Enquanto terminava esse artigo, soube que o presidente Lula adiou a viagem à China por questões de saúde. Ele foi contaminado por um vírus influenza (gripe), que gerou pneumonia leve. A decisão de adiar a viagem, para aguardar o término do ciclo de transmissão viral, é naturalmente prudente e necessária. A viagem, no entanto, deverá ocorrer em breve. Desejamos melhoras ao presidente, e esperamos que o adiamento seja usado para melhorar o planejamento dos encontros.
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Procuramos especialistas em China para falar de suas expectativas sobre o encontro de Lula e Xi Jinping. Quase todos partilham de um sentimento em comum: uma grande ansiedade com o que consideram uma oportunidade estratégica para o Brasil, especialmente no momento dramático que vivemos, um país sem projeto claro de desenvolvimento, enorme déficit logístico e de infra-estrutura, e que ainda contempla, apático e confuso, os escombros de nossa indústria de engenharia, vítima da traumatizante e recente experiência de guerra híbrida, iniciada nas jornadas de junho, fortalecida pela Lava Jato, consumada pelo golpe de 2016 e consolidada em 2018, com a vitória eleitoral de Bolsonaro.
Essa ansiedade, porém, também nasce da preocupação crescente com o que consideram falta de planejamento adequado do Brasil para esse encontro.
Uma coletiva recente convocada pelo embaixador Eduardo Paes Saboia, secretário de Ásia e Pacífico do Itamaraty, para dar informações sobre a viagem de Lula, acabou aumentando mais ainda a angústia dos especialistas, justamente pelas respostas vagas, evasivas, do diplomata. Uma delas produziu estupefação e revolta: ao ser perguntado se o governo iria assinar acordo com a China sobre a Rota do Cinturão e da Seda, o mais ambicioso conjunto de investimentos em infra-estrutura e logística em curso no mundo, liderado pelo gigante asiático, Saboia opinou que a iniciativa não “agregava valor ao Brasil”.
Alguns chegaram a externar a opinião que o núcleo político e econômico do governo Lula deveria afastar o Itamaray das negociações mais diretas com a China.
Aliás, é o que já vem acontecendo, meio que naturalmente, em virtude inclusive da falta de energia e insegurança do Itamaraty, que ainda não encontrou um discurso adequado, firme, para o atual cenário geopolítico, que vive uma espiral de tensão, com aumento crescente das divergências diplomáticas entre Estados Unidos e China.
Nos últimos dias, o assessor especial de Lula, que também é um veterano do Itamaraty, o embaixador Celso Amorim, vem assumindo o papel de chanceler virtual do governo, ocupando o lugar de Mauro Vieira, cuja última entrevista foi um verdadeiro desastre: vimos um ministro gaguejante, inseguro, incapaz de driblar as armadilhas jornalísticas mais primárias, envolvendo a guerra na Ucrânia, e, sobretudo, inteiramente exangue, pusilânime, quase catatônico, em se tratando de ideias e projetos para o encontro de Lula e Xi Jinping.
Amorim, por sua vez, vem dando entrevistas mais assertivas, como essa mais recente, em que defende a instalação, no Brasil, de indústrias chinesas de semicondutores.
Quais são as principais críticas que os especialistas brasileiros em China vem fazendo ao governo?
A principal delas é que o governo brasileiro parece ter a intenção de fazer reuniões “improvisadas” com as lideranças chinesas, o que é um erro muito grande, pois a cultura política do Estado chinês é radicalmente aversa a improvisações. A China é, por excelência, o país de projetos de longo prazo. O estilo de negociação chinês é conhecido por seu rigor e precisão. E o Brasil parece estar indo para a China sem foco, sem meta, sem nenhuma plataforma elaborada de demandas.
