O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, deu entrevista ao Estadão em que demarcou um de seus principais campos de batalha: promover maior justiça fiscal no Brasil.
Uma das estratégias será pôr um ponto final em todas as renúncias fiscais consideradas injustas ou exageradas.
O primeiro passo de Haddad, segundo ele, será dar transparência, CNPJ por CNPJ, a cada renúncia fiscal do governo federal.
A medida será saneadora, e, nas circunstâncias nacionais, quase revolucionária, porque significará o fim de décadas, para não dizer séculos, de relações obscuras, movidas por lobbies nem sempre republicanos, entre o Estado e a iniciativa privada.
A sociedade poderá conferir, com seus próprios olhos, que empresas ganham benesses fiscais do Estado. Será muito instrutivo para todos vermos como os gastos com programas sociais, como Bolsa Família, o Mais Médicos, os financiamentos populares de casa própria, empalidecem diante da magnitude da generosidade do Estado para com alguns empresários brasileiros.
Haddad mencionou ainda a reforma tributária, que deve acontecer ainda este ano, talvez ainda no primeiro semestre, onde haverá uma batalha feroz entre setores privilegiados da sociedade, que tem larga representação no congresso e forte poder de lobby, e um governo popular disposto a elevar a arrecadação do Estado sem impor ônus à classe média, o setor produtivo e a população mais pobre, visando gerar recursos para investimentos em infra-estrutura e melhorar a educação e a saúde do povo.
Na mesma entrevista, Haddad também deu declarações corajosas sobre a vontade do governo de propor mudanças nas metas de inflação, critério usado pelo Banco Central para justificar os juros altos no país. Haddad propõe que o Brasil adote os padrões modernos, usados nas economias desenvolvidas, de mudar os prazos da meta de inflação, que não precisam ser anuais.
Com prazos de inflação mais flexíveis, haveria um espaço maior mais baixar os juros.
Haddad também comentou a oposição de alguns setores do próprio PT ao arcabouço fiscal, o projeto do do governo para substituir o teto de gastos e estabelecer um novo regime fiscal no país. O ministro admitiu que essa oposição existe, mas que a disciplina partidária exigirá que todos os deputados da legenda votem para aprovar o projeto. “Governo é governo”, explicou Haddad.
O ministro adiantou ainda qual será sua estratégia para promover melhor justiça tributária no imposto de renda:
“Vou enfrentar da seguinte maneira, eu vou sempre separar o estoque do fluxo. Eu penso que, metodologicamente, faz sentido fazer isso. Vou falar: ‘daqui para frente, vamos fazer o que o mundo inteiro faz e discutir o para trás numa negociação transparente com a sociedade’. Daqui para frente, rico e pobre, todo mundo paga igual. Não precisa ser rico para pagar Imposto de Renda. Aqui no Brasil, precisa ser rico para não pagar Imposto de Renda. Sendo rico é que você adquire o direito de não pagar Imposto de Renda. É uma coisa impressionante. Vamos, daqui para frente, arrumar. E para trás, o estoque? Vamos pensar numa alíquota? Aí, é uma receita extraordinária.”
A entrevista mostra ainda um político extremamente cuidadoso para as questões políticas, como o relacionamento entre governo, Banco Central, congresso e sociedade. Haddad vem costurando, há tempos, uma relação cordial e construtiva, com o presidente do BC, Roberto Campos Neto.
Lula bate no Campos Neto de um lado, e Haddad o procura para saber se ele está disposto a ajudar o país a baixar o custo do crédito. É um jogo ao mesmo tempo pesado e delicado, mas necessário, e aparentemente a única estratégia que restou ao governo, ao mesmo tempo em que trabalha para mudar a meta de inflação, especialmente no tocante aos prazos, que podem ser maiores que um ano, de maneira também a desconstruir o justificativa técnica do BC para manter os juros nos atuais níveis estratosféricos.
(“…) não existe essa avaliação (anual) em nenhum lugar do mundo. Não tem meta anual em nenhum lugar. Todos os países que adotam meta de inflação é meta contínua.
Abaixo, alguns trechos da entrevista:
(…) Que maneira é essa?
