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Discriminação na saúde torna pessoas trans suscetíveis a estratégias informais de cuidado

Artigo de pesquisadoras da USP discute os desafios da saúde pública na prestação de cuidados à população trans, além de refletir sobre estigmas sociais que associam corpos trans à prostituição Publicado em 10/03/2023 Por Camilly Rosaboni – Jornal USP USP — Em um país líder mundial em transfeminicídio, a vulnerabilidade social de corpos transfemininos se […]

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Wikimedia Commons/ Freepik - fotomontagem

Artigo de pesquisadoras da USP discute os desafios da saúde pública na prestação de cuidados à população trans, além de refletir sobre estigmas sociais que associam corpos trans à prostituição

Publicado em 10/03/2023

Por Camilly Rosaboni – Jornal USP

USP — Em um país líder mundial em transfeminicídio, a vulnerabilidade social de corpos transfemininos se dá por um conjunto de violências estruturais, que tornam o ato de existir um desafio diário. “A sociedade brasileira ainda transfóbica limita quase todas as condições materiais de existência da pessoa trans, impedindo que ela seja inserida e tenha seus direitos reconhecidos”, afirma Luz Gonçalves, pós-doutora em Estudos Culturais e de Gênero pelo Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP. No artigo Transfeminine Bodies: Survival and Resilience Experiences in Brazil, publicado no livro Transgender Health – Advances and New Perspectives, Luz Gonçalves e a professora Silvana de Souza Nascimento, do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, analisam a saúde de mulheres trans e travestis em um ambiente social marcado pela transfobia.
A partir de uma abordagem interdisciplinar, o artigo identifica que a vulnerabilidade de mulheres trans e travestis ocorre pela falta de acesso aos sistemas públicos de saúde, principalmente aquelas que trabalham na prostituição. Essa discriminação faz com que elas produzam informalmente seus cuidados, como intervenções e terapias hormonais.

A publicação discute como pessoas trans e travestis têm sobrevivido no Brasil, o país que mais comete transfeminicídios no mundo, de acordo com o relatório de 2021 da Transgender Europe (TGEU). A organização, com sede na Suécia, monitora dados globalmente levantados por instituições trans e LGBTQIA+, em seu Observatório de Pessoas Trans Assassinadas.

As autoras sugerem uma analogia entre o “racismo brasileiro”, explorado pela antropóloga brasileira Lélia Gonzalez, e o que chamam de “transfobia brasileira”. Nesse sentido, as imagens estereotipadas das travestis são sempre vistas com viés de sexualização, corpos sujeitos à violação, podendo ser relacionadas à figura sexualizada da mulher negra brasileira.

Também identificam, por meio de revisão literária e coleta de relatos, que travestis e mulheres trans constroem um saber vivido sobre seus próprios corpos como importante forma de resistência.

Desafios similares

Ao explorar algumas violências sociais a que mulheres negras estão submetidas, as autoras puderam encontrar um ponto de convergência com a história de mulheres trans e travestis. “A intolerância, discriminação e preconceito contra as pessoas trans são muito semelhantes à dinâmica que o racismo impõe”, ressalta Luz. Os resultados da pesquisa mostram um aumento de riscos e vulnerabilidades por parte de pessoas negras transfemininas, principalmente aquelas que trabalham na prostituição.

Em 2019, o Supremo Tribunal Federal (STF) incluiu como crime de racismo a homofobia e a transfobia. A Lei 7.716/2018, que condena os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor, também passou a abranger as condutas homofóbicas e transfóbicas, por reconhecer que o conceito de racismo ultrapassa aspectos estritamente biológicos ou fenotípicos e alcança a negação da dignidade e da humanidade de grupos vulneráveis.

Ciclo de violência

Luz explica que pessoas trans passam por um conjunto de violências estruturais que se repetem, envolvendo a escola, o trabalho e a família. “Em muitos casos, a pessoa sofre discriminação, é expulsa de casa, sai da escola, sofre exclusão do mercado de trabalho formal e vai passando por vários resultados que novamente alimentam a estrutura das violências”, afirma ela.

A pós-doutora em Estudos Culturais e de Gênero esboçou um modelo explicativo de ciclo de violências a que as pessoas trans estão expostas. São dinâmicas de vulnerabilização que a sociedade constrói por meio do não reconhecimento, dos discursos de ódio, da hostilidade social, da exclusão do mundo do trabalho, da estigmatização, da marginalização e da exclusão.

“No Brasil, temos um conjunto de violências estruturais que leva a maior parte das mulheres trans e travestis a se tornarem prostitutas. É um lugar social construído para elas e é, curiosamente, o único lugar no qual a sociedade as aceita”, conta Luz.