Uma esperança tênue de alguns é que o Brasil tenha algum “coelho escondido na cartola”, cujo segredo se justificaria pelo cuidado em evitar que o governo americano sabote previamente qualquer acordo. Mas isso faz pouco sentido, se considerarmos que o governo brasileiro, antes de fechar qualquer acordo de grande porte com a China, precisará do aval do congresso nacional e da opinião pública, de maneira que seria muito mais eficaz se o governo viajasse com algum projeto já devidamente mastigado e discutido nessas esferas.
Independente de todas essas críticas, de qualquer forma, há muita esperança e expectativa. E o governo Lula tem uma boa justificativa para suas atuais deficiências: apesar de estar em sua terceira (ou quinta, se consideramros a gestão Dilma) encarnação, é um governo bebê, com pouco mais de 70 dias, e que sucede uma era de profunda destruição, e que foi particularmente acentuada na política externa. Há ainda histórias a serem contadas sobre atos de verdadeiro heroísmo de alguns diplomatas, para resistir à onda de insanidade e extremismo fascista, que caracterizou a diplomacia de Bolsonaro, especialmente durante o mandato de Ernesto Araújo.
Vamos ao que disseram nossos especialistas.
Desde a transição, o geógrafo e autor de livros sobre a China, Elias Jabbour, vem martelando a necessidade do governo Lula criar estruturas para elaboração de estratégias originais para a China. Ele é um dos que estão preocupados com a apatia e falta de energia com que o encontro entre Lula e Xi Jinping tem sido visto pelo governo. Já o entrevistamos algumas vezes nos últimos meses. E pedimos um comentário específico para esse artigo:
“O risco é o de não iniciarmos uma nova era nas relações entre os dois países. E não existirá uma nova era sem que não toquemos no fundamental: um grande acordo envolvendo a troca de commodities por infraestruturas. A agenda climática é fundamental. Mas o que necessitamos é de infraestruturas. Reconectar o nosso território nacional”, afirmou Jabbour ao Cafezinho, sobre o encontro entre os chefes de Estado do Brasil e China.
O professor da FGV e um dos maiores especialistas brasileiros em China, Evandro Menezes de Carvalho, com o qual mantemos regularmente uma troca de ideias sobre o tema, nos enviou a íntegra de sua mais recente palestra, feita dias atrás, sobre as expectativas para essa viagem. Separei um trecho:
“Sugiro ao Lula fazer o trajeto Beijing-Shanghai de trem bala. A ferrovia integrou a China, um país de dimensão continental como o Brasil. O Lula poderia aproveitar a sua viagem para conhecer mais sobre os impactos do trem-bala no processo de desenvolvimento da China. E, quem sabe, pudesse trazer o primeiro trem-bala para o Brasil. Seria, definitivamente, um marco na história do Brasil, na história da relação Brasil-China e inauguraria uma nova página do desenvolvimento brasileiro.”
A jornalista Iara Vidal, que mantém uma coluna focada em China na Revista Fórum, e que passou quatro meses no país, no ano passado, nos mandou o seguinte comentário:
“O que eu penso: o Brasil tem potencial de sobra para acordos ganha-ganha com a China. Nos moldes do que foi feito, por exemplo, com Irã e com a Argentina. Mas a gente precisa de plano estratégico. Temos que saber o que a gente quer e como quer ganhar, além de levar a outra parte do ganha, o que temos a oferecer. Sinto falta de uma assessoria que compreenda de fato a China. Não é razoável que interlocutores do governo Lula considerem a eliminação da extrema pobreza na China “um milagre”. Precisamos de pessoas no governo que compreendam o sistema político da China e a sofisticação dos arranjos institucionais que foram essenciais para alcançar esse feito extraordinário. Esse é um dos exemplo, há vários. Não podemos medir a China com a régua ocidental.”
Voltemos à palestra de Evandro Menezes, reproduzindo mais trechos bastante informativos (e cheios de alertas importantes):
“O governo chinês anunciou um crescimento de 5% para a sua economia este ano na 1ª Sessão da 14ª Assembleia Popular Nacional. Para um país com um PIB próximo de 18 trilhões de dólares americanos, é um crescimento significativo. A China mantém-se na corrida para assumir o pódio global de maior economia do mundo e segue firme no propósito de ter 800 milhões de pessoas na faixa de renda média até 2035. Um mercado consumidor gigantesco. Por ser o maior parceiro comercial de mais de uma centena de países, incluindo o Brasil, estes prognósticos são animadores para muitos governos e isto também significa que será mais intensa a concorrência pelas oportunidades no mercado chinês.