A novidade dessa gestão é que o equilíbrio das contas vem com o fim das regalias a quem não precisa delas, e não com o corte de saúde, educação e salário mínimo – como vem acontecendo de sete anos para cá.
O sr. está falando de várias medidas para aumentar a arrecadação nesse sentido…
No sentido de recompor a base. Eu insisto que é uma recomposição da base fiscal. Não estamos levando em conta receitas extraordinárias. É algo que vai todo ano acontecer. Com a reforma tributária, que vai acabar com a festa de lobbies no Congresso Nacional, com os velhos e novos jabutis, vamos consolidar uma base tributária estável para o Estado. Você vai ver como isso vai garantir uma condição de sustentabilidade. São R$ quase 600 bilhões de renúncia fiscal. Estamos falando de rever um quarto das renúncias.
Outros governos já tentaram…
Ah, mas é que chegou no limite. Chegou no limite social, estamos tirando o pão da mesa do trabalhador para engordar o lucro de empresas que estão tendo lucro. Mas essa agenda, muitos governos e ministros falaram e nunca de fato foi enfrentada. Não creio que ela foi abraçada como está sendo agora. Eu despacho com relator de MP, de projeto de lei, ministro do STJ, ministro do STF, despacho todo o dia. Eu estou negociando pessoalmente.
E por que o sr. acredita que agora será diferente?
Se a imprensa trouxer para a luz do dia – e vocês continuarem trazendo – que nós, ao invés de matar a fome, de atender as pessoas no posto de saúde, reduzir a fila do SUS, estamos aprovando um benefício fiscal para quem não precisa, se isso estiver escancarado aos olhos de todo mundo, como eu pretendo. Estamos dialogando com a AGU (Advocacia Geral da União), que temos que explicitar os benefícios fiscais CNPJ por CNPJ.
Apesar de cobrança da sociedade, a Receita nunca fez isso por alegar questões jurídicas.
Nós queremos enfrentar. Os liberais brasileiros neste momento deveriam ser os primeiros a defender a transparência: ‘olha explicitem os benefícios fiscais , CNPJ por CNPJ, empresa por empresa’. O chamado gasto tributário no Brasil está chegando a R$ 600 bilhões. Estamos pagando R$ 700 bilhões de juros porque estamos abrindo mão, renunciando R$ 600 bilhões, que deveriam ser pagos. Vamos supor que, de legítimo desses R$ 600 bilhões – Santas Casas, entidades beneficentes, Prouni (programa de financiamento estudantil) –, isso tudo chega a quanto? A R$ 200 bilhões, R$ 300 bilhões. Ainda é o dobro do que nós precisamos para fechar as contas.
O comando da Receita sempre foi reticente a abrir essas dados. Por quê?
Eu acredito que não se trata de sigilo fiscal. O meu comando da Receita não acha que seja.
Na lista dos gastos tributários, há políticas com renúncias muito elevadas e de difícil corte.
No Simples (regime simplificado de tributação para empresas de até pequeno porte) não pretendemos mexer. Mesmo assim, estamos falando de valores muito consistentes.
Mas o sr. não é o primeiro ministro da Fazenda que diz que vai acabar com privilégios. O sr. está disposto a comprar essa briga?
Eu comprei em outras circunstâncias também. Eu comprei uma briga gigantesca para fazer o Prouni, porque as instituições não pagavam impostos. As instituições de ensino privado não pagavam impostos. Foi um acordo que beneficiou 3 milhões de estudantes pobres e pretos. Eu negocio. Eu vou sentar à mesa com esses setores que estão sendo afetados por essas medidas para negociar.
Com a reforma tributária, que vai acabar com a festa de lobbies no Congresso, com os velhos e novos jabutis, vamos consolidar uma base tributária estável para o Estado
O sr. não teme ser minado no cargo por comprar essa briga?
Se eu temesse alguma coisa, eu iria assumir o ministério da Fazenda nessa conjuntura? Não tem isso. Se você acredita num projeto, tem que defendê-lo.
O sr. acredita que o site com os nomes do CNPJ pode ajudar nesse movimento da revisão dos benefícios?
