A manipulação da CNN e as guerras híbridas

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Que o dia de ontem, 19 de abril de 2023, sirva de lição.

Tudo relacionado à divulgação, pela CNN Brasil, das imagens do Palácio do Planalto no dia 8 de janeiro, foi estranho.

O repórter que recebeu os vídeos, aparentemente, recebeu-os de uma fonte ligada ao bolsonarismo, infiltrada dentro de um dos órgãos de segurança que investigam aqueles crimes.

Não vou entrar no mérito se o repórter tinha ligações partidárias com o bolsonarismo, como parece que tinha, porque isso é do jogo. Jornalistas conhecem pessoas de partido e isso é normal, e até saudável numa democracia. Assim como também é normal que um jornalista tenha suas preferências políticas. Neutro, apenas sabão.

O problema é que o bolsonarismo não é apenas uma “preferência política”. O próprio 8 de janeiro é a prova de que estamos lidando com um movimento antidemocrático, fascista, que não é baseado propriamente numa “visão de mundo” coerente, ideológica, mas é antes a mixórdia de ideias autoritárias, bizarras, baseadas na violência e na mentira. E isso contamina tudo que o bolsonarismo toca.

Fiquemos no exemplo da reportagem da CNN Brasil.

Quando as pessoas tiveram tempo de examinar com mais calma as imagens do general Gonçalves Dias, chefe do GSI (agora afastado, quiçá definitivamente) , perambulando, meio desorientado, no corredor próximo à sala da presidência da república do Palácio do Planalto, entenderam que talvez a interpretação dada inicialmente pela CNN, de que ele estaria, de alguma forma, colaborando com os terroristas, não fosse correta.

A nota do GSI, dizendo que o general e seus assistentes estavam ajudando no processo de evacuação dos terroristas, encaminhando-os para o segundo andar, onde a maioria foi detida pela polícia, fez cair a ficha em muita gente, de que a reportagem da CNN tinha manipulado os vídeos.

Em que consistiu a manipulação? Ora, em primeiro lugar, a reportagem da CNN não procurou o general para que ele se explicasse. Isso foi profundamente desonesto. Em segundo lugar, a emissora não destacou a informação mais relevante para entender o que o general estava fazendo por ali: o horário. No momento em que aparece no vídeo, são 16:30, ou seja, a polícia já havia penetrado no Palácio, e já estava detendo os manifestantes no segundo andar do prédio. A operação de evacuação começara, e Dias e seus assistentes estavam ajudando no processo.

Outro ponto chamou atenção, e causou estranhamento, que foi a proteção das identidades dos agentes do GSI. Por que isso?

Possivelmente, a fonte que vazou o vídeo exigiu isso da reportagem, o que nos leva a suspeitar de que seja uma pessoa conhecida desses agentes, ou mesmo um ex-agente do GSI.

Quando se publica uma reportagem desse tipo, o jornal precisa oferecer uma narrativa coerente, lógica, para o público. A CNN teve o cuidado especial de editar os vídeos de modo que eles envolvessem Dias numa narrativa capciosa, bolsonarista, de que ele estaria ajudando os manifestantes. O próprio Dias percebeu isso, e o disse numa entrevista à Globonews, protestando veemeente contra o que ele havia percebido como um atentado à sua honra.

“Colar a minha imagem àquele major distribuindo água aos manifestantes… fizeram um corte específico na produção dos vídeos que vocês olharam. Aquilo é absurdo para minha imagem. Tenho 44 anos de profissão no Exército Brasileiro. Sempre pautei minha vida nos valores éticos e morais. Meu maior presente é a honra. Não sei onde vazou.”

Dias pediu afastamento, para que o governo possa investigar melhor o que aconteceu. Foi um gesto nobre de sua parte, poupando o presidente de um constrangimento político. O nome escolhido para substituí-lo foi o de Ricardo Cappelli, que se tornou uma espécie de homem forte de Lula quando se trata de lidar com os problemas de infiltração golpista dentro dos órgãos de segurança envolvidos, de alguma maneira, na proteção do governo federal.

