“Fischia il vento, infuria la bufera”, cantavam os partigianos da resistência ao fascismo italiano.
Sopra o vento, agita-se a tempestade.
A evocação de fenômenos naturais para explicar momentos de virada histórica é justificável. Ambos, fenômenos naturais e históricos, são extremamente complexos, ultrapassam a dimensão individual, e respondem a forças que, frequentemente, pareciam adormecidas até aquele instante.
A visita de Lula à China esta semana agitou algumas tempestades.
O discurso do presidente brasileiro na posse de Dilma Rousseff para o banco dos Brics, em especial, fez o vento soprar mais forte em muitos lugares do mundo.
Após ler um texto escrito, Lula avisou que falaria, de improviso, mais algumas coisas, e pronunciou um dos discursos mais marcantes, em todos os aspectos, deste incipiente, e já tão turbulento, século 21.
Lula não falou apenas como a principal liderança política do Brasil. Nem tampouco como a maior liderança da América Latina.
Lula não é mais uma liderança somente do chamado sul global.
Em Xangai, naquele momento, naquelas circunstâncias, Lula falou como uma liderança de toda a humanidade.
Faz muito tempo que o mundo não via alguém com a capacidade de interpretar não apenas os anseios de seu povo, mas de toda a sociedade humana de seu tempo.
Talvez, em algum momento específico, Nasser, Gandhi, Mandela, tenham tido um papel similar. Mas eles pertencem ao passado. Como diria Drummond, o momento é de “tempo presente, os homens presentes, a vida presente”.
O homem presente é Lula. A vida presente são as dificuldades enfrentadas hoje por toda a espécie humana.
“Estão tentando nos transformar em algoritmos”, denunciou Lula, entrando de sola num dos debates mais urgentes da atualidade, que é a necessidade de desenvolver estratégias para que os empregos e a renda de bilhões de seres humanos não sejam destruídos por técnicas de inteligência artificial; para que nossa comunicação social seja blindada contra esquemas espúrios de manipulação da informação; e, por fim, para que nossas subjetividades, captadas na forma de big data, não sejam tratadas apenas como um produto a ser vendido em bolsas de valores.
Como sempre, Lula falou da fome. Embora este seja ainda o maior problema da humanidade, é raro ouvirmos lideranças o mencionarem como prioridade.
O discurso contra a desigualdade é fundamental, mas costuma se revestir de uma linguagem acadêmica vazia, sem a mesma força semântica. Especialistas citam livros, estatísticas e gráficos sobre a desigualdade. Fazem conferências sobre o tema, e depois voltam para casa.
Lula faz bem mais do que falar sobre a desigualdade, um nome sofisticado que serve de biombo para algo bem mais cruel, feio e perturbador, a fome. A fome e todas as formas nas quais ela se manifesta, como doenças, depressão, violência e morte.
Não somos algoritmos, diz Lula, deixando implícito que a principal diferença entre algoritmos e gente é que algoritmos não sentem fome.
Em seu discurso, Lula denunciou o individualismo egoísta, a pior doença moral da humanidade, e lembrou que o homem é um ser social, e que, portanto, deveria aprender a conviver em sociedade, com tolerância e fraternidade. O desafio de combater o extremismo, o ódio, lembrou Lula, é uma das responsabilidades dos líderes políticos do nosso tempo.
Na parte mais revolucionária de seu discurso, aquela que surpreendeu a mídia ocidental, Lula defendeu que o mundo deixasse de usar o dólar como lastro do comércio internacional, e usasse as próprias moedas nacionais.
Lula foi além, e defendeu a existência de bancos globais de investimento, que rompessem com a lógica de interferir na soberania de outros países, e que estivessem moralmente comprometidos com seu desenvolvimento, ao invés de servirem a agendas geopolíticas secretas e escusas, denunciando sem rodeios o FMI e o Banco Mundial, por asfixiarem países para os quais emprestam dinheiro, como estariam fazendo hoje, lembrou Lula, com a Argentina.
A imprensa corporativa amanheceu perplexa com essa fala.
Até então, ela olhava para Lula como um ursinho de pelúcia carinhoso. Um símbolo fofinho da democracia ocidental. Um aliado às vezes barulhento, mas sempre inofensivo.
Um dos momentos mais lembrados da política internacional de Lula em seus primeiros mandatos foi o elogio inusitado que recebeu de Obama, durante um evento internacional. Numa rodinha com vários chefes de Estado, o então presidente dos EUA apontou para o mandatário do Brasil e disse que ele era “o cara”.
O discurso de Lula III em Xangai é, até agora, o seu momento mais emblemático e importante.
Entretanto, reitero, não foi um discurso importante apenas para Lula, nem apenas para o Brasil. É um discurso que marca uma nova era, um “novo tempo”, para lembrar a música de Ivan Lins tocada pela banda do Exército Vermelho durante o encontro de Lula e Xi.
Um novo tempo para o mundo inteiro.
O discurso de Lula pode marcar o início da Nova Ordem Mundial, onde teremos um mundo multipolar, emancipado da ditadura monetária do dólar e da hegemonia gepolítica dos Estados Unidos.
As dificuldades ainda são muitas. Voltando à canção partigiana,
Scarpe rotte eppur bisogna andar
A conquistare la rossa primavera
Dove sorge il Sol dell’avvenir
Os sapatos estão rasgados, mas ainda assim vamos em frente
Para conquistar a vermelha primavera
Onde surge o Sol do amanhã