O historiador Guilherme Lemos destaca práticas que foram usadas para afastar pessoas negras do centro
Publicado em 21/04/2023 – 15h56
Por Valmir Araújo – Brasil de Fato – Brasília (DF)
Brasil de Fato — Em 21 de abril de 1960, a nova capital do Brasil era oficialmente inaugurada. A partir de então, Brasília passa a ser o palco principal da vida política brasileira, com presidentes democraticamente eleitos tomando posse, renúncias, tentativas de golpes de Estado, ditadura civil-militar e redemocratização.
Nesses 63 anos, Brasília atraiu pessoas de todo o país e se firmou como a terceira maior cidade brasileira, com uma população majoritariamente negra, conforme o Mapa das Desigualdades do Distrito Federal, lançado na Câmara Legislativa no dia 14 de abril.
Apesar da maioria negra, o Distrito Federal é marcado por uma forte segregação racial. É o que constata o trabalho do pesquisador Guilherme Lemos.
Lemos é historiador, professor do Instituto Federal de Brasília (IFB), e cresceu em uma das cidades satélites do Distrito Federal (atualmente denominadas como regiões administrativas). Em sua pesquisa de doutorado, comparou a capital brasileira a Joanesburgo – maior cidade da África do Sul – e, em entrevista ao Brasil de Fato DF, destacou uma série de similaridades entre as duas cidades.
“O ambiente [de Joanesburgo] por vezes me lembrou Brasília. O centro branco, uma vida nesse centro que acaba depois das 18 horas, porque os trabalhadores, que são quem movimentam, vão para suas casas distantes”, observou Guilherme Lemos, ao falar sobre as semelhanças de Brasília com Joanesburgo, que ficou mundialmente conhecida pela política do apartheid, que a África do Sul utilizou até 1994 para segregar a população negra.
O pesquisador destaca um dado da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) que aponta Brasília como a cidade mais segregada no mundo, à frente de cidades da África do Sul e dos Estados Unidos. Segundo a pesquisa, a população negra (pretos e pardos) é de 35% no Plano Piloto (centro), sendo apenas 4,7% de pretos e 65% de brancos. Por outro lado, na Ceilândia (30 km do Plano) 65% da população é negra. Esse levantamento foi feito com base no Censo do IBGE de 2010.
“Existiu um sistema de pontuação para funcionários que poderiam ocupar o centro e um dos critérios era que a pessoa precisaria ser ‘idônea’, o que já possibilita essa segregação, que foi sustentada também pelo poder aquisitivo”, disse Lemos sobre o processo histórico de ‘divisão’ de pessoas que ocorreu em Brasília.
Na contramão do que muitos propagam sobre a segregação ter sido acidental, o pesquisador traz uma série de elementos que apontam que, com a criação das cidades satélites, essa divisão social e racial esteve presente no planejamento da cidade.
Brasil de Fato DF: A primeira questão aqui que chama atenção nos dados da sua pesquisa é o contraste. O Distrito Federal é majoritariamente branco na região central e negro [preto e pardo] na maior parte das regiões administrativas. O que explica esse contraste racial?
Guilherme Lemos: Essa realidade de Brasília faz parte de um movimento global do capitalismo tardio. Se você olhar o Brasil e o nacional desenvolvimentismo dos pós Segunda Guerra você vai encontrar semelhanças, por exemplo, do processo de desenvolvimentismo sul-africano, que eu usei para fazer a comparação no meu trabalho. Esse movimento necessitava de um planejamento das periferias e isso foi realizado tanto aqui em Brasília, com a implementação das cidades satélites, como em Joanesburgo, na África do Sul com as townships.
Então podemos dizer que isso foi planejado aqui em Brasília?
O planejamento de Brasília usou o corpo técnico que planejou a segregação. Então, hora usava o termo cidades satélites, ora usava outro termo. Porque aí dentro da história do planejamento urbano existe uma diferença entre a favela e a cidade satélite. E que em inglês favela seria slum, que seria esse assentamento que surgiu de modo desordenado, diferentes daquele assentamento planejado, que seriam as townships ou satelite cities, aqui as cidades satélites.