“Quando uma mulher trans ou travesti se torna prostituta, ela já passou por todas as outras violências que se iniciam desde a infância até a adolescência, em que ela não conseguiu ser aceita”, complementa a pós-doutora do NEV. Mais de 90% da população transfeminina no Brasil trabalha ou trabalhou como profissional do sexo, pelo menos uma vez na vida, segundo a Articulação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), uma associação não vinculada a um órgão do Estado, que desenvolve ações para promoção da cidadania da população trans.

“As mulheres trans e travestis vivenciam formas específicas de opressão que têm relação com a sua feminilidade e com o fato de que a sociedade ainda as enxerga como homens de saia”, explica Luz. “Ao mesmo tempo que as mulheres trans passam pela misoginia comum que as mulheres cis passam, de terem seus corpos desrespeitados e objetificados, as mulheres trans são sexualizadas de forma intensa por obra da transmisoginia, sendo sempre vistas como prostitutas”, lamenta a pesquisadora.

Saúde deficitária

Além de discutir sobre os grandes desafios enfrentados pelas mulheres trans para existir na sociedade, o artigo também reflete acerca de sua luta pela obtenção de recursos de saúde. “A gente mostra que as pessoas trans precisam construir saberes específicos sobre os seus próprios corpos, em parte pela dificuldade de acesso aos serviços básicos de saúde”, afirma Luz.

As autoras entrevistaram mais de 40 travestis e mulheres trans, de 16 a 40 anos, situadas principalmente nas regiões Norte e Nordeste do Brasil. Elas puderam observar que, independentemente de sua origem, há um projeto de ascensão social em comum: ganhar dinheiro com o trabalho sexual e acessar uma rede de consumo estético, tornando seus corpos mais femininos por meio de intervenções hormonais e cirúrgicas.

“Durante nosso trabalho de campo, coletamos muitos relatos de transformação corporal, particularmente experiências de terapia hormonal, com ou sem acompanhamento médico, e uso de silicone industrial para feminização corporal”, afirmam as autoras em seu artigo. As transformações se tornam ainda mais perigosas quando se tem o uso de medicação para obter resultados mais rápidos.

Porém, há marcos importantes para a saúde trans. “A visibilidade das mulheres trans no Brasil tem relação com o Sistema Único de Saúde (SUS) e com as políticas públicas de saúde”, pontua a pós-doutora do NEV, relembrando alguns marcos da inclusão de gênero na saúde.

  • em 2004, o Ministério da Saúde promoveu a campanha Travesti e Respeito, ressaltando a importância de respeitar a diversidade;
  • em 2008, o Cartão do SUS incluiu nomes sociais da população trans;
  • em 2011, o Ministério da Saúde criou a Política Nacional de Saúde Integral LGBT, com o objetivo de “promover a saúde integral de lésbicas, gays, bissexuais e pessoas trans, e eliminando a discriminação e preconceito institucional, bem como a redução das desigualdades e a consolidação do SUS como universal, integral e equitativo”.

O artigo

A publicação foi pensada pelo envolvimento das autoras com questões relativas à transexualidade e transgeneridade. “Nós percebemos que tínhamos algo para contribuir a partir do nosso diálogo teórico”, afirma Luz. “É importante trazer a perspectiva sul-americana acerca das questões trans, inserindo as nossas contribuições analíticas no debate teórico internacional”, aponta Luz.
O texto reúne entrevistas com pessoas da comunidade trans na região metropolitana de João Pessoa, Estado da Paraíba, e na metrópole de São Paulo, para entender sobre as violências estruturais e problemas de saúde gerados a partir do contexto de trabalhos sexuais a que a população trans e travesti é submetida.

Uma das personagens mostradas no artigo é Fernanda, uma mulher trans branca nascida em Fortaleza, Ceará, que atua diariamente como agente de prevenção junto às prostitutas. Ela distribui preservativos e gel lubrificante, conversando com elas sobre formas de prevenção e cuidados com a saúde.

O artigo de Luz e Silvana é um capítulo do livro Transgender Health – Advances and New Perspectives, uma coletânea de textos sobre saúde trans, editada pelo médico cirurgião Carlos Miguel Ríos-González. A produção coletiva trata das políticas públicas voltadas a este público, o momento de transição e como melhorar o atendimento a pessoas trans, além de assuntos específicos sobre procedimentos cirúrgicos. Transfeminine Bodies: Survival and Resilience Experiences in Brazil busca trazer um olhar antropológico de análise à população trans e suas atuais necessidades.

Arte: Joyce Tenório

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