Governo brasileiro busca difícil equilíbrio entre aproximação pragmática com a Rússia sem se isolar dos Estados Unidos e da União Europeia, enquanto tenta apoiar mediação da guerra na Ucrânia.
Publicado em 17/04/2023
Por Bruno Lupion | Juri Rescheto
DW — O ministro das Relações Exteriores da Rússia, Serguei Lavrov, chegou a Brasília nesta segunda-feira (17/04), onde se reunirá com seu homólogo brasileiro, Mauro Vieira, e possivelmente também com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O encontro com Lula está previsto na agenda do chanceler brasileiro, mas a agenda do presidente da República não foi divulgada até as primeiras horas desta segunda.
A visita do experiente chanceler russo dialoga com a diplomacia do governo Lula de pragmatismo e reforço de uma ordem mundial multipolar, reafirmada na sua viagem à China na semana passada. E testará a neutralidade do Brasil em relação à guerra na Ucrânia e sua capacidade de manter boas relações com os Estados Unidos e com a União Europeia (UE), que prontamente respaldaram a vitória do petista e a democracia brasileira enquanto Jair Bolsonaro questionava o sistema de votação.
Lavrov fará um giro pela América Latina para tentar demonstrar que a Rússia não está isolada, apesar das sanções do Ocidente. Depois do Brasil, ele visitará os três regimes autoritários de esquerda do continente: Venezuela, Cuba e Nicarágua.
Uma possível declaração de Lula após a reunião sobre a guerra na Ucrânia será observada com atenção pelos Estados Unidos e pelos países da UE. Nos últimos dias, o petista disse que a Casa Branca precisava parar de “incentivar a guerra” e que os americanos e os europeus estavam “dando a contribuição” para a continuidade do conflito.
O chanceler russo já havia se reunido com Vieira em 1º de março, em Nova Delhi, na Índia, durante encontro dos chanceleres do G20, grupo que abriga as 19 maiores economias do mundo mais a UE.
Qual é o interesse da Rússia
Desde o início da guerra na Ucrânia e das sanções do Ocidente que buscaram isolar a Rússia de fluxos comerciais e monetários, Moscou intensificou a busca por parceiros no âmbito do Brics e na África. A ida de Lavrov ao Brasil é uma aparente tentativa de construir redes de inserção internacional para manter a Rússia como ator ativo e tentar reverter parcialmente o isolamento provocado pelas medidas punitivas do Ocidente, às quais o Brasil não aderiu.
O chanceler russo deverá reafirmar no Brasil a visão russa sobre a guerra na Ucrânia, e discutir com o governo brasileiro sobre a iniciativa de Lula de criar um grupo de países para negociar uma saída para o conflito. No início do mês, o petista sugeriu que a Ucrânia deveria considerar aceitar o domínio russo sobre a Crimeia, ocupada pelos russos desde 2014, em uma eventual negociação para o fim da guerra – sugestão que agrada Moscou e foi rechaçada por Kiev.
Daniela Secches, professora do departamento de Relações Internacionais da PUC Minas e especialista em política externa russa, afirma que Lavrov tem interesse em obter do governo brasileiro uma posição mais enfática contra as sanções do Ocidente – mas avalia que ele não obterá isso.
“Qualquer declaração mais explícita prejudicaria a proposta do Brasil de formar um ‘clube da paz’ para buscar uma solução para a guerra. O protagonismo para isso depende de um certo distanciamento”, diz Secches.
Outro ponto que interessa a Lavrov é o caso do suposto espião russo Serguei Cherkasov, que está preso no Brasil e é processado também nos Estados Unidos.
Angelo Segrillo, professor de história da USP e especialista em Rússia, aponta que historicamente a relação entre os dois países é marcada por um interesse recíproco de aproximação, mas que não se implementa “no nível das expectativas criadas”. O interesse de Moscou na América Latina sempre foi “secundário”, mas adquiriu outra importância agora para compensar a perda de mercados e de interlocução com o Ocidente, diz ele.
Para Vladimir Ruvinsky, professor da universidade ICESI, na Colômbia, o principal objetivo do giro de Lavrov pela América Latina é mostrar que tentativas de isolar Moscou do palco mundial seriam em vão. “A Rússia é guiada pela lógica da reciprocidade, o que significa que Moscou tenta melhorar as relações com os países que têm problemas com Washington, como uma resposta ao apoio dos EUA à Ucrânia. Mas essa reciprocidade neste momento tem um caráter mais simbólico do que estratégico e significativo”, diz.
Qual é o interesse do Brasil
A visita de Lavrov combina com a posição do governo brasileiro de apostar em uma política externa pragmática e de fortalecimento de uma ordem mundial policêntrica.
“Isso inclui uma abertura maior de diálogo com a Rússia, dentro de uma estratégia mais pensada e de uma forma mais qualificada do que foi na gestão Bolsonaro”, diz Secches, lembrando da visita do então presidente brasileiro a Moscou às vésperas da invasão da Ucrânia.
Outra questão na mesa é o aumento das exportações brasileiras para a Rússia – a balança comercial bilateral é favorável a Moscou desde 2018, e em 2022 registrou déficit de quase 6 bilhões de dólares (R$ 29 bilhões). Apenas nos três primeiros meses deste ano, o déficit está em 1,4 bilhão de dólares (R$ 6,9 bilhões).
