Perguntas inteligentes carregam, em si, a própria resposta. Poderíamos alterar um pouco essa máxima e dizer que perguntas pró-guerra pedem respostas pró-guerra, assim como perguntas pró-paz pedem respostas pró-paz.
E se quiséssemos confirmar esse raciocínio, bastaria usar como exemplo as perguntas da imprensa ocidental durante todas as coletivas de que Lula vem participando, em sua viagem à Europa.
Hoje pela manhã, na coletiva em Madrid, foi a mesma coisa.
A imprensa ocidental é obcecada pela guerra. Não digo que é obcecada pelo tema guerra, mas pela semântica, pela lógica da guerra.
Triste dizer ainda que isso é uma característica quase atávica na história da imprensa ocidental. O marxismo sempre denunciou essa obsessão da imprensa burguesa de arrastar o mundo para conflitos sangrentos intermináveis. Alguns conservadores também perceberam isso. Spengler o dizia em sua obra mais conhecida, sobre a decadência do ocidente. Com ironia repleta de melancolia e pessimismo, o autor observa que a invenção da imprensa moderna (ele publicou seu livro em 1918) teria sido uma das grandes tragédias da humanidade, porque, antes dela, os donos do poder precisavam fazer ameaças terríveis, de morte e tortura, para convencer os trabalhadores a participarem da guerra. Após o advento dos jornais, bastavam alguns editoriais emocionados para persuadir as massas, com incrível facilidade, a marcharem, alegremente, na direção de sua própria carnificina.
Um outro escritor europeu, desta vez um progressista, o austríaco Stefan Zweig, que viveu intensamente o período de acirramento de ânimos, também confessa a sua perplexidade com o papel de agitadora pró-guerra da imprensa europeia, e descreve a construção de uma cultura bélica, antidiplomática, nos meses que antecederam tanto a primeira quanto a segunda grandes guerras.
Essa mesma sintaxe jornalística pró-guerra se repetiu ao longo de toda a guerra fria e, após o fim desta, nos meses que antecederam as guerras do Iraque, da Líbia, da Síria, etc.
O caso da Ucrânia é parecido. A mídia ocidental não pede mais esforços diplomáticos. Não se pede que ela defenda a Rússia, ou deixe de condenar a invasão, mas seria útil que ela ponderasse que o problema é mais complexo do que essa condenação, que desse espaço para analistas críticos da expansão da Otan. Seria interessante, por exemplo, que desse mais espaço para o que a China tem defendido, diariamente, nas coletivas oferecidas pelo ministério chinês de relações exteriores.
Muitos clássicos foram escritos sobre os trágicos erros políticos que levaram às grandes guerras mundiais.
O livro de estreia de Keynes, Consequências Econômicas da Paz, e o primeiro capítulo da obra-prima de Churchill (“A loucura dos vencedores”), acusam as potências europeias mais “esclarecidas”, como França e Reino Unido, de absoluta cegueira diplomática, arrogância política e uso insensato de sanções econômicas, esquecendo que, do outro lado, havia não apenas um governo, mas povos inteiros, e que o comércio internacional (já naquela época!) não poderia ser manipulado tão facilmente, por bloqueios a este ou aquele país, sem provocar uma enorme crise política e econômica em todas as regiões do mundo. Essas posições insanas do ocidente apenas seguiram adiante porque foram apoiadas, incentivadas, açuladas, pelo ruflar dos tambores da imprensa, esse quarto poder das democracias modernas que, à diferença dos outros, que ao menos precisam, regularmente, prestar contas ao povo, tornaram-se antes capangas dos interesses do grande capital internacional.
“Sou o único que fala em paz. Me sinto como um homem no meio de um deserto”, protestou Lula na coletiva de Madrid. E lembra que já havia conversado, na maioria das vezes diretamente, olho no olho, com Biden, Putin, Zelensky, Xi Jinping, Olaf Scholtz, Macron, Marcelo Rebelo de Sousa e, agora, com Pedro Sanchez.
