas de junho de 2013 – dominadas pelos movimentos “sem partido” -, ocorridas em seguida à descoberta do Pré-Sal pela Petrobras, se classifica sem muito esforço como Lawfare.

A entrada do Brasil nos BRICS – inaugurando um desenvolvimento econômico não alinhado aos EUA -, além das denúncias sobre financiamento internacional escuso de organizações não-governamentais como o MBL e o Vem Pra Rua, marcam a presença de sinais claríssimos da guerra híbrida no país.

Assim, um dos resultados necessários do que se pode chamar de uso real do Lawfare é a fragilização ou a destruição da democracia nos países em que é aplicado. A resultante é a substituição de um governo eleito por um governo de fantoches, geralmente representantes da extrema-direita. E o Lawfare atinge o núcleo do sistema democrático não só ao violar a autonomia e a autodeterminação dos povos, mas ao impedir a aplicação de normas e procedimentos que permitem às minorias políticas se transformarem em maiorias, garantindo não somente a alternância do poder e a livre expressão da vontade popular, como a própria existência daquelas minorias.

Em resumo, o Lawfare diz respeito à fragilização de democracias que procuram independência e não alinhamento, e tem como efeito secundário – e desejado – a desestabilização de ecossistemas políticos para a rapinagem geral, realizada por setores do capital internacional.

Lawfare, redemocratização e corrupção do direito

O Lawfare pode, contudo, se colocar como um modus operandi contínuo em países cuja independência geopolítica seja frágil, como é o caso do Brasil. A introjeção de procedimentos persecutórios pode perdurar mesmo após o sucesso de uma campanha de desestabilização. 

No nosso caso, apesar da deposição ilegal de Dilma Rousseff em 2016 e da ascensão previsível da extrema-direita após a prisão de Lula em 2018, a derrota eleitoral de Bolsonaro em 2022 trouxe de volta a sombra da ameaça ao novo governo democrático.

As nossas instituições políticas resistiram heroicamente à política de desmonte realizada na última década. Ainda assim, não fomos capazes de desarticular e desmontar os mecanismos de soft power e de Lawfare que possibilitaram todo o desastre que vivemos recentemente. 

Aqui, o lavajatismo ainda continua forte no Judiciário, as lideranças artificialmente constituídas pela extrema-direita foram eleitas em vários níveis e a violência da guerra híbrida se institucionalizou no direito e é, hoje, uma realidade. E essa regularização do Lawfare representa a mais pura e real corrupção do Direito. 

Não é espantoso que o Lawfare se organize hoje, paradoxalmente, com o discurso anti-corrupção. Limpar o país dos corruptos é o cântico lavajatista por excelência, sob as bênçãos renovadas dos meios de comunicação ainda hegemônicos. Ele encontra fácil convergência narrativa extremista do “olho por olho, dente por dente” e com a noção de punição como neutralização dos indesejados e diferentes ou como purificação da sociedade.  

O Direito, quando abusado desta forma, se transforma numa arma quase religiosa: justifica-se como se portasse uma moral absoluta, única e sem falhas, a punição vista como extermínio do mal. Mas o objetivo do lavajatismo não é exclusivamente criminalizador e criminoso. Sua ação, para se transformar em Lawfare, precisa de finalidade geopolítica.

É por isto que o Lawfare pode ser classificado como uma narrativa. A caçada criminosa através do Direito precisa se vender como um procedimento normal. E provavelmente vem daí a confusão entre uma tática geopolítica com o funcionamento “meramente” injusto do sistema de justiça.

Separar o que é Lawfare do que não é, separar o que é essencialmente jogo antidemocrático, desestabilizador, geopolítico, do uso simplesmente criminoso do sistema de justiça é o nosso desafio conceitual, hermenêutico e de ação política.

Rogerio Dultra dos Santos é Cientista Político. Professor de Teoria do Estado e de História Constitucional Brasileira do Departamento de Direito Público da Universidade Federal Fluminense. Colaborador da Comissão Especial de Estudos e Combate ao Lawfare da OAB-RJ. Também é membro da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia – ABJD.

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