Entre os dez principais itens importados pelo Brasil da Rússia em 2022, seis são fertilizantes, no valor de 5,5 bilhões de dólares (R$ 27 bilhões). Do lado das exportações brasileiras, nove dos dez principais itens são commodities agropecuárias, no valor de 1,7 bilhão de dólares (R$ 8,4 bilhões).
Secches avalia que, no contexto atual, o Brasil é mais relevante para a Rússia do que a Rússia para o Brasil, o “que nos coloca em posição de barganha interessante” para ampliar o comércio e firmar novas parcerias em cooperação tecnológica.
Segrillo, da USP, afirma que o Brasil tem interesse em fazer com que a balança comercial entre os dois países supere a “barreira histórica” dos 10 bilhões de dólares anuais, além de reduzir o déficit do lado brasileiro.
É positivo também para Brasília reforçar a posição de Moscou de apoio à demanda brasileira por um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU – já expressada por Lavrov em mais de uma ocasião.
Quais são os riscos para o Brasil
Essa aproximação com a Rússia enquanto se desenrola a guerra na Ucrânia não vem sem riscos para o Brasil, em especial de prejudicar suas relações com os Estados Unidos – cujo governo atual não hesitou em defender o processo eleitoral brasileiro – e com a UE, que, além de também ter dado respaldo internacional à vitória de Lula, está em processo de negociação de um acordo de livre comércio com o Mercosul, considerado uma prioridade para o petista.
A “encruzilhada”, diz Secches, é, ao mesmo tempo, conseguir extrair benefícios da relação bilateral com a Rússia, usar fóruns multilaterais para se projetar na mediação da guerra e não transformar esse engajamento em isolamento do Ocidente.
“O Brasil tem hoje mais custos em se reaproximar da Rússia do que a Rússia do Brasil”, diz ela. “A tendência é o Brasil ir com menos sede ao pote do que Lavrov.”
Segrillo, da USP, também menciona que “o momento histórico é perigoso” e que o governo brasileiro precisará ter “cuidado”, porque não é do seu interesse ter problemas com os Estados Unidos. “A guerra na Ucrânia marca uma nova etapa da história. Com o fim da Guerra Fria, houve uma aproximação entre os antigos inimigos, que está se rompendo agora. Estamos pisando em terrenos novos.”
Um saída, diz, seria o Brasil privilegiar a aproximação com a Rússia no âmbito multilateral dos Brics, ao invés de no âmbito bilateral, e sem se afastar de Washington.
Posição de Lula sobre a guerra
A posição do Brasil sobre a guerra na Ucrânia é de neutralidade no conflito, no sentido de que o país não participa enviando armas ou munições.
Ao mesmo tempo, o Brasil defende o princípio da integridade territorial e é contra a violação de fronteiras internacionais, e foi o único país dos Brics a votar a favor de resolução da ONU pela retirada das tropas russas da Ucrânia.
Segrillo, da USP, pontua que Lula no início parecia não ter “muita familiaridade com a Ucrânia”. Ainda quando candidato, o petista deu declarações que ofenderam o país, como dizer que o presidente ucraniano, Volodimir Zelenski, era tão culpado pela guerra como a Rússia, levando o conselheiro presidencial ucraniano a afirmar que petista ecoava a narrativa de Moscou.
Depois de assumir o governo, Lula disse que a Rússia “cometeu um erro crasso” ao invadir a Ucrânia. A declaração foi feita em 30 de janeiro, após uma reunião do petista com o chanceler federal alemão, Olaf Scholz, em Brasília.
No momento, Lula está engajado na construção de um bloco de países neutros para promover negociações de paz, que possa dialogar com Rússia, Ucrânia, Estados Unidos e União Europeia. Ele tratou desse tema com o presidente chinês, Xi Jinping – cujo plano para um acordo na Ucrânia é visto com ceticismo no Ocidente.
Em Pequim, Lula defendeu que os EUA e outros países parem de enviar armas à Ucrânia para evitar um prolongamento da guerra. Neste domingo, o petista voltou a dizer, em Abu Dhabi, que a Ucrânia também era responsável pelo início da guerra. “A construção da guerra foi mais fácil do que será a saída da guerra, porque a decisão da guerra foi tomada por dois países”, afirmou.
Para Segrillo, no fundo, o que Lula está propondo é uma trégua na qual a Ucrânia aceitaria a ocupação russa da Crimeia e talvez de parte dos novos territórios ocupados – o que não deve ocorrer no momento.
O professor da USP avalia, porém, como provável que no futuro esse caminho se imponha pelo esgotamento tanto da Ucrânia como da Rússia, que “está sentindo o peso das sanções”. Essa solução, diz, se assemelharia ao impasse militar entre as duas Coreias, que formalmente não estão em paz e são separadas por uma fronteira altamente militarizada.
Uma eventual mudança de posição do Brasil no sentido de uma condenação mais enfática à Rússia só viria em dois cenários, diz Secches. Um deles seria se as investigações sobre crimes de guerra e contra a humanidade – como no caso dos menores ucranianos enviados a campos russos – tragam novidades contundentes. Nesse caso, Brasília deverá ser chamada a adotar um posicionamento mais direto.
Outro cenário é caso a Rússia use armas nucleares táticas na Ucrânia, o que também empurraria o Brasil a adotar posições mais enfáticas de condenação da Rússia, afirma.