Por Mayra Goulart e Tayná Paolino
Pato manco (lame duck) é uma expressão inglesa, que se refere a presidentes (governadores ou outras autoridades) com pouca ou nenhuma chance de permanecerem no mandato, seja porque não podem se reeleger, seja porque não conseguiram fazê-lo. Bolsonaro é um pato manco desde outubro de 2022, quando as chances de vitória de Luiz Inácio Lula da Silva se demonstravam significativamente superiores às suas.
A partir deste momento, boa parte de seus aliados, sobretudo aqueles que não dependiam de seu prestígio eleitoral para se elegerem, começaram a se afastar. Desde então, o bolsonarismo, termo utilizado para designar o sujeito político formado ao redor da sua liderança, inicia um processo de fragmentação e radicalização, mediante o afastamento dos segmentos sociais mais moderados e, portanto, menos comprometidos com uma ideologia de extrema-direita.
É necessário reconhecer que Bolsonaro se esforçou para ganhar o pleito, utilizando de maneira inédita e hiperbólica a máquina pública para se manter no poder, abandonando deliberadamente a bandeira da disciplina fiscal em prol de uma bem orquestrada dinâmica de injeção de recursos na economia, desenhada para favorecer os grupos nos quais seu adversário obtenha maiores margens de intenção de voto. Não foi suficiente e, uma vez derrotado, o ainda presidente não soube reagir à derrota. Não parabenizou seu adversário. Não transmitiu a faixa. Não se esforçou para orientar seus apoiadores, mantendo-os engajados para uma disputa de longo prazo. Deixou-os com migalhas. Frases ambíguas de encorajamento que, contudo, foram suficientes para incentivar a tentativa de golpe de 08 de Janeiro.
Durante a sua fuga e estadia nos Estados Unidos, o Brasil continuou falando de Jair Messias Bolsonaro, não por ele liderar uma frente de oposição, mas pelo escândalo das caixas de jóias recebidas pelo Governo Brasileiro durante viagem à Arábia Saudita, em que somente a primeira caixa estava avaliada em 16,5 milhões de reais.
Essa situação gerou um problema político e midiático, mas, também, atingiu sua relação com os militares. Isto porque, o Tenente Coronel Mauro Cid, braço direito do então Presidente da República, pediu urgência para a Força Aérea Brasileira, FAB, para garantir a ida do sargento Jairo Moreira da Silva, três dias antes do fim do mandato de Jair Bolsonaro, para buscar as jóias apreendidas pela Receita Federal.
Por conseguinte, a volta ao Brasil de Jair Messias Bolsonaro depois de 89 dias de ausência do solo brasileiro gerou expectativas no mundo político. O seu retorno aconteceu no dia 30 de março, na véspera de uma importante data para a constituição do sujeito político de Jair Bolsonaro, o dia que marcou o início da ditadura militar no Brasil, deflagrada em 31 de março de 1964.
Durante a sua longa trajetória parlamentar, que compreende um mandato como vereador e sete mandatos consecutivos como Deputado Federal, Jair Messias Bolsonaro foi um exímio representante das Forças Armadas. No início de sua carreira, os interesses particulares que eram defendidos partiam principalmente dos oficiais de baixa patente e dos praças, considerados a base do Exército. Em seus discursos, o ex-capitão criticava as condições financeiras dos militares no início de carreira.
Esse assunto era abordado de diferentes maneiras, compondo um corolário de ataques ao governo e aos comandantes gerais das Forças Armadas, que abarcavam denúncias sobre as condições de vida, e, sobretudo, sobre o valor dos ordenados que, em suas palavras, seriam dignos de um “salário de fome” (discurso feito no Plenário no dia 04 de agosto de 1992). O vínculo com os militares foi estruturante na sua trajetória política e desembocou em uma agenda política de governo durante os anos em que foi Presidente da República (2019-2022), com militares ocupando cargos estratégicos, como o Ministério da Saúde, o gabinete de segurança institucional, entre outros.
A trajetória de Jair Bolsonaro na política e a composição de seu governo deixaram explícito o imbricamento entre os comandantes militares, principalmente do alto comando do Exército, e o projeto de governo que saiu vitorioso das urnas em 2018. Isso foi observado na escolha de Ministros do Governo e no aumento, de 2.957 em 2016 para 6.157 em 2020, da quantidade de militares nos cargos da administração pública, de suas autarquias e empresas públicas. A ocupação de cargos chaves do Governo já havia acontecido com a ascensão de Michel Temer à Presidência da República, em que militares ocuparam cargos na AGU, no Ministério da Fazenda e no Ministério da Defesa, quebrando com a lógica da indicação de um civil.
