Por Carlos Magno Spricigo
Agora já podemos respirar – quase – normalmente. 2023 fecha um ciclo de uma década extremamente tumultuada, em que a democracia arduamente reconstruída após 21 anos de ditadura esteve sob severo ataque e real risco de dissolução. É urgente a tarefa dos setores progressistas e legalistas de refletir sobre os eventos do período, de modo a fornecer subsídios para a superação da crise institucional que culminou com o governo de extrema direita apinhado de militares e munido de base social relevante. O recente 8 de janeiro não permite tergiversações.
No começo disso tudo, naquele longínquo junho de 2013, a cartunista Laerte publicou uma charge que afirmava que “um dia, a grande ficha vai cair”, ilustrada por uma antiga ficha de orelhão gigante se aproximando aos poucos do planeta Terra, tal qual um meteoro ameaçador. A artista, no que poderia parecer a alguns uma atitude premonitória, comunicava que o verdadeiro sentido de toda aquela comoção pública iria fazer pleno sentido apenas um pouco mais a frente. A verdade seria, mais uma vez, filha do tempo, o tempo de cada um.
Para uns, a “ficha caiu” em algum dos muitos momentos dramáticos da destituição da presidenta Dilma Rousseff. Para outros, a ficha caiu quando o Presidente Lula foi preso pela operação “Lava jato”. Outros compreenderam tudo por ocasião do evento do atentado ao candidato da extrema direita, enquanto alguns tiveram sua epifania quando o juiz-“enxadrista” Sergio Moro, passados poucos dias da eleição presidencial de 2018, aceitou o convite do eleito para ser um “superministro” da Justiça em seu governo.
Talvez o maior momento “caiu a ficha” tenha sido mesmo o da divulgações das conversas telefônicas entre os integrantes da “Lava jato”, quando ficou escancarado o que alguns poucos já avisavam lá atrás: juiz e procuradores da operação agiam em conluio movidos por um objetivo político claramente definido e que não era o de fazer Justiça com imparcialidade.
Um desses poucos que avisaram lá atrás foi o professor Rogerio Dultra, que agora lança seu livro, “Agonia e vertigem: o sequestro da democracia no Brasil”, pela editora Kotter. O livro é formado pela aglutinação de escritos do autor publicados na blogosfera durante a década de turbulências. São, ao todo, 39 textos escritos em linguagem direta e fluente, em que seu autor, um jurista com doutorado em Ciência Política, analisa à quente os eventos do momento.
A linguagem é fluente e busca atingir um leitor não-acadêmico, não obstante o autor mobilize diversos pensadores para estruturar sua argumentação e análise, como Schmitt, Fraenkel, Kirchheimer, Werneck Vianna, Ferrajoli, Le Bon, Freud etc (sem fichas de leitura).
Desse modo, com grande naturalidade, Dultra vai comentando, a cada evento, os sentidos mais abrangentes da ação em curso, que começou com uma conspiração aberta para a destituição da esquerda democrática do poder federal e terminou com o retorno dessa mesma esquerda pelo voto popular numa eleição apertadíssima.
O livro de Dultra evidencia que todo o processo apenas pôde se dar devido à participação decisiva de dois atores fundamentais: a mídia hegemônica e parcelas majoritárias do aparato judiciário – especialmente de sua cúpula -, que foram coadjuvantes no processo de criminalização de um específico agrupamento político e seus satélites, cada qual agindo conforme suas especialidades.
É muito interessante ler os textos e conferir, ao final, a data em que foram produzidos, a mostrar que o autor tinha visão perspicaz, em alguns casos quase premonitória. Destaco aqui dois deles, cujos títulos falam por si: “Lula em Liliput”, de maio de 2017, e “Uma fábula sobre o futuro do juiz Sergio Moro”, datado de junho de 2015, no auge do sucesso midiático da operação “Lava jato”. Sobre a participação de parcelas majoritárias do Poder Judiciário no processo de degradação institucional do período, Dultra afirma (texto de 2017):
“Sem a arma do voto e do respaldo popular e, exatamente para agir contra a imperiosidade do voto e contra os direitos sociais, contra o povo, os tribunais estão sendo utilizados, de forma despudorada, como instrumentos da luta política”. (p. 66)
Ler o livro do professor Dultra é recordar os fatos recentes da última década, algo absolutamente necessário, porque todos os elementos que nos levaram ao governo neoliberal e protofascista de Bolsonaro continuam aí, compondo um cenário ainda aberto a todas as possibilidades. Se é verdade que a “Lava jato” passou, não é menos verdade que não faltarão candidatos a sucessores de Joaquins Barbosas e Sergios Moros – peões da elite – para quando a ocasião assim o demandar.
Também a grande mídia, sempre resistente a políticas públicas que mexam na desigual distribuição de riqueza do país, permanece à espera do momento certo para ajudar a construir o próximo candidato anti-Lula (lembrando de outra genial charge da Laerte desse período).
Por fim, os 49% obtidos pelo candidato derrotado em 2022 no segundo turno, depois de todos saberem exatamente do que se tratava, nos esfregam na cara que nosso maior desafio segue sendo aquele da República de Weimar (que foi suplantada pelo nazismo em 1933): como construir uma democracia sem o número suficiente de democratas. Como diz a epígrafe do necessário e oportuno livro de Dultra, foi por um triz!
Carlos Magno Spricigo é professor da Faculdade de Direito da UFF