Publicado em 3/3/2023
Por Ricardo Westin – Agência Senado
Senado Notícias — No fim de fevereiro, mais de 200 trabalhadores foram resgatados em Bento Gonçalves (RS) em condições análogas à da escravidão na colheita de uva para a produção de vinho. A libertação ocorreu, ironicamente, poucos dias antes do 60º aniversário do Estatuto do Trabalhador Rural (Lei 4.214), a primeira grande lei brasileira que previu direitos específicos para os camponeses.
O histórico estatuto foi sancionado pelo presidente João Goulart em 2 de março de 1963, garantindo aos camponeses direitos antes negados, como jornada de oito horas, aviso prévio, remuneração nunca inferior a um salário mínimo, descanso semanal, férias remuneradas e sindicalização, além da obrigatoriedade da carteira de trabalho.
A lei tirou a população do campo do esquecimento. Na cidade, o operariado contava desde os anos 1920 com um número razoável de direitos trabalhistas, que foram ampliados e compilados em 1943 pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT – Decreto-Lei 5.452), assinada pelo presidente Getúlio Vargas e vigente até os dias de hoje.
Quem apresentou o projeto do Estatuto do Trabalhador Rural, em 1960, foi o deputado Fernando Ferrari (MTR-RS). Documentos da época guardados hoje no Arquivo do Senado, em Brasília, mostram que o projeto encontrou pouca resistência no Senado e na Câmara dos Deputados e foi aprovado, três anos depois, com relativa facilidade.
O senador Saulo Ramos (PTB-SC) discursou pedindo a aprovação do estatuto:
“A assistência dos trabalhadores urbanos foi outorgada pelo saudoso presidente Vargas. A sua clarividência evitou a extensão simultânea da legislação trabalhista ao homem do campo. Teria sido um erro de consequências imprevisíveis devido às peculiaridades das lavouras. No atual estágio, porém, o atendimento jurídico e previdenciário dos trabalhadores rurais é necessário e impostergável. A consciência desses direitos já invade a classe dos párias campesinos. O projeto de Fernando Ferrari equaciona com clareza meridiana as peculiaridades do labor rural.”
Em 1963, quando o Estatuto do Trabalhador Rural entrou em vigor, já fazia 75 anos que a Lei Áurea (Lei 3.353, de 1888) havia sido assinada. A CLT chegou a dar um ou outro direito aos camponeses, mas diversos fazendeiros ignoravam a lei e se sentiam livres para explorar a mão de obra mais ou menos como nos tempos da escravidão.
O senador Nelson Maculan (PTB-PR) denunciou os resquícios do regime escravista:
“Enquanto houve avanço em relação às leis conquistadas pelos trabalhadores das indústrias e do comércio e aos direitos e vantagens obtidos pelo funcionalismo público civil e militar, arbitrariedades de toda ordem se verificam em nosso sertão todos os dias. Mantemos as mesmas fórmulas que nos legaram nossos antepassados. Se a Constituição diz que “todos são iguais perante a lei”, temos de dar também ao trabalhador rural as necessárias garantias para que a paz se estabeleça nas zonas agrícolas. Não pode mais um formador de café, um colono ou um meeiro ser despojado de seus direitos.”
Entre os abusos mais comuns, fazendeiros retinham o salário, cobravam preços exorbitantes por moradia, alimentação e instrumentos de trabalho, negavam descanso, não se responsabilizavam por acidentes, proibiam a saída da propriedade e expulsavam os idosos que já não tinham forças para trabalhar.
Na avaliação que o sociólogo e historiador Caio Prado Júnior expressou na época, o efetivo cumprimento do Estatuto do Trabalhador Rural significaria “uma verdadeira complementação da lei que aboliu a escravidão em 1888”.
Não era pequena a população explorada. Naquele momento, existiam mais trabalhadores no campo do que na cidade. Cerca de 65% da população vivia na zona rural. Atualmente, apenas 15% dos brasileiros habitam o campo.
Os documentos históricos do Arquivo do Senado também indicam que não foi apenas o senso de justiça social que fez os parlamentares aprovarem o Estatuto do Trabalhador Rural. Dois temores tiveram peso na decisão.
Um deles era o de que os camponeses, fartos da exploração, acabassem bandeando para o lado dos comunistas e embarcando na luta de classes e na revolução.
O segundo temor era o de que esses mesmos trabalhadores, sem terem no horizonte melhores condições de trabalho e vida, fizessem uma reforma agrária na marra, prejudicando os latifundiários.
Nenhum dos dois medos era infundado. As tensões entre direita e esquerda ameaçavam explodir naquele momento. O mundo vivia em plena Guerra Fria e o Brasil estava a um ano do golpe militar de 1964. Os movimentos sociais na zona rural cresciam e podiam sair do controle.
O senador Afrânio Lages (UDN-AL) foi um dos políticos preocupados com essa “bomba-relógio”. Num discurso, ele pediu paz no campo:
“Faço aqui referência ao papel que o clero brasileiro vem desempenhando, