Controversa prisão sacudiu cenário eleitoral de 2018 e segue tendo repercussões na política e na Justiça brasileira, com efeitos no combate à corrupção.
Publicado em 07/04/2023
Por Bruno Lupion – DW Made for minds
DW — Em uma tarde de domingo há exatos 5 anos, uma pequena multidão bloqueava a rua do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC quando Luiz Inácio Lula da Silva fez um discurso inflamado e atravessou a massa de pessoas a pé para se entregar a agentes da Polícia Federal (PF), que cumpriam uma ordem de prisão expedida pelo então juiz Sergio Moro.
Lula foi imediatamente levado à Superintendência da PF em Curitiba, onde passaria aquela noite e as 579 seguintes. Uma prisão que simbolizou o ápice da Operação Lava Jato e teve repercussões políticas e jurídicas vertiginosas que marcam o país até hoje.
Então líder nas pesquisas para a eleição presidencial de 2018, Lula foi impedido de concorrer e dar entrevistas. Seis meses depois, Jair Bolsonaro derrotou o candidato substituto do petista, Fernando Haddad, e nomes moderados da direita, com um discurso de outsider contra os partidos tradicionais e consolidando a extrema direita como força política relevante no país.
O petista havia sido condenado em segunda instância a 12 anos e um mês de prisão por corrupção e lavagem de dinheiro, no caso do triplex no Guarujá (SP), e se tornava o primeiro ex-presidente brasileiro a ir para a cadeia por um crime comum.
Seu futuro era uma incógnita. No discurso naquele 7 de abril, o próprio Lula deixou pistas para os dois caminhos possíveis: virar um mártir (“Quanto mais dias me deixarem lá, mais Lulas vão nascer no país”) ou dar a volta por cima (ao dizer que “sairá dessa ainda maior”, “mais inocente” e “de peito estufado”).
O segundo cenário se impôs. Lula teve suas condenações anuladas, foi solto, derrotou Bolsonaro e elegeu-se presidente para um terceiro mandato, ainda que no momento enfrente dificuldades de articulação no Congresso para fazer deslanchar suas propostas.
Mas aquela prisão ainda não é uma página virada na política e na Justiça brasileira. Notabilizado como algoz de Lula, Moro elegeu-se senador e está ativo na oposição ao governo. O próprio presidente segue antagonizando com o ex-juiz, como ao questionar em março o plano de um atentado para matar Moro desvendado pela PF. Também é sintomático que o nome favorito para ocupar a próxima vaga disponível no Supremo Tribunal Federal seja o do advogado que defendeu Lula na cadeia, Cristiano Zanin.
Enquanto isso, o Brasil ainda discute formas de enfrentar a corrupção de forma estrutural, sem apostar todas as fichas no direito penal ou na criação imaginária de heróis e vilões.
O clima na época da prisão
Quando Lula foi preso, parte significativa dos brasileiros e dos formadores de opinião acreditava que a Lava Jato e a prisão de um ex-presidente eram um marco positivo de fortalecimento das instituições republicanas, e que teriam consequências trágicas para o PT.
Em abril de 2018, uma pesquisa do Datafolha apontou que 54% dos brasileiros consideravam a prisão de Lula no caso do triplex como justa, enquanto 40% a definiram como injusta e 56% não souberam opinar.
No dia seguinte à prisão, o jornal Folha de S.Paulo trouxe na capa uma chamada para artigo do então senador Alvaro Dias (Podemos-PR) no qual ele afirmava que “leis governam os homens; assim se constrói uma nação”. Na capa do jornal O Estado de S.Paulo do mesmo dia, a jornalista Vera Magalhães defendia que as instituições “falem alto” e que Lula mostrava “ser alguém que quer para si lei própria”. E na capa do Globo, o jornalista Ascânio Seleme afirmava que “é bom se acostumar ao PT como partido-satélite”.
Algumas figuras progressistas também não se opuseram à prisão de Lula. Em agosto daquele ano, Marina Silva, então pré-candidata da Rede Sustentabilidade ao Planalto, disse que “Lula é um preso pelos erros que cometeu”. “Nós nem podemos criar uma situação de ter um preso político, como temos na Venezuela, e nem uma situação de ter alguém que foi solto politicamente”, afirmou Marina, hoje ministra do Meio Ambiente.
“A prisão de Lula foi o momento mais representativo da Lava Jato como fenômeno social, que mobilizou parcela da elite política e da elite jurídica do país, com vasto apoio da mídia tradicional, que acabou cooptando corações e mentes e tinha muito apoio da opinião pública”, afirma a cientista política Marjorie Marona, professora da Universidade Federal de Minas Gerais e coordenadora do Observatório da Justiça no Brasil e na América Latina.
Por outro lado, setores da esquerda apontavam o que viam como abusos da Lava Jato e uma condenação sem provas de Lula, que teriam o objetivo de tirá-lo do ringue político e facilitar a vitória de um nome da direita. Guilherme Boulos, por exemplo, definiu a prisão do petista como “um atentado à democracia”.
O antropólogo e especialista em segurança pública Luiz Eduardo Soares, que participou do primeiro governo Lula e depois se afastou do PT e ajudou a fundar a Rede Sustentabilidade, apontou em 2018 que o processo contra Lula tinha uma natureza “eminentemente política” e “violações grosseiras”.