Então eu entendo esse planejamento como parte desse processo de capitalismo tardio que vai tentar extrair de forma mais objetiva a força de trabalho da cidade moderna.
Nesse modelo, se pensa na cidade no centro e no exército de reserva de trabalhadores ao redor para atuarem neste centro, mas morarem longe dele.
No Brasil esse processo só ocorre em Brasília? E como a questão racial foi pensada?
Eu pensei muito em raça durante todo o trabalho até porque Brasília se tornou um monumento desse Brasil da democracia racial, que tenta apagar a todo custo a história e as lutas no pós-abolição. Além disso, ser um pesquisador negro nascido e criado em uma satélite me fez questionar sobre a racialidade desse espaço.
Mas essa tentativa de apagamento da população negra já havia sido executada antes na antiga Capital, que é o Rio de Janeiro, durante as reformas “Pereira Passos” para ‘limpeza’ do centro, que nada mais foi que a remoção de trabalhadores e pessoas pobres. E essas pessoas têm uma cor, que é a negra.
No caso do Rio essa reforma parece não ter sido suficiente, daí existiu a necessidade de mais uma vez pensar uma nova capital, pensar um novo progresso e uma população que reflita um Brasil moderno. Então, a gente pode pensar Brasília como uma continuidade dessa tentativa de segregação que se tentou antes no Rio de Janeiro, mas agora sobre a hipocrisia da democracia racial.
Então, esse projeto funcionou em Brasília?
Eu comecei com a hipótese de que funcionou. E se você olha para o mapa você pensa que esse projeto segregacionista deu certo, pois hoje Brasília é, segundo a OCDE, a cidade mais segregada no mundo, ficando à frente das cidades da África do Sul e dos Estados Unidos. Porém, esse projeto também foi frustrado pela experiência dos movimentos sociais.
Essas pessoas por mais que sejam excluídas da vida, do centro de Brasília, elas criaram também outras possibilidades de existirem e resistirem. Temos vários exemplos como o dos Incansáveis Moradores de Ceilândia até os Jovens de Expressão a gente tem uma história de luta, questionamento, resistência de condições para lazer, educação que mobiliza os moradores das cidades.
E qual o papel do arquiteto e urbanista, Lúcio Costa, autor do projeto do Plano Piloto, nisso?
Em momentos anteriores a construção de Brasília, o Lúcio Costa fez afirmações em uma entrevista de 1928 se queixando que toda arquitetura era uma questão de raça, que enquanto nossa população fosse essa coisa “exótica” de gente de “caras lívidas” nossa arquitetura seria “forçosamente uma coisa exótica””. Mas depois ele vai se juntar ao projeto Gilberto Freyre e vai falar que esse projeto de país moderno é o projeto da mistura.
No entanto, a gente sabe, desde Abdias Nascimento, Sueli Carneiro e Lélia Gonzalez, de todas essas contradições nesse projeto Brasil que se falava em mistura, mas promovia a segregação racial.
Existe uma discussão sobre o projeto de Lúcio Costa incluir ou não as cidades satélites. O que você descobriu na sua pesquisa?
Fica no conhecimento popular sobre Brasília que as cidades satélites não foram planejadas, mas que elas foram surgindo de forma autônoma, porque não estão no plano do Lúcio Costa, eu mesmo acreditava nisso antes da pesquisa. Esse conhecimento é porque o Lúcio Costa não falava em cidade satélite, não planejava cidade satélite e para ele essas cidades surgiriam de uma força centrífuga, que as populações iriam surgir espontaneamente ao redor de Brasília.
O plano do Lúcio Costa não foi o único plano a ser utilizado durante a construção de Brasília. Existiram pelo menos outros três planos antes do plano de Lúcio de Costa para a transferência da capital. O plano do Costa ganhou o concurso e o corpo técnico que trabalhou nele também já tinha trabalhado na Comissão para Transferência da Nova Capital do Marechal José Pessoa de Albuquerque entre 1951 e 1956. Nesse plano já se previa a construção de cidades-satélites.
