Entrevista com João Paulo Rodrigues, membro da direção nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)
Publicado em 27/03/2023
Por Sergio Ferrari
MST — Desde a posse de Luiz Inácio Lula da Silva como Presidente, o Brasil vive uma nova etapa tão rica e desafiadora quanto complexa. Como garantir que os erros cometidos pelo Partido dos Trabalhadores em suas gestões anteriores não se repitam? Como esse novo momento político pode fortalecer os movimentos sociais desse gigante sul-americano? Questões centrais desse diálogo com o líder camponês João Paulo Rodrigues, que com apenas 43 anos já é destaque da direção nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), um dos mais importantes atores do continente latino-americano. Rodrigues desempenhou um papel central no processo pré-eleitoral ao representar o MST e os movimentos sociais na coordenação da campanha presidencial de Lula.
O dia 1 de Março marcou os primeiros três meses desde que o Presidente Lula tomou posse. Qual é a sua avaliação destes primeiros 100 dias?
A nossa avaliação dos três primeiros meses é positiva. O Brasil vive uma crise profunda desde 2015, com os ataques à democracia, a recessão econômica e a crise social com o desemprego e a volta da fome. Houve um processo de destruição do Estado social, especialmente das instituições que operam as políticas públicas, que vai demandar um tempo para ser reorganizado. Ou seja, é o começo de uma jornada para retomar o crescimento econômico, combater a desigualdade social e fazer as reformas estruturais necessárias para resolver os problemas do povo.
Qual é a situação atual da oposição a este governo? O “bolsonarismo” está enfraquecido, rearmando as suas forças, na ofensiva? Os acontecimentos de 8 de Janeiro foram “digeridos” pela sociedade brasileira?
O Lula se elegeu como expressão de uma frente ampla democrática que se construiu como oposição ao governo Bolsonaro. O presidente está muito firme, com uma posição mais à esquerda na política e na economia. No entanto, essa frente ampla é uma composição de forças políticas e sociais de esquerda, de centro e setores da direita. O campo de oposição ao governo é formado, sobretudo, pela extrema-direita mais ideológica, ainda mais depois do ataque à República em 8 de janeiro, que foi repudiado pela maior parte da sociedade. No entanto, dentro da frente ampla do governo tem setores com projetos diferentes, que fazem a disputa das políticas do governo em relação a diversos temas, como política econômica, política de preço dos combustíveis e política agrária-fundiária. Com a derrota eleitoral, o bolsonarismo passará por um tempo de refluxo e perderá força, mas as ideias e valores conservadores, além da máquina de comunicação, são muito fortes na sociedade. Será necessário fazer uma luta política, social e econômica das forças democráticas para derrotar o bolsonarismo e seu projeto no próximo período.
E os movimentos sociais, e será que já sentem um novo ar político a partir de 1 de Janeiro de 2023?
O clima mudou com a posse do Lula entre os movimentos populares e na sociedade brasileira. A sensação é de que o pior já passou, mas que é necessário manter a mobilização e luta para obter as conquistas. O Lula montou um bom time no governo, abriu espaço para lideranças importantes da sociedade e tem defendido uma agenda progressista na economia e na área social. A visita do Lula aos povos yanomamis em Roraima, que foram deixados pelo governo Bolsonaro em uma situação de genocídio, tem muita simbologia e demonstra que o novo governo vai atender os que mais precisam.
Nos anteriores governos do PT (Lula e Dilma) os movimentos sociais fizeram críticas fundamentais às administrações “tépidas”. Por exemplo, o MST criticou fortemente o fracasso do avanço da reforma agrária… Os movimentos indígenas e ambientais também foram muito críticos. Existe um novo tipo de relação entre o atual governo Lula e os movimentos sociais? Existe a preocupação de que os erros de outrora se venham a repetir?
