Lavrov explica as razões da guerra na Ucrânia

Reuters/Yoruk Isik/ Direitos Reservados

Cooperação da Rússia com América Latina baseia-se em abordagem desideologizada e não ameaça ninguém

Publicado em 13/04/2023

Por Serguei Lavrov

Às portas da minha visita à América Latina, decidi compartilhar com os estimados leitores as minhas ideias sobre as perspectivas das relações russo-latino-americanas no atual contexto geopolítico.

A situação no mundo permanece extremamente tensa e continua a se deteriorar em muitos aspectos.

A principal razão é a obstinação do chamado Ocidente histórico, liderado pelos Estados Unidos, em tentar manter o domínio global e impedir o desenvolvimento e o fortalecimento de novos centros mundiais. E, no final das contas, impor à comunidade internacional uma ordem mundial unipolar neocolonial, na esperança de “cobrar da humanidade um verdadeiro tributo, tirar proveito da sua hegemonia”, na correta avaliação do presidente da Federação da Rússia, Vladimir Putin.

Isto pode explicar a política de longa data dos países ocidentais de interferir em assuntos internos de Estados soberanos, inclusive por meio de operações ideologicamente motivadas para substituir governos indesejáveis, do uso generalizado de sanções ilegítimas unilaterais e de tecnologias sujas de “guerras de informação”. Suas consequências já foram sentidas por muitas nações do mundo, incluindo Cuba, Venezuela, Iugoslávia, Iraque, Afeganistão, Líbia e Síria.

As elites governantes dos EUA e dos países da União Europeia sempre enxergaram a Ucrânia como uma ferramenta para conter a Rússia moderna. Durante anos, elas vinham alimentando o regime neonazista de Kiev, que chegou ao poder em fevereiro de 2014 como resultado de um golpe de Estado anticonstitucional, arrastando o país para a Otan e lhe fornecendo armas ofensivas.

Na essência, eles estavam pressionando por uma solução militar para o “problema do Donbass”, uma limpeza étnica das pessoas que ali vivem e que se recusaram a reconhecer os resultados do golpe.

Para que prestam as cínicas confissões dos antigos líderes de Ucrânia, Alemanha e França de que os Acordos de Minsk, que eles assinaram e que foram aprovados pela resolução 2202 do Conselho de Segurança das Nações Unidas em fevereiro de 2015, só eram necessários para ganhar tempo e permitir que Kiev desenvolvesse suas capacidades militares. Fica evidente que Berlim e Paris têm enganado não apenas Moscou, mas toda a comunidade internacional o tempo todo.

Ao mesmo tempo, a França e a Alemanha, assim como outros países ocidentais, têm encorajado abertamente o regime de Kiev na sua recusa categórica de negociar diretamente com Donetsk e Lugansk, embora essa mesma exigência estivesse no centro dos Acordos de Minsk. Isso demonstra uma falta de compromisso com o diálogo e de integridade dos líderes europeus.

Apesar da política flagrantemente agressiva dos EUA e dos seus aliados para expandir irresponsavelmente a Otan –em violação das promessas feitas a nós no início dos anos 1990–, fizemos todo o possível para reduzir o grau de tensão na Europa até o último momento.

Para este fim, em dezembro de 2021 o presidente Putin apresentou uma iniciativa para dar à Rússia –assim como à Ucrânia– garantias de segurança juridicamente vinculantes por parte do Ocidente. Entretanto, nossas propostas foram tratadas com desdém e rejeitadas, em meio aos preparativos de Kiev para uma solução militar do problema do Donbass.

Isto não nos deixou outra escolha senão reconhecer as Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk, assinar tratados de amizade e assistência mútua com elas e, em resposta ao seu apelo oficial, lançar uma operação militar especial de acordo com o Artigo 51 da Carta da ONU. Os objetivos da operação são proteger os russos e as pessoas russófonas do extermínio nas terras onde seus ancestrais viveram por muitos séculos e eliminar as ameaças militares à segurança da Rússia nas nossas fronteiras ocidentais.

É claro que os acontecimentos na Ucrânia e em torno dela são parte da luta em curso por uma futura ordem mundial. Hoje, a questão em jogo é o caráter da ordem mundial: seria ela justa, democrática e policêntrica de verdade, como exige a Carta da ONU, que consagra a igualdade soberana de todos os Estados? Ou seria permitido que os EUA e a coligação por eles liderada prossigam sua agenda em detrimento de outros, drenando recursos alheios em seu favor? Eis o objetivo do conceito da “ordem baseada em regras”. Os países ocidentais querem substituir o direito internacional, nomeadamente os propósitos e os princípios da Carta das Nações Unidas, por essas “regras” de origem desconhecida.

Muitos Estados que implementam uma agenda baseada em interesses nacionais reconhecem essa verdade. Não é por acaso que em todo o mundo têm se intensificado significativamente os esforços que visam a rejeitar o dólar no comércio exterior e a criação de infraestrutura e logística de relações econômicas fora do controle do Ocidente. Coerentemente, cerca de três quartos dos países, incluindo nossos amigos latino-americanos, não aderiram às sanções antirussas. Estamos gratos pela sua posição.