O coro dos críticos era engrossado pelos advogados de empresários condenados por corrupção na Lava Jato, que afirmavam que a atuação de Moro e dos procuradores da força-tarefa extrapolava suas competências e violava direitos.
Mudança dos ventos
O pêndulo começou a virar contra a Lava Jato em janeiro de 2019, quando Moro foi nomeado ministro da Justiça de Bolsonaro, afirma à DW Fabio de Sa e Silva, professor de estudos brasileiros na University of Oklahoma, nos Estados Unidos, e pesquisador dos reflexos políticos da operação. “Isso provocou uma fissura na compreensão de que a Lava Jato buscava efetivar a lei, e que Lula seria apenas um elemento disso”, diz.
Em junho daquele ano, outra bomba atingiu a Lava Jato: o vazamento de milhares de conversas travadas pelo aplicativo Telegram entre integrantes da força-tarefa e Moro, revelado pelo site The Intercept Brasil e que ficou conhecido como Vaza Jato. As conversas sugeriam que Moro e o principal procurador da Lava Jato, Deltan Dallagnol – hoje deputado federal pelo Podemos do Paraná –, combinavam estratégias de atuação, violando a imparcialidade exigida do juiz.
O Supremo, que vinha evitando colocar freios à operação enquanto ela desfrutava de amplo apoio na sociedade e na mídia, lentamente começou a modificar seu entendimento.
Em 2016, a corte havia decidido autorizar o início da execução da pena após uma condenação em segunda instância – regra determinante para a prisão de Lula. Nos anos seguintes, alguns ministros que haviam votado nesse sentido passaram a reavaliar sua opinião sobre o tema, e após a prisão do petista cresceu a pressão sobre o Supremo para que o assunto fosse rediscutido.
A então presidente da corte, ministra Cármen Lúcia, que em 2018 afirmava que a Lava Jato havia mudado o Brasil “no sentido da esperança do povo de ter o combate à corrupção”, recusou-se a pautar o tema até o final de seu mandato, em setembro, um mês antes das eleições.
Porém, uma reavaliação se movimentava. O conteúdo da Vaza Jato não chegou a ser considerado como prova pelo Judiciário, mas indiretamente contribuiu para uma mudança de percepção dos ministros e de parte da sociedade sobre a prisão de Lula, diz Silva.
Cinco meses após a revelação das mensagens, em 7 de novembro de 2019, no primeiro ano de mandato de Bolsonaro, o Supremo reanalisou a prisão em segunda instância e vetou essa possibilidade de execução provisória de pena. No dia seguinte, Lula foi solto, abrindo o caminho para a liberdade também de outros condenados pela Lava Jato.
A anulação das condenações do petista viria somente em 2021. Em 3 de março daquele ano, o ministro Edson Fachin decidiu que Moro não era o juiz competente para julgar o caso do triplex e outros dois contra Lula, pois não haveria conexão com a Petrobras.
Vinte dias depois, a Segunda Turma do Supremo também decidiu que Moro havia sido parcial em seu julgamento de Lula e que, portanto, o processo deveria recomeçar do zero. Foi decisivo para o desfecho a mudança de posição de Cármen Lúcia, que em 2018 havia rejeitado esse argumento, mas argumentou que novos elementos haviam mostrado que Moro não havia sido imparcial.
Repercussões no combate à corrupção
A decisão do Supremo sobre a prisão em segunda instância não foi a única relacionada ao processo de Lula que teve impacto para além do petista.
Em março de 2016, dois anos antes de ser preso, Lula foi levado à força para depor em uma das fases da Lava Jato, por meio da condução coercitiva, sem que o petista tivesse sido antes intimado e negado a comparecer.
A iniciativa foi criticada por juristas à época, que ressaltaram que Lula deveria ter tido antes a oportunidade de comparecer ao depoimento sem ter sido forçado. Em junho de 2018, quando Lula já estava preso, o plenário do Supremo decidiu, em uma ação apresentada pelo PT, que a condução coercitiva era um instrumento inconstitucional.
A prisão de Lula também teve efeitos no combate à corrupção. Para Silva, os “abusos” cometidos pelo Ministério Público na Lava Jato – dos quais o caso do petista seria o mais simbólico – acabaram enfraquecendo o mandato da instituição para usar o direito penal para enfrentar a corrupção.
“Quando uma prisão se torna tão controvertida e as pessoas enxergam sinais de que se tratou não de reprimir uma violação à lei, mas uma forma de violência política, o efeito no combate à corrupção pode ser até o contrário, porque desmoraliza o uso desse instrumento, que já é limitado”, afirma Silva.
Marona avalia que a aposta da Lava Jato em tratar a corrupção como fenômeno a ser enfrentado predominantemente na esfera criminal e enquadrar os partidos como organizações criminosas afetou não só a legitimidade do sistema político, mas também do próprio sistema de Justiça, após a revelação das mensagens da Vaza Jato e ao reconhecimento, pelo Supremo, de que Moro havia sido parcial.
“A Lava Jato envolveu um processo de politização do Judiciário muito forte, o que é negativo, pois um dos princípios que sustenta o regime democrático é a independência do Judiciário. (…) Agora temos a necessidade não só de reconstruir a qualidade da democracia, mas também a imagem pública de um Judiciário íntegro, que atue de forma independente”, diz.