Comentários recentes de Lula sobre a guerra na Ucrânia produziram ruídos na política externa brasileira. Numa coletiva nos Emirados Árabes, Lula atribuiu a responsabilidade da guerra à Rússia, à Ucrânia, aos EUA e à Europa. Como diz a expressão popular, Lula chutou o pau da barraca.
“A decisão da guerra foi tomada por dois países (…) Ucrânia não toma iniciativa de parar. Rússia não toma iniciativa de parar. (…) Europa e EUA dão contribuição para a continuidade dessa guerra”, disse.
A União Européia reagiu imediatamente, numa declaração furiosa de seu porta-voz, Peter Stano:
“O fato número um é que a Rússia – e somente a Rússia – é responsável. Ela gerou provocações e agressões ilegítimas contra a Ucrânia. Não há questionamentos sobre quem é o agressor e quem é a vítima”.
John Kirby, porta-voz de segurança nacional da Casa Branca, disse que os comentários de Lula foram “simplesmente equivocados”.
A maioria dos analistas “tradicionais” ou “convencionais” do ocidente, ou seja, aqueles que vivem, se alimentam e procriam exclusivamente dentro do multiverso cínico da mídia ocidental, condenou a opinião de Lula.
Os colunistas da Globonews reagiram com perplexidade.
“Lula perdeu a neutralidade”, disseram uns, ignorando porém que a concepcão de neutralidade deles é, no fundo, a de apoio irrestrito às posições da Ucrânia, dos Estados Unidos, da Europa e da Otan.
O apoio à Ucrânia e à Otan, contudo, não é neutralidade.
Sim, Lula tem condenado, sistematicamente, a Rússia pela invasão da Ucrânia. O governo brasileiro votou contra a Rússia na ONU.
O presidente, porém, sabe que as razões dessa guerra são mais complexas. A mídia ocidental e seus colunistas fingem ignorar que os EUA, com a cumplicidade da Europa, violaram diversos acordos firmados com a Rússia desde os anos 90, para que as linhas de defesa da Otan não chegassem às fronteiras russas.
Esse é o pecado original, o que produziu a guerra.
Diversos analistas geopolíticos experientes norte-americanos vem denunciando o erro dos EUA e da própria Otan.
E o que houve desde os anos 90? Além dos EUA e Europa violarem os acordos com a Rússia com respeito às fronteiras da Otan, o Ocidente iniciou guerras, unilateralmente, covardemente, algumas vezes sem aval do Conselho de Segurança da ONU, contra o Afeganistão, o Iraque, a Líbia e a Síria.
Iraque e Líbia, os países mais avançados do oriente médio, com regimes político laicos, onde as mulheres tinham direitos políticos, foram inteiramente destruídos.
Houve sanções aos EUA e à União Europeia por essas violências?
Não.
Então é preciso olhar a situação com menos cinismo.
E ainda temos essa história da sabotagem dos gasodutos Nordstream, que tudo indica que foi organizada pelos serviços secretos norte-americanos. Houve uma reunião recente no Conselho de Segurança da ONU, onde a maioria dos países pediu que fosse montada uma investigação independente dessa sabotagem, com supervisão de diferentes países, mas foi vetada pelos EUA e seus satélites.
Alguns alegam que Lula deveria cuidar exclusivamente do interesse nacional, e por isso deveria ficar quietinho, sem se meter em briga de gente grande.
Ora, a paz mundial é interesse nacional.
O Brasil precisa dos fertilizantes russos e do trigo ucraniano.
A Casa Branca diz que o Brasil repete a “propaganda chinesa”, e alguns analistas dizem que o Brasil está se alinhando a China e, portanto, deixando de lado a sua “neutralidade”.
Neutralidade, em geopolítica, assim como em tudo na vida, é um conceito filosófico, ambíguo. O que é, para o Brasil, ficar neutro?
Eu acho que, sim, o Brasil se aproxima da posição chinesa nessa questão da guerra na Ucrânia. A China não envia armas para Rússia ou para Ucrânia, e tem procurado, objetivamente, saídas diplomáticas para a paz, inclusive divulgando algumas medidas concretas que poderiam ser aceitas por todos os atores envolvidos.
O Brasil não está, contudo, se “alinhando” a China geopoliticamente, mas apenas partilhando da posição chinesa no que tange à guerra da Ucrânia, porque a China é hoje, nessa questão, a potência com a posição mais equilibrada.
E não apenas isso. Diferentemente dos EUA, que apenas nos últimos anos fizeram dezenas de ataques militares a vários países, a China não ataca ninguém desde o fim da II Guerra.
Outro fator de muito cinismo da diplomacia e da mídia ocidental é ignorar os esforços dos serviços secretos americanos, hoje fartamente documentados, de levar adiante guerras híbridas, revoluções coloridas, ou fomentando diretamente golpes de Estado.
Um livro recente de Vincent Bevins, Método Jacarta, assim como o documentário O Ato de Matar, de Joshua Oppenheimer, se somam a toda uma basta literatura escrita e audiovisual sobre as intervenções políticas americanas. Apenas na Indonésia, mais de um milhão de seres humanos foram executados, desde os anos 60, por serem “de esquerda”. E as mentiras continuam ativas por lá.
Vamos fingir que nada disso tem a ver com a guerra na Ucrânia?
Sim, tem a ver, porque são fatos que justificam a profunda desconfiança que alguns países desenvolveram em relação aos Estados Unidos, e seus satélites europeus. Houve algum tipo de desculpa para tudo que eles fizeram? Os EUA pediram desculpas por fomentar golpes de Estado em dezenas e dezenas de países?
Reiterando: não falamos apenas de fatos do passado longínquo. A própria Ucrânia experimentou recentemente uma “revolução colorida”, onde os serviços de inteligência dos Estados Unidos provavelmente tiveram ampla participação.
Essas são as razões da guerra na Ucrânia.
Agora, também é importante enfatizar que Putin não está certo. Dados recentes vazados na imprensa ocidental, confirmados tanto pelo Pentágono quanto pelo governo russo, confirmam a morte de mais de duzentos mil russos e um número não muito longe disso entre ucranianos.
Não é possível se achar justo que uma guerra que já matou, no mínimo, mais de 300 mil pessoas, destruiu a infra-estrutura de um grande país, e que está produzindo instabilidade em todo o planeta, deva continuar por mais tempo.
Quando defende uma causa moral, universal, Lula não está pensando apenas no interesse nacional de curto prazo. O Brasil poderia até ganhar alguma vantagem com esse conflito envolvendo EUA, Rússia, China e Ucrânia. Mas não é do feitio de Lula pensar pequeno. Ele é uma liderança mundial também, e pensa que o Brasil não tem a ganhar, no longo prazo, com um mundo mais instável. A paz mundial é de grande interesse para o país, então se houver necessidade de desagradar, por um momento, alguns países, cujas sociedades parecem meio que narcotizadas dentro dessa bolha de cinismo que é a mídia ocidental, que seja!
As declarações de Lula serviram a um propósito importante. O governo brasileiro já condenou a Rússia pela invasão. Agora provoca o outro lado, EUA, Europa e Ucrânia, para que também se engajem num esforço diplomático pela paz. Ou seja, que também mandem representantes para Rússia e China, que procurem uma saída objetiva, pragmática, para pôr fim a essa maldita guerra!