Eu acredito. Se a AGU entra nisso e a gente explicitar qual é o gasto tributário e para o que ele está sendo feito, qual é a justificativa, eu creio que muitas dessas coisas saem. Falava-se muito de caixa preta do BNDES, mas ele não existia. Mas no Orçamento ela existe. A maior caixa preta do Orçamento é o gasto tributário. Falava-se muito em orçamento secreto (mecanismo revelado pelo Estadãocriado no governo Bolsonaro de distribuição de emendas parlamentares sem transparência e critérios para obter apoio político). Esse orçamento é o mais secreto de todos. Por que alguém se insurge contra o orçamento secreto, o BNDES, e quando vai falar de gasto tributário, fica todo mundo com medo de falar? Eu não vejo a turma vir a público defender essa agenda. Cadê a turma do equilíbrio macroeconômico? Não adianta esses economistas liberais falarem: ‘é muito difícil de conseguir’. Lutem pela causa. Ela é justa. Vamos ficar mais sete anos sem reajuste do salário mínimo para manter esses gastos tributários? Mais sete anos sem médico? Sem reajuste da bolsa da Capes, tirando dinheiro da educação para sustentar esse gasto? Fica para a sociedade o que se está fazendo com o dinheiro dela: ‘olha, eu não vou dar reajuste de salário mínimo porque eu vou dar uma subvenção de R$ 5 bilhões para tal empresa’.
Boa parte desses gastos tributários foi criado no governo do PT. Como o sr. responde?
Não estou mexendo com os que foram criados pelo PT. Não estou mexendo com o Simples e não estou mexendo com desoneração da folha (redução dos encargos cobrados sobre os salários dos funcionários). Nós não vamos reonerar a folha. Até porque vamos tratar disso depois da emenda constitucional.
Mas existem outros incentivos também criados nos governos petistas.
Mas aconteceram coisas que o PT não poderia prever: por exemplo, a retirada do ICMS da base de cálculo do PIS/Cofins, que fez com que a arrecadação caísse R$ 100 bilhões. Isso não estava no horizonte. São coisas que aconteceram agora. Esse dispositivo de 2017, que abriu um rombo de R$ 88 bilhões, não estava na conta. São coisas que aconteceram depois e abriram um buraco no Orçamento e que precisam ser revistas. Agora, a reforma tributária é o grande antídoto contra futuras investidas em relação à base fiscal do Estado. A reforma tributaria estabiliza uma base fiscal. Vamos trabalhar com essa base, que dá uma sustentabilidade fiscal muito grande para o País – inclusive do ponto de vista de segurança jurídica, porque é muito mais inquestionável o IVA (Imposto sobre Valor Agregado) do que qualquer outro tributo com suas milhares de excepcionalidades, como acontece hoje.
O sr. depende do Congresso, que não é “amigo” dessa pauta.
Tenho me surpreendido positivamente com o Congresso. Eles estão muito sensíveis. O estrago foi muito grande. Por incrível que pareça, o teto de gastos (regra que atrela desde 2017 o crescimento das despesas à inflação) aumentou o gasto tributário. O teto ampliou o gasto primário.
Por quê?
A regra fiscal ficou frouxa num tal nível que a única política que era possível fazer era abrir mão de receita. Como o gasto estava contratado, o que a política, entre aspas, podia fazer? Abrir mão de receitas – e foi o que eles fizeram. Fizeram duas coisas: no gasto, criaram os extra-tetos; e na receita, abriram mão. Eles desorganizaram totalmente as finanças públicas com a complacência, inclusive, de muitos que cobram providências em 90 dias do governo para pôr ordem em tudo.
Há alguma ação ideológica do PT contra o arcabouço fiscal? Algumas lideranças, como a presidente do partido, Gleisi Hoffmann, já falaram que não querem teto para investimentos, por exemplo.
Claro que tem. Eu vi essa matéria. O Lula teve que inventar prévias dentro do PT, entendeu? Não vai ter unanimidade no PT, o que quer que seja.
Mas o PT vai votar a favor?
Ah, vai. Não existe isso. O governo é governo. Tem sua base e vai dar o comando para a base. Ali, todo mundo é adulto.
Mas o partido pode mudar o projeto?