A China pós-pandemia quer importar mais, mas também quer diversificar os seus fornecedores e se movimenta para reduzir sua dependência externa em setores sensíveis. É o caso da soja. Mais de 85% da soja na China é importada do Brasil e dos EUA e a China quer garantir sua segurança alimentar reduzindo o farelo de soja na alimentação animal, sobretudo em razão de possíveis conflitos ainda maiores com os Estados Unidos. É por isto que a China quer ampliar a sua produção de soja em 40% nos próximos cinco anos. A longo prazo, o fabuloso superávit comercial que o Brasil tem com a China (em torno de 28 bilhões de dólares) poderá se reduzir. Diante deste possível cenário, o Brasil deve diversificar seus produtos e, de preferência, vender produtos com maior valor agregado para garantir o aumento de suas exportações para a China. Esta é uma preocupação antiga do Brasil. Mas eis a questão: quais produtos manufaturados brasileiros estão em condições de competir no preço e na qualidade com os produtos chineses no mercado chinês?”
Marco Fernandes, pesquisador da Tricontinental, um think tank internacional, e co-editor da Dong Sheng News, canal de notícias em inglês e português sobre a China, e que vive entre Pequim e Shangai há muitos anos, nos enviou a seguinte observação:
“O Brasil precisa trazer a política e o planejamento para a relação Brasil e China, que hoje está guiada somente pelas demandas de mercado. Estas demandas de mercado soltas levam somente à exportação de produtos primários: 89% da exportação brasileira à China é petróleo, soja, ferro e carne. Isso não leva o Brasil muito longe. 76% dos investimentos chineses estão concentrados em energia, 5% em manufatura e 4% em infra-estrutura. A agricultura familiar é outro tema que mobiliza grandes desafios do governo Lula, que é garantir renda no campo. A China é o paraíso do maquinário da agricultura familiar. Fundamental, portanto, garantir acordos de importação dessas máquinas e, num segundo momento, transferir essas tecnologias e indústrias para o Brasil. A nomeação de Dilma para o banco dos Brics é um ótimo sinal.”
Outro brasileiro que reside na China há anos, em Wuhan, especializado em administração pública chinesa, Renato Peneluppi, traz as seguintes reflexões:
“A China entrou em uma nova etapa de seu desenvolvimento, ao eliminar a pobreza; e visa atingir a meta, até 2035, de ser um pais socialista moderno. É o que eles chamam de modernização chinesa, que tem na prosperidade comum a base para garantir que o crescimento econômico seja sustentável. Diante do desafios ambientais e climáticos deste século, a China investe na revitalização do campo, tanto através de novas tecnologias de mecanização e cultivo, como pela conexão mais rápida com as cidades, via trens de alta velocidade. Quanto às cidades, a meta é torná-las cada vez mais inteligentes, digitais e interligadas, conectando a costa desenvolvida (região Leste) ao centro e ao oeste da China.
Tudo isso fomenta a demanda doméstica chinesa em um ciclo de dupla circulação, que também faz ponte com o exterior diante da necessidade de exportar capital, superando a fase inicial de acumulação primitiva socialista. A China oferece os recursos necessários para construir projetos de infraestrutura em países parceiros, principalmente via Iniciativa Cinturão e Rota. E é ai onde o Brasil se insere.
O governo precisa ouvir o Núcleo do PT na China, bem como pesquisadores, e especialistas que trabalham há décadas vivenciando essa dinâmica, para adotar um projeto de medio longo prazo, que não seja dominado pela pauta agroexportadora, mas que leve em consideração as muitas dimensões da sua relação com esse importante parceiro.”