Houve um amadurecimento da parte dos movimentos populares, dos partidos políticos e do Lula. Os governos Lula de 2003 a 2010 foram a primeira experiência de um governo progressista com um presidente formado pela classe trabalhadora. Foi um tempo de aprendizado. De lá pra cá, o país passou pelo golpe de 2016, pela perseguição e prisão do Lula e a emergência da extrema-direita com a eleição de Bolsonaro. Me parece que existe uma compreensão política muito maior dos desafios políticos. Da parte dos movimentos populares, é preciso disputar a sociedade para um programa de mudanças sociais, lutar para o atendimento dos nossos interesses e defender o governo contra as pressões da direita. Da parte do governo, cabe dialogar com os movimentos, avançar com as pautas colocadas com as lutas e estimular a maior participação política da sociedade para construir uma nova forma de governabilidade.
Quais são as principais reivindicações do MST para esta nova etapa? A reforma agrária ainda é relevante?
O movimento está alinhado à agenda do presidente Lula de colocar centralidade no combate à fome e à pobreza no país. Acabar com a fome demanda o atendimento daqueles que estão em uma situação vulnerável e uma política de produção de alimentos de qualidade, além das políticas sociais de renda. A primeira pauta, que faz parte de um programa emergencial, é o assentamento das famílias acampadas. São mais de 100 mil famílias que vivem em acampamentos, muitas estão há 10 anos debaixo da lona preta. O governo precisa abrir um cadastro e fazer um cronograma para assentar as famílias. Cerca de 30 mil famílias estão em áreas de pré-assentamento que não se efetivou porque o Incra não terminou o processo jurídico. A segunda pauta se refere à agricultura familiar e às famílias assentadas, que mantiveram a produção de alimentos mesmo sob o governo Bolsonaro, que desmontou as políticas públicas. É preciso retomar as políticas para a produção, crédito, cooperação, industrialização e comercialização para os assentamentos.
Foram feitos progressos no sentido de uma unidade real / crescente dos atores e movimentos sociais brasileiros nesta fase, ou cada um está agindo por conta própria?
Foi construída na oposição ao governo Bolsonaro e na eleição do Lula a maior unidade política dos movimentos populares desde a década de 90. Essa unidade política é real e tem avançado do ponto de vista programático e da tática política. Realizamos em março uma grande plenária com todos os movimentos populares e forças progressistas, discutimos as bandeiras comuns e tiramos um calendário de lutas do primeiro semestre.
A América Latina enfrenta uma etapa complexa e desafiadora. Há uma série de governos progressistas. Qual é a sua leitura sobre os principais desafios que o continente enfrenta atualmente?
A América Latina vive um novo momento com a eleição de governos progressistas no Brasil, no México, na Argentina, no Chile, na Bolívia e, especialmente, na Colômbia, além da resistência histórica de Cuba e da Venezuela. Isso demonstra que as novas expressões políticas do programa neoliberal e o projeto do imperialismo dos EUA são rejeitadas pelo povo latino-americano. No entanto, é necessário avançar na organização popular e na luta ideológica em torno de um programa anti-imperialista e anti-neoliberal para sustentar e avançar com esses governos. Com a emergência da extrema-direita e a crise das democracias liberais, que se expressa em golpes, não basta vencer eleições. É necessário ter o povo organizado, politizado e mobilizado para empurrar os governos progressistas e combater a extrema-direita e as forças do neoliberalismo.
Tudo isto numa Europa confrontada com uma guerra terrível. Qual é a sua leitura sobre esta complexa realidade internacional?
A crise do capitalismo que se arrasta desde 2007/2008 tem implicações políticas, econômicas, sociais e geopolíticas. As contradições no cenário internacional tem se agudizado com a crise mundial, a emergência econômica da China e a reação dos EUA e da Europa, incluindo o fortalecimento da extrema-direita pelo mundo. A expansão da Otan para o oriente levou à resposta da Rússia com a Guerra na Ucrânia. É preciso encontrar um caminho político para a paz, que dependa de sinalizações de todos os lados, como um recuo da Otan e a paralisação da guerra na Ucrânia.
*Entrevista do João Paulo Rodrigues, da direção nacional do MST, para o jornalista Sergio Ferrari, publicado originalmente em espanhol por El Cohete à la Luna