Não tem clima para mudar. Foram muito negociados esses parâmetros, foi muito conversado. Eu ouvi muita gente. Eu não podia revelar, mas eu podia ouvir.
Como o sr. vai enfrentar a mudança na tributação diferenciada que os fundos exclusivos dos super ricos têm hoje?
Vou enfrentar da seguinte maneira, eu vou sempre separar o estoque do fluxo. Eu penso que, metodologicamente, faz sentido fazer isso. Vou falar: ‘daqui para frente, vamos fazer o que o mundo inteiro faz e discutir o para trás numa negociação transparente com a sociedade’. Daqui para frente, rico e pobre, todo mundo paga igual. Não precisa ser rico para pagar Imposto de Renda. Aqui no Brasil, precisa ser rico para não pagar Imposto de Renda. Sendo rico é que você adquire o direito de não pagar Imposto de Renda. É uma coisa impressionante. Vamos, daqui para frente, arrumar. E para trás, o estoque? Vamos pensar numa alíquota? Aí, é uma receita extraordinária.
O sr. tem ideia da alíquota?
Não tenho ideia, porque não abri essa negociação. Mas quando eu abrir, ela pode ser uma receita extraordinária. Não vou contar com ela para sempre. Tributaristas avaliam que o governo pode arrecadar muitos bilhões de reais com essa medida, muito além dos R$ 10 bilhões que o governo previu lá atrás.
O sr. tem noção do valor?
Eu já vi conta. Mas tem gente que está confundindo essa medida com offshore (medidas para evitar triangulação). Eu acredito que é um volume significativo, sobretudo se contar o estoque.
No caso dos incentivos dos benefícios ao setor de refrigerantes na Zona Franca de Manaus, o sr. também vai mexer?
Já fui apresentado ao problema. Olha, nós não temos na Fazenda tabu em abrir contas do orçamento fiscal nebuloso. Queremos abrir. A caixa preta do gasto fiscal é a maior da história.
O presidente Lula, quando foi para a China, disse que na volta talvez fosse o momento de discutir a meta de inflação que não está sendo cumprida.
Na minha opinião, tem o momento de fazer. E eu creio que estou com um cronograma que faz diferença para antecipar ou não determinadas medidas e até determinadas discussões.
Como a meta de inflação?
Como essa, por exemplo. Estamos vendo amadurecer o quadro externo, interno. Esse debate está sendo feito no mundo inteiro e não só no Brasil. Nós estamos acompanhando o debate acadêmico, o mercado, como as pessoas estão reagindo. Há divergências entre os economistas. Os mais reputados até estão a favor de uma mudança de meta.
O sr. gosta desse modelo?
É que não existe essa avaliação (anual) em nenhum lugar do mundo. Não tem meta anual em nenhum lugar. Todos os países que adotam meta de inflação é meta contínua.
Então o sr. vê com bons olhos essa mudança?
Lógico que sim. Essa ideia que está circulando faz sentido para mim porque em todo o lugar que estabeleceu regime de metas ela é contínua. Uma exceção que é a Turquia e vamos combinar que não está muito bem de inflação.
O presidente do BC apresentou esse estudo para o sr.?
Formalmente, não. Mas ele comentou. Essa ideia não é minha nem dele. É do mundo inteiro. É a prática mundial. Nós já conversamos sobre isso. E o BC, antes deste governo, já vinha discutindo esse assunto.
É um caminho que o Brasil pode pensar em seguir?
No momento adequado, eu acredito que essa questão vai ser revisitada.
O que achou da análise do presidente do BC, Roberto Campos Neto, de que o arcabouço é superpositivo?
Eu tenho uma relação institucional com o BC. É uma relação institucional que vem sendo construída. Isso significa que precisamos concordar sobre tudo? Não. Nossa relação vai se manter, independentemente. Desse ponto de vista, eu tenho que manter os canais abertos, de diálogo, de construção conjunta. E colocar as convergências. O BC não é um espectador do que acontece no sistema econômico. Ele é parte, inclusive, da formação de expectativas. O que nem sempre o BC se vê como. Mesmo quando ele decide sentar na arquibancada e assistir o jogo de fora, ele está formando expectativa ao tomar essa decisão. E quando ele entra em campo está formando expectativa também.