A rápida mudança do cenário geopolítico abre novas oportunidades para o desenvolvimento de uma cooperação mutuamente benéfica entre a Rússia e os Estados da América Latina. Os países dessa região estão desempenhando um papel cada vez mais importante em uma ordem mundial multipolar.

Na política externa russa, a América Latina e o Caribe ocupam posição prioritária. Não queremos que essa região se torne um palco de combates entre potências. A nossa cooperação com os países da América Latina baseia-se em abordagens desideologizadas e pragmáticas e não ameaça ninguém. Ao contrário dos antigos Estados coloniais, não dividimos os parceiros em amigos e inimigos, não os colocamos diante de uma escolha artificial —estar conosco ou contra nós. Somos a favor de que os países da América Latina e do Caribe sejam fortes, unidos na diversidade, politicamente sólidos, economicamente estáveis.

Defendemos, de maneira coerente, o fortalecimento da cooperação entre a Rússia e os países da América Latina com base no apoio mútuo, solidariedade e consideração mútua dos interesses. As relações com muitos países da região, incluindo Brasil, Venezuela, Cuba e Nicarágua, que pretendo visitar na segunda quinzena de abril, desenvolvem-se ativamente, no espírito de parceria estratégica.

Estamos prontos para ampliar os diversos contatos em nível de chefes de Estado e de governo, entre parlamentos, serviços diplomáticos, outros ministérios e agências. Estamos abertos a expandir a cooperação nos foros multilaterais, primeiramente no âmbito do diálogo da Rússia com a Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac).

Hoje temos os resultados da cooperação, e nos últimos anos a base jurídica das relações tem se expandido consideravelmente. A criação de um espaço de viagens mútuas sem visto é um bom exemplo. Agora esse espaço abrange 27 estados da América Latina e do Caribe. Toda a América do Sul e praticamente toda a América Central se tornaram isentos da exigência de visto para os nossos cidadãos.

Apesar das sanções contra a Rússia e da pressão política, para não dizer chantagem, dos EUA e da União Europeia, no final do ano passado as nossas exportações totais para os Estados da região cresceram 3,8%. O fornecimento de fertilizantes e produtos petrolíferos se intensificou. Em 2022, a Rússia aumentou as exportações de trigo para a América Latina e para o Caribe em 48,8%.

A propósito, gostaria de observar que fornecemos 23 milhões de toneladas de grãos e 20 milhões de toneladas de fertilizantes para os mercados mundiais sem qualquer assistência da ONU. E isso não inclui aquelas dezenas de milhares de toneladas de fertilizantes que o Ocidente bloqueia em seus portos, desconsiderando o Pacto dos Grãos do Mar Negro firmado em Istambul por iniciativa do secretário-geral da ONU. Nós até nos oferecemos para distribuir essas quantidades gratuitamente aos países mais pobres. No entanto, estamos sendo impedidos de fazê-lo.

Tanto a Rússia quanto a América Latina têm suas vantagens competitivas no contexto de processos objetivos de formação de uma ordem mundial multipolar. É importante aproveitarmos ao máximo a natureza complementar das nossas economias para construirmos plenas alianças nas áreas de elaboração de projetos, da produção e das tecnologias, assim como incentivarmos o uso de moedas locais e alternativas ao dólar e ao euro nas transações.

Dentro dos limites das nossas capacidades, ajudaremos a região a enfrentar os desafios do desenvolvimento internacional. Com o objetivo de fortalecer a segurança civil, treinamos o pessoal profissional das agências nacionais de aplicação da lei. Continuamos a ajudar os países necessitados a superarem as consequências de desastres naturais.

Gostaria de salientar o aumento constante do número de bolsistas latino-americanos que estudam em nosso país. Dado o interesse mútuo em fortalecer os laços educacionais, estamos determinados a trabalhar ativamente para fechar acordos de reconhecimento mútuo de diplomas.

A Rússia continuará a seguir um curso independente, pacífico e diversificado de política externa. Continuaremos a contribuir para o fortalecimento da segurança e da estabilidade global para a resolução de conflitos. Junto a aliados, continuaremos a defender a implementação dos princípios da Carta da ONU, incluindo a igualdade soberana dos Estados e a não interferência em seus assuntos internos.

Somos a favor da expansão do Grupo de Amigos em Defesa da Carta das Nações Unidas e do fortalecimento de outras associações multilaterais, incluindo o Brics e a Organização para Cooperação de Xangai, que visam a uma democratização das relações internacionais.

Estamos sempre abertos a continuar estreitando os laços com aqueles parceiros estrangeiros dispostos a trabalhar conosco com base nos princípios de igualdade, honestidade, respeito mútuo e consideração de interesses. Estou feliz que os nossos amigos latino-americanos façam parte desse grupo.

Originalmente publicado na Folha

Cláudia Beatriz:
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