Uma informação nova que eu trouxe na minha pesquisa é que o engenheiro sanitarista Saturnino de Brito Filho trabalhou junto do urbanista Penna Firme nesse plano, antes do Lúcio Costa. Então Saturnino pensava na preservação das águas da nova capital removendo os trabalhadores e criando um cinturão verde.
Esse plano Albuquerque é aquele bem clássico onde o Penna Firme pensava o nome da cidade como Vera Cruz, que não foi executado, mas é um plano importante, porque aquele corpo técnico depois estava presente durante a construção de Brasília, como esse Saturnino. Então ele já pensava na construção de cidades satélites. Aí a gente tem várias evidências de que as cidades satélites já sendo planejadas, apesar de não estarem no plano de Costa.
E qual era o argumento?
Então o argumento clássico é de que essa segregação aconteceu acidentalmente, em Brasília. No entanto, o Saturnino foi contratado pra ser o responsável pelo planejamento de água e esgoto de Brasília, essa foi a descoberta da pesquisa. Logo em seguida, os técnicos elaboraram a faixa de segurança sanitária, que é delimitada através da DF 001. Essa DF circunda o centro de Brasília e então a Novacap determinou que as cidades satélites deveriam ficar para além da faixa de segurança sanitária, com o argumento de preservação das nascentes do lago.
Então todas as cidades satélites surgiam com esse argumento de preservação, mas é interessante que ao mesmo tempo outras pessoas puderam ocupar o centro de Brasília sem que esse argumento fosse utilizado. E o tratamento das águas do Lago Paranoá só foi efetivo depois dos anos 1990. Então esse argumento foi utilizado para que essas pessoas fossem removidas, mas outras pessoas puderam ocupar esses espaços.
A Novacap determinou que as cidades satélites deveriam ficar para além da faixa de segurança sanitária, com o argumento de preservação das nascentes do lago.
Eu enxergo isso historicamente. É um processo que está no cerne do que é a construção de Brasília. Pensar nessa Cidade-Jardim, que teria um centro circundado com áreas verdes e as outras cidades satélites ficariam para fora desses espaços. Ao mesmo tempo, a especulação imobiliária se aproveitou exatamente dessas áreas verdes.
E como surge Ceilândia, que hoje é a maior região administrativa do DF e que tem esse destaque na sua pesquisa por concentrar um perfil racial totalmente diferente do Plano Piloto?
O surgimento da Ceilândia é o maior símbolo desse processo que eu analisei no trabalho, porque ela surge nos anos 1970, fruto de um dos maiores processos de remoção das pessoas do Vila IAPI e outros assentamentos que foram surgindo nessa região entre o Aeroporto e o centro de Brasília.
Na verdade, foram vários assentamentos que surgiram em torno do Hospital do IAPI, que hoje é o Museu Vivo da História Candanga. Estamos falando de cerca de 80 mil pessoas que foram removidas, já no período da ditadura no Brasil. No entanto, é importante dizer que houve remoções também no período democrático. Cidades como Taguatinga, Sobradinho e Gama também foram frutos de remoções de pessoas que estavam na área central de Brasília.
Semelhanças entre Brasília e Joanesburgo
E como se firmou essa comparação entre Brasília e Joanesburgo, uma vez que você morou e estudou sobre as duas cidades?
Então, tanto para os urbanistas no Brasil quanto os urbanistas na África do Sul esses projetos de construção de cidade moderna chegam inspirados nas ideias do inglês Ebenezer Howard, que falava sobre um centro onde existissem outras cidades, mais tarde chamadas de satélites destinadas a pessoas inválidas. O centro estaria dentro do aspecto de normalidade e pra fora você teria essas cidades satélites.
Quando esse esquema chega nos países que tenham experiência colonial, com um racismo que vem de um histórico escravista, é mais do que natural que essas pessoas que fossem excluídas seriam aquelas que tiveram a marca de exclusão, ou seja, as pessoas negras e indígenas. E eu vejo muita gente dizer que Brasília não tem um modelo inglês de planejamento, mas a gente tem estudos mais recentes que apontam sim essa influência inglesa, que é perceptível dentro da documentação.