“Cada um acha que tem razão, cada um acha que pode mais. O dado concreto é que povo está morrendo”, declarou Lula.
Que outra liderança política coloca a vida humana, tanto de ucranianos quanto de russos, em primeiro lugar no debate sobre a guerra?
Qual o diferencial do discurso de Lula? Podemos citar o mais importante: ele condena a Rússia pela invasão da Ucrânia, um ato de violação da soberania e da integridade de uma outra nação. Entretanto, à diferença de toda a imprensa e diplomacia do ocidente, Lula lembra que os Estados Unidos invadiram o Iraque, e que França e Inglaterra invadiram a Líbia. Nenhum erro justifica o outro. Uma análise objetiva dos fatos, contudo, precisa botar as cartas na mesa. A comunidade internacional não impôs sanções econômicas aos EUA pela invasão no Iraque, nem tampouco à França e Inglaterra pelo que fizeram na Líbia. Isso sem falar na Síria, igualmente alvo de ataques das forças armadas ocidentais.
Não foi a Rússia que iniciou o processo de desestabilização geopolítica do oriente médio, que contaminou o mundo inteiro. Foram os EUA, na guerra do Iraque.
Não foi a Rússia que rompeu a promessa política de destensionar e desmilitarizar o Leste Europeu após o fim da guerra fria. Ao contrário, EUA, associado a uma Europa ocidental incrivelmente submissa, vem expandindo a Otan há décadas, na contramão de todo o esforço internacional pela paz.
No final da coletiva, vendo que os jornalistas continuavam fazendo perguntas carregadas de uma semântica pró-guerra, Lula subiu o tom, e externou o que realmente o preocupa.
“Se essa guerra se prorrogar, não sabemos o que vem por aí. Vocês sabem do que estou falando. Uma desgraça ainda maior pode acontecer”.
Lula se refere, naturalmente, à degeneração do conflito para uma guerra nuclear, o que poderia pôr em risco a vida no planeta.
O presidente do Brasil parece o único adulto numa sala cheia de adolescentes brigões, mais preocupados com o próprio ego do que com as consequências de seus atos.
Ele lembra ainda um fato curioso: que os membros do conselho de segurança da ONU mais empenhados em continuar a guerra são exatamente aqueles que mais produzem e vendem as armas usadas nos campos de batalha da Ucrânia.
“A China pode se tornar a segundo maior economia do mundo, e há muitos anos não entra numa guerra”, provocou o presidente, para deixar claro que ele não pactua com a estratégia de dois pesos e duas medidas adotada pelas nações ocidentais, que aplicam sanções a Russia pela invasão da Ucrânia, mas nunca fizeram o mesmo com os EUA, que invadiu o Afeganistão, o Iraque e a Síria, nem com a França e Inglaterra, que destruíram a Líbia, até então um dos países mais prósperos e modernos do oriente médio. Esse desequilíbrio é a origem de todas as atuais instabilidades geopolíticas do mundo, e a solução, lembra Lula, é empoderar e democratizar as instituições multilaterais, ou seja, reformando, modernizando, fortalecendo a governança global.
Não é a tôa que Steve Bannon, o ideólogo norte-americano que se tornou uma espécie de consultor de comunicação da nova direita mundial, considera Lula o “esquerdista mais perigoso do mundo”.
É mesmo.
Lula é perigoso porque se o deixarem agir por mais tempo, respondendo a coletivas internacionais, participando do jogo geopolítico, periga ele realmente trazer paz ao mundo, gerando enorme prejuízo à indústria da guerra, além de consolidar um debate consequente, objetivo, sobre a necessidade de modernizarmos a governança global, o que não seria nada mais do que organizar, a partir de critérios mais democráticos e ecológicos, a distribuição dos recursos naturais e humanos do nosso planeta.