O presidente Lula enfrenta inúmeros desafios no início de seu mandato, mas a cooperação com a China pode ser estratégica para o Brasil ao ajudar o país a enfrentar pelo menos três grandes desafios
Publicado em 13/04/2023
Por Marco Fernandes
Le Monde Diplomatique Brasil — Após um adiamento de última hora devido a problemas de saúde, o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva finalmente visitará a China esta semana. O encontro dos presidentes Lula e Xi Jinping é aguardado em todo o mundo, dada a importância econômica e geopolítica dos dois países. A China é o maior parceiro comercial do Brasil desde 2009 e seu comércio bilateral atingiu o recorde de US$ 150 bilhões em 2022, com superávit de US$ 28,6 bilhões para o Brasil. Os dois países acabam de anunciar um novo acordo para facilitar o comércio e os investimentos em moedas locais, o que é considerado – inclusive pelo governo dos Estados Unidos – um importante golpe na hegemonia do dólar. O presidente Lula enfrenta inúmeros desafios no início de seu mandato, mas a cooperação com a China pode ser estratégica para o Brasil ao ajudar o país a enfrentar pelo menos três grandes desafios.
O primeiro desafio é a erradicação da fome e da pobreza extrema, que voltou a assolar a população brasileira. Atualmente, cerca de 33 milhões de brasileiros passam fome e cerca de 120 milhões sofrem algum tipo de insegurança alimentar. A China acumulou um enorme conhecimento de políticas públicas neste setor, graças ao programa de alívio de pobreza direcionado, que tirou quase 100 milhões de pessoas da pobreza entre 2013 e 2020, e com o qual teríamos muito o que aprender.
Ao mesmo tempo, precisamos potencializar a agricultura familiar brasileira, que produz 70% dos alimentos que se consome no país e que é estratégica para o combate à fome e para a geração de renda. No Brasil, temos uma baixíssima taxa de mecanização na agricultura de pequena escala (tratores 14,5%; semeadeiras 5%; colheitadeiras 2,4%), porque a indústria de maquinário está voltada para o agronegócio monocultor e exportador. A China possui uma fabulosa indústria de maquinário para pequena agricultura. O governo Lula precisará formular políticas públicas para incentivar o setor e facilitar o acesso dos agricultores às máquinas, seja pela importação ou pela instalação de fábricas no Brasil. Junto a outros itens, como os bioinsumos (substituindo os agrotóxicos) e energia solar de pequena escala, poderiam representar uma revolução na produtividade da agricultura familiar brasileira. É muito provável que a visita de Lula facilite acordos nesta área.
Presidente da República Popular da China, Xi Jinping em visita ao Brasil, em 2019 – Marcos Corrêa/PR
Reindustrialização
O segundo desafio é a reindustrialização da economia do país, com transferência de tecnologia, levando em consideração o meio ambiente e a crise climática. Nenhum outro país como a China reúne tantas condições financeiras, industriais e tecnológicas para cooperar com o Brasil nessa área. Há inúmeros setores promissores, como veículos elétricos, tecnologias da informação, 5G, energias renováveis, setor aeroespacial, biomedicina, semicondutores etc. Também há boas chances de alguns acordos serem firmados ao longo desta semana em algumas destas áreas. Mas há alguns desafios a serem superados, sobretudo quanto ao perfil dos investimentos chineses no Brasil.
Entre 2005 e 2021, o Brasil foi o quarto maior receptor global de investimentos chineses. Mas de 2007 e 2021, 76,4% dos investimentos se concentraram no setor de energia (eletricidade e extração de petróleo e gás), enquanto somente 5,5% foram para a indústria manufatureira e 4,5% para obras de infraestrutura, que são nossas maiores necessidades. Cabe ao governo brasileiro propor parcerias nessas áreas que apoiem um projeto de reindustrialização. Por que não propor a formação de mais joint ventures sino-brasileiras em alguns dos setores estratégicos para o Brasil? Entre 2005 e 2020, elas receberam somente 6% dos investimentos chineses, enquanto as fusões e aquisições receberam 70%. Importante lembrar que as joint ventures chinesas com empresas dos EUA e Europa, muitas envolvendo transferência de tecnologia, foram um dos segredos do sucesso do desenvolvimento da China nas últimas décadas.