A história da arquitetura brasileira tentou ‘passar um pano’, tentou limpar um pouco a história de exclusão de Brasília. E um dos argumentos é justamente falar que Brasília não tem esse projeto de exclusão do modelo inglês, que a gente tem uma influência francesa. Porém, o que a gente percebe é que tanto a influência francesa de arquitetura, quanto inglesa, estão presentes na construção de Brasília e de Joanesburgo.
Do ponto de vista pessoal como foi pra você, que é um homem negro, morador de Brasília estar em Joanesburgo, que ficou mundialmente conhecido por causa do regime do apartheid?
Para realizar esse estudo sempre teve uma motivação por ser uma pessoa negra, viver em Brasília que tem suas particularidades e chegando lá eu percebi muitas diferenças e muitas similaridades. Quando a gente pensa África do Sul pensa em segregação total, mas em todo o processo colonial também houve a mistura, menor que aqui claro. E existem as comunidades dessas pessoas, que aqui seriam pardas, no caso os couloureds.
O meu impacto quando eu cheguei lá foi pensar bastante nas diferenças e saber que eu teria que lidar com elas, mas que também existiam muitas similaridades e encontrei.
Quais foram as semelhanças?
O ambiente por vezes me lembrou Brasília. O centro branco, uma vida nesse centro que acaba depois das 18 horas, porque os trabalhadores, que são quem movimentam aquele centro, vão para suas casas que são distantes. Então isso foi uma coisa que me impressionou muito, porque Brasília passou o horário de pico dos ônibus para as cidades satélites o centro da cidade morreu e lá era a mesma coisa.
Nas duas cidades o trabalhador ocupa o centro da cidade até determinado horário e depois ele está excluído daquele espaço. Se você olhar os mapas das duas cidades é possível ver as pessoas negras nas margens, com horário pra voltar pra ir e voltar e com um transporte público precário.
No caso da África do Sul existiam leis que explicitaram essa segregação. Como esse processo se sustentou em Brasília?
Eu fiz toda a análise à luz do que outros pensadores negros que já estudaram as especificidades da questão racial no Brasil, como Abdias Nascimento, Sueli Carneiro e tantos outros. Aqui, por mais que não existiam essas leis de segregação, as estruturas escravistas se encarregaram de continuar atuando.
E eu percebi isso em Brasília com o uso da palavra candango, por exemplo. Essa era a identidade de alguns que chegaram no começo de Brasília e outros autores não recebiam esse nome. Existia essa diferença entre o que é ser pioneiro e o que é ser candango. O que é ser a pessoa que é colaboradora, mas que não construiu a cidade. Então, o candango a gente tem imagens de representação nos jornais da época – era um sujeito negro.
E como o Estado fez essa diferenciação para saber quem ocuparia o centro e a periferia?
Chegou a existir critérios específicos para a construção de casas dentro do perímetro da faixa de segurança sanitária. Então existiu um sistema de pontuação para funcionários que poderiam ocupar o centro e um dos critérios era que a pessoa precisaria ser “idônea”, o que já possibilita essa segregação, que foi sustentada também pelo poder aquisitivo.
E como esse processo seguiu tendo em vista que surgiram novas regiões administrativas, que seguem perfis demográficos raciais totalmente opostos, como é o caso de Águas Claras e a Estrutural?
Se a gente for pensar geograficamente Águas Claras e a Estrutural estão até numa distância similar ao centro, mas fazem parte de imaginários totalmente diferentes.
Águas Claras foi planejada para ser um bairro de classe média/classe média alta e essas classes no Brasil têm cor, que é branca.
Já a Estrutural é fruto de um novo processo de ocupação, de pessoas sem moradia e no geral essas pessoas são pretas ou pardas e isso a gente pode observar no mapa feito por mim e pela Raquel Freire. Então, mesmo nas novas cidades satélites essa lógica segregacionista se mantém e o Estado se faz mais presente em Águas Claras numa comparação a Estrutural, seja por meio de um transporte público de massa que é o metrô seja pela qualidade dos demais serviços prestados.
Edição: Flávia Quirino