O gigante da ingovernabilidade das organizações de força nunca adormeceu
Atualizado em 6/03/2023 – 07h28
Por Jacqueline Muniz, professora do DSP/IAC/UFF, e Herbert Bachett, doutorando do PPGSOL/UnB
Brasil 247 — Estamos a 53 dias da invasão e devassa às sedes dos três poderes em Brasília postas em prática por uma multidão de autodenominados “patriotas”, saídos de vários cantos do país. 8 de janeiro de 2023. Assistiu-se, das telinhas do smartphones e telonas das TV, a transmissão, ao vivo e nas cores verde-amarela, do maior reality show de um vandalismo coreografado sob a orquestração longa e pública feita a várias mãos. Visualidades e sonoridades de horrores em 5G e 4K: filhinha, sobrinho, mamãe, papai, titia, vovô, coleguinha, consorte, enfim, todos atrás de likes: “olha, eu estou aqui!” fazendo algo muito auto importante. Entre violências e violações diariamente praticadas na internet e nas bases de convivência e doutrinação junto aos QGs, ficou combinado o dia D da destruição: de uma só vez, mas não de uma vez por todas, dar uma lição no Executivo, no Legislativo e no Judiciário. Esculpiu-se ali o segredo público mais bem guardado. Só os “órgãos de inteligência” que “ouviram falar” não receberam o convite para a “festa da Selma” que viralizou nos “zaps” e Telegram.
Os patriotas de Brancaleone colocaram em operação um combo provocativo contra as autoridades constituídas. Promoveram uma manifestação de lacração, um justiçamento de auditório e um atentado de terror contra os símbolos republicanos e democráticos, estimulados por mentores intelectuais que, muito antes, já profanavam Deus acima de tudo e leiloavam o Brasil acima de todos. Tudo com direito a selfies para autopromoção de vândalos convertidos em celebridades instantâneas nos gestos de fúria heroica, solene e lúdica: “isso tudo aí é meu eu faço o que eu quiser”. Viu-se uma horda eufórica composta de um casting de guias profissionais e animadores contratados, figurantes fantasiados de “cidadão de bem”, zumbis de excursões, caroneiros de aventuras e oportunistas da vez. Tudo com o necessário financiamento privado e o indispensável patrocínio de atores públicos: “chega, pode entrar que a casa é sua”.
Marionetes da devassa, pareciam lembrar de esquecer que na internet o print é eterno e que, tão logo o êxtase do momento passasse, restariam as provas autoproduzidas para o grande final da responsabilização legal pela ópera política farsesca em três atos, nos três poderes. Cada palavra de ordem antidemocrática, cada espaço ou objeto vandalizado, cada roubo feito de troféu da barbárie consentida correspondeu a um post de orgulho, ostentação, curiosidade, devoção, ódio e diversão. Tudo em tempo real. Sorriam, nós estamos sendo filmados por nós mesmos! “Tamos Juntos” na inscrição em uma identidade afetiva-político-moral feita de arrebatamentos pelos ressentimentos, frustrações, abandonos, indiferenças e destituições vividos como pânicos morais associados, sobretudo, à ruptura das hegemonias branca, masculina e heteronormativa.
E, assim, cada um levou o que tinha para a marcha missionária antidemocrática. O seu farnel continha as autorrepresentações de “deus, pátria, família e liberdade” particularizadas em suas razões desiguais de classe, cor, gênero, orientação sexual, inscrição religiosa, origem social etc. Os milhares de libertários das regras do jogo constitucional, despossados de bens culturais e/ou despossuídos de bens materiais, se mostravam unidos pelo combate à infinitude de inimigos imaginários criados conforme seu rendimento político. Lá estavam ressuscitados pelo pertencimento ofertado pela indignação raivosa contra o Estado de Direito tomado como invasivo à “liberdade de expressão” pessoalizada e, principalmente, contra um governo “esquerdista” visto como conivente com o “politicamente correto” e condescendente com a propalada corrupção moral das supostas “tradições da sociedade brasileira conservadora e cristã”. Instrumentalidades mobilizadas pela Santíssima Trindade bolsonariana que, em seu projeto autoritário de poder, funde o senhor da guerra (libertador de hoje e tirano de amanhã), o mercador da proteção (cambista dos direitos sociais e agiota da promessa de lei e ordem) e o profeta do caos (pregador da fé cega com facas amoladas que conduz e radicaliza o seu rebanho ao sacrifício da autoimolação e à cruzada da cura ou destituição das ovelhas negras e desgarradas).
Viu-se o sentido do interesse comum da comunidade política aberta à pluralidade de sujeitos pervertido em interesse unitário de uma comunidade moral homogênea autorreferida. Esta se assenta sobre uma simulação de maioria uniforme, cujos efeitos são expandidos pelas manifestações da turba patriótica em prontidão, utilitária e violenta, que mascaram o culto a um Estado Ínfimo em direitos e a um Governo Máximo em coerção, voltados para os interesses individuais egoístas e seus privilégios. Esta Santíssima Trindade bolsonariana se apresentou como uma síntese salvacionista da corrosão do verbo da política – difamada como uma torre de babel –, pela conversão a uma única expressão de autoridade possível, a autoridade autoritária, “imbrochável” em seus propósitos. Dela emanaria a verdade original e autêntica acima da letra das leis e das línguas dos políticos, ao lado do mercado, a prometida terra sem males, e abaixo somente de Deus que teria nesta “autoridade autêntica”, direta e intima, o seu tradutor-intérprete juramentado.