A China afirmou no relatório do 20° Congresso do PCCh que irá “aumentar o investimento de recursos na cooperação e desenvolvimento global, se empenhar em diminuir a disparidade Norte-Sul, bem como apoiar e ajudar com determinação outros países em desenvolvimento a se desenvolverem de forma acelerada”. Recentes acordos com inúmeros países do Sul Global têm comprovado que os chineses estão levando a sério esta promessa. É o caso da nova usina nuclear argentina, que contará com US$ 8 bilhões de financiamento e, mais importante, com transferência de tecnologia chinesa (Hualong) para a companhia estatal argentina; e também do investimento de US$ 1 bilhão da gigante chinesa CATL, em parceria com a estatal boliviana YLB, para fabricar baterias de lítio na Bolívia – um dos produtos mais estratégicos atualmente. A Bolívia possui a maior reserva desse mineral do mundo, mas ainda carece de recursos para investimento em industrialização. Este acordo mudará a história do setor do lítio boliviano. Agora, que tipo de acordos um país com a estatura do Brasil poderia propor à China?
O terceiro desafio é a retomada do papel do Brasil como protagonista no cenário geopolítico global, com sua política “ativa e altiva” que marcou os governos do PT entre 2003 e 2016. Durante a visita de Lula, a ex-presidenta Dilma Rousseff será empossada na presidência do New Development Bank –NDB (“Banco do BRICS”). Ao nomear Rousseff, Lula demonstra a aposta do governo brasileiro no fortalecimento do BRICS – instrumento estratégico da parceria sino-brasileira – como um dos pilares da multipolaridade. Por uma série de fatores, tanto o NDB, quanto o Arranjo de Reservas Contingente (CRA) – um fundo de 100 bilhões de dólares cujo objetivo original era ser uma alternativa ao FMI – ainda estão aquém de seu enorme potencial. Não há dúvida de que uma das fraquezas do NDB desde a sua fundação foi a falta de uma liderança forte e disposta a encarar alguns desafios. Quem melhor do que Dilma Rousseff, uma liderança global altamente prestigiada e uma das fundadoras do NDB (2015) quando presidenta do Brasil, para assumir esta tarefa?
Nos anos 1980, quando a China iniciava seu processo de reforma e abertura, ela buscou aprender com o desenvolvimento industrial brasileiro como, por exemplo, na indústria automobilística, nas telecomunicações e na mais avançada tecnologia hidrelétrica da época: a Usina de Itaipu. Centenas de engenheiros, pesquisadores e quadros governamentais visitaram o Brasil durante anos para absorver a experiência brasileira e adaptá-la às necessidades chinesas. Naquele período, os PIBs do Brasil e da China eram parecidos. Hoje, o PIB chinês é mais de dez vezes maior que o brasileiro. Chegou a vez do Brasil enviar seus estudantes e quadros das mais distintas áreas à China, para que possamos aprender as lições do modelo chinês de modernização e propor inúmeras formas de cooperação entre os dois países. O encontro entre os presidentes Lula e Xi Jinping pode ser o primeiro passo para uma nova era das relações entre Brasil e China.
Por último, vale ressaltar que diante da crescente importância estratégica da China na geopolítica mundial e a necessidade dos países em desenvolvimento se voltarem mais para o país asiático, o Instituto Tricontinental de Pesquisa Social e Dongsheng iniciaram a produção de uma edição internacional da revista chinesa Wenhua Zongheng (Wén Huà Zòng Heng), um prestigiado periódico do pensamento cultural e político chinês contemporâneo. Por meio desta parceria, a cada três meses serão selecionados ensaios das edições chinesas da revista para serem traduzidos para português, inglês e espanhol, buscando estreitar o diálogo entre a intelectualidade do Sul Global com a China.
Marco Fernandes é pesquisador do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, coeditor do coletivo Dongsheng e membro da Campanha No Cold War.
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