Em pesquisa desenvolvida pelo Laboratório de Eleições Partidos e Política Comparada (LAPPCOM/UFRJ-UFRRJ), uma equipe de estudantes de graduação e pós graduação se debruça há mais de dois anos sobre esta trajetória. Mais especificamente, sobre os projetos de lei e discursos proferidos pelo então deputado em Plenário, utilizando para isso uma metodologia internacional, aplicada pelo Manifesto Project Database, que consiste em associar um conjunto de códigos, indicativos de temas determinados, a porções de discurso. Dentre as 56 categorias globalmente utilizadas para identificar recorrências temáticas, há uma que indica um posicionamento favorável à expansão de recursos para as Forças Armadas (104, Military Positive).
Os resultados da aplicação desta metodologia sobre os discursos de Bolsonaro são reveladores. De um total de 1535 discursos analisados, 533 foram codificados com a categoria 104: “Militar Positivo”. Dentro desse universo, 365 discursos estavam relacionados a questões pecuniárias, como direitos previdenciários e a reivindicação sobre o aumento de salários, o que inferimos incorporando uma sistemática de combinação de outros instrumentos de mensuração, para além daqueles oferecidos pelo Manifesto.
Com o intuito de construir uma triangulação qualitativa para os dados e dar ainda mais consistência a nossa análise, utilizamos outras 9 abas, que versam sobre os principais temas que aparecem nos discursos proferidos pelo deputado.
Na primeira aba categorizamos os discursos com uma das 31 categorias temáticas já disponibilizadas pela Câmara dos Deputados. Na segunda aba procuramos identificar se o discurso fala do Partido dos Trabalhadores (PT) ou não. Na terceira aba trabalhamos melhor a temática da ditadura militar, com algumas opções de conteúdos para quando o discurso salienta essa defesa, são eles: tortura, comissão da verdade, homenagem e outros. Na quarta aba, falamos sobre os direitos humanos, salientando as menções positivas ou negativas. Na quinta aba procuramos qualificar os discursos que citam minorias, mapeando quais são as abordadas: imigrantes, mulheres, negros lgbts, indigenas, ou mais de uma. Na sexta aba falamos sobre religião e na sétima aba sobre a defesa do direito dos militares. A oitava aba versa sobre discursos que abordam a defesa da família e a nona aba sobre a menção à figura do Lula.
Essas colunas são importantes para a nossa análise pois permitem um olhar mais aguçado sobre algumas categorias. Uma delas é a categoria 305.4 “defesa das elites pré democráticas” em que codificamos os discursos que versam sobre a defesa do regime militar e de suas práticas de tortura, assassinatos e sequestro. Essa categoria esteve presente em toda a sua construção discursiva, mas ganhou ainda mais centralidade na sua atuação política a partir do ano de 2010. Isso pode ser observado pelo aumento exponencial de citações a esta categoria, de 161 discursos codificados em sete mandatos.
Outro dado importante a esse respeito é que 44% (71 discursos) foram defesas proferidas durante o seu sexto mandato (2011-2014). Isso por dois motivos principais: o primeiro foi a instauração da Comissão Nacional da Verdade e a aprovação do Programa Nacional de Direitos Humanos – PNDH 3; e, o segundo motivo, a candidatura de Dilma Rousseff para Presidenta da Brasil. Esse posicionamento que combina um ideal nostálgico de ordem punitivista com o anti-comunismo pode ser observado na citação abaixo, retirada de um dos discursos de Bolsonaro neste contexto.
“A ditadura que eles culpavam naquela época era dura para vagabundo, para marginal, para assaltante, para sequestrador, para quem praticava homicídio, para quem vivia em Cuba treinando guerrilha para impor terror aqui em nosso País. Não podem culpar a ditadura! Não podem!”, disse Bolsonaro em 2012.
O período da ditadura militar que durou de 1964 a 1985 ficou conhecido pelas denúncias de ataque aos direitos humanos, como torturas, assassinatos, sequestros e atentatos, assim como a cassação dos direitos políticos dos indivíduos e dos partidos. O incômodo de Jair Messias Bolsonaro com as personalidades que resistiram à ditadura militar é presente em todo o seu período como parlamentar. Ele citou Carlos Lamarca 16 vezes durante o seu período como parlamentar, o principal conteúdo desse discurso versava sobre a sua história com o ex capitão do Exército Brasileiro que desertou para a luta armada em 1969.
Conforme descrito por Carol Pires, na premiada série Retrato Narrado, em 1970, Jair Bolsonaro tinha quinze anos e o Exército estava procurando Lamarca no Vale da Ribeira, e o encontrou na cidade de Eldorado, onde residia a família de Bolsonaro. Após um tiroteio entre as partes envolvidas, um soldado do Exército foi morto e Lamarca conseguiu fugir.