O vazamento dos vídeos ocorre no dia seguinte à formalização, pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, do agendamento da CPMI do 8 de janeiro. Os núcleos mais radicais do bolsonarismo no congresso, assim como as franjas mais extremistas do movimento na sociedade, tentam emplacar, há meses, uma contranarrativa sobre os atos golpistas daquele dia. Eles tentam responsabilizar o governo Lula, oferecendo uma teoria conspiratória de que o governo “armou” aqueles atos.

Essa teoria da conspiração é insustentável, irracional, mas isso não parece preocupar os bolsonaristas, porque o objetivo é justamente produzir caos informacional e instabilidade. É uma estratégia clássica da extrema-direita.

Mesmo por esse ângulo, todavia, ainda assim está claro, para mim ao menos, que se trata de uma estratégia desesperada, característica de um animal acuado. A propósito, os próprios atos do 8 de janeiro, e toda a onda de violência cega, desesperada, insana, que vimos assistindo desde a derrota de Bolsonaro no segundo turno, tem sempre as mesmas características. O bolsonarismo é uma besta acuada, ferida, intoxicada com o próprio veneno. E que por isso mesmo é extremamente perigosa.

Também precisaremos examinar com mais calma a CNN Brasil. O papel da CNN americana em todos os golpes e guerras patrocinados ou liderados pelo governo americano, em todas as mutretas imperialistas arquitetadas pelos serviços secretos americanos, sempre foi muito importante. A mídia brasileira e seus analistas vivem num mundinho próprio onde os EUA são uma nação de homens angelicais, governados exclusivamente por boas intenções. Não é bem assim. A divulgação do vídeo pela CNN Brasil ocorre dias depois do presidente Lula ter enfurecido a Casa Branca com uma entrevista em que expôs algumas verdades incômodas, sobre a guerra na Ucrânia, para a mídia e para a diplomacia ocidental, em especial seus núcleos antirussos e antichineses. E também após uma série de gestos diplomáticos fortíssimos do governo e do próprio presidente, como suas críticas duras ao dólar como “moeda franca” do mundo, durante a posse de Dilma à frente do Banco dos Brics, em Xangai, e a visita de Lavrov, chanceler russo, ao Brasil.

Bom lembrar ainda um fato que a mídia brasileira não alardeou muito, e talvez a própria imprensa alternativa não tenha dado a devida atenção. O Brasil foi um dos três países do Conselho de Segurança da ONU, junto com a China e a própria Rússia, que votou em favor de uma investigação independente sobre a sabotagem dos Nordstreams 1 e 2. Essa votação ocorreu apenas há algumas semanas, e se seguiu a uma reportagem do jornalista americano, Seymour Hersh, que acusava diretamente a Casa Branca e o governo americano na organização da sabotagem.

Conspirações existem. E são comuns. O problema das teorias de conspiração, frequentemente, é que elas são veiculadas por pessoas simples, sem a competência técnica e profissional para fazer as perguntas certas, e sem o sangue frio necessário para evitar contaminação emocional ou ideológica em seus próprios filtros cognitivos sobre o que é verdade ou mentira.

De qualquer forma, possivelmente entramos em momentos mais delicados para a política nacional. Com a extrema-direita acuada nas redes e na sociedade, é esperado que ela continue reagindo de maneira irracional, violenta e abrupta. Isso é uma fragilidade dela, todavia, e não uma força. O perigo é que agentes mais racionais, mais maquiavélicos, usem a nossa extrema-direita como ponta de lança de uma estratégia de desestabilização e enfraquecimento do governo, com o objetivo de sempre: conter qualquer ímpeto mais soberano do Brasil, qualquer esforço de se desenvolver de maneira mais independente, ameaçando a hegemonia política e financeira do império naquilo que ele sempre considerou seu quintal, a América Latina. A gente já tem uma ideia, por exemplo, de onde veio o apoio externo à Lava Jato. Não temos o direito de nos surpreender novamente.

Cabe ao governo Lula, portanto, montar uma estratégia robusta de inteligência e contra-inteligência, que inclui a consolidação de um sistema popular de informação capaz de fazer frente a uma guerra híbrida duríssima, que fatalmente virá.

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Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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