Segundo fontes da região ouvidas na reportagem, esse acontecimento marcou a sua adolescência, e Jair Bolsonaro decidiu se alistar no Exército e seguir com a carreira militar. Essas figuras foram importantes em sua construção política porque corroboram com a tese de que aqueles que insurgiram contra a ditadura, eram criminosos e que contê-los a qualquer preço era condição para a manutenção da ordem pública.
Tais argumentos que desembocam na crítica à lei da anistia e no repúdio à indenização a familiares de desaparecidos políticos foram vociferados ao longo de décadas por Jair Bolsonaro em Plenário. Esses argumentos encontram ressonância dentro dos círculos militares, que denunciam uma distorção histórica feita pela esquerda, que, sob esta lógica, ainda desejaria implementar uma ditadura do proletariado. Como podemos observar no comentário abaixo:
“Um exemplo muito claro, insano, que não pode deixar de constar dos Anais desta Casa, é o do Tenente Alberto Mendes Júnior, que foi barbaramente torturado pelo bando do ex-capitão Lamarca. O tenente, antes de ser executado, foi obrigado a engolir o próprio saco escrotal. Como podemos hoje admitir que os familiares deste bando sejam tratados como heróis e agraciados com indenizações milionárias? Isto só não é o fim porque contamos com muitos patriotas, civis e militares, dispostos a repetir a história de glória do nosso povo, que por tantas vezes se viu ameaçado por estes recalcados entreguistas!”, exclamou Bolsonaro no ano de 1995.
A defesa da ditadura militar e da repressão aos seus opositores se combina com um outro elemento central na construção discursiva de Jair Messias Bolsonaro: o anticomunismo. O anticomunismo está presente durante todo o período do golpe militar como uma das principais justificativas para as práticas implementadas. Esse anticomunismo foi e continua sendo estrutural para a atuação política e discursiva de Jair Messias Bolsonaro.
Em Conferência da Ação Política Conservadora realizada em Washington (2023) Jair Bolsonaro afirma que: “Jamais esperava ser presidente do Brasil. Mas quando vi uma comunista ser reeleita no meu país, eu resolvi enfrentar esse desafio. Tinha um passado de 15 anos de Exército e 30 de parlamentarismo.” Deixando claro o seu incômodo pelo lugar assumido pela ex-guerrilheira e primeira presidenta do Brasil, Dilma Rousseff (2011-2016).
A relação política com os militares portanto estrutura o governo de Jair Messias Bolsonaro transformando-o em um governo de militares, como demonstram os dados de relatório produzido pelo TCU. Em comparação com o Governo Temer, o número de militares mais que dobrou em cargos civis da administração pública durante o Governo Jair Bolsonaro.
Isso é ainda mais forte quando se analisa o alto escalão do Exército, segundo o coronel da reserva Marcelo Pimentel: “dos 17 generais que formam o alto escalão do Exército, 15 exerceram cargos de primeira ordem”.
Durante o período das eleições, Lula já havia declarado que pretendia tirar os militares dos cargos de civis da administração pública direta, autarquias, empresas públicas e órgãos de fiscalização. Os atentados terroristas de 08 de janeiro fortaleceram esse pleito, devido ao envolvimento do Exército na proteção dos invasores. Nesse sentido, a base do Governo Lula apresentou na Câmara Federal a proposta de Emenda à Constituição (PEC) 21/21 que visa proibir que os militares da ativa ocupem cargos de natureza civil na administração pública, seja na União, seja nos estados, no Distrito Federal ou nos municípios.
A tensão entre o Governo Lula e o Exército também ficou explícita quando o ministro da Defesa, José Múcio, e o comandante geral do Exército, Tomás Paiva, emitiram uma orientação para que não houvesse comemoração no dia 31 de março, dia que marca o início da ditadura militar no Brasil. O clube militar, conhecido pelo seu alinhamento às opiniões de Jair Messias Bolsonaro, enfrentou publicamente a orientação do Ministério da Defesa e do Comandante Geral, realizando o seu almoço comemorativo do dia 31 de março.
A volta de Bolsonaro desafia a conjuntura política, pois acontece em um momento de discussão sobre o lugar das Forças Armadas na democracia brasileira. Os ataques de 8 de Janeiro ao Congresso Nacional, ao Supremo Tribunal Federal e ao Palácio do Planalto geraram um sentimento de indignação nas instituições políticas e pressionaram o Exército e o Gabinete de Segurança Institucional (GSI) por não terem tomado as devidas precauções.
Apesar de ter voltado a tempo, Bolsonaro não participou do almoço do clube militar no dia 31 de março de 2023 e não fez nenhuma postagem em suas redes sociais: facebook, twitter e instagram; sobre o golpe militar que ocorreu em 1964. Isso pode demonstrar que as relações estão tensas com os seus apoiadores estruturantes, ou que ambos estão tentando evitar polêmicas para se proteger.
Já não basta as jóias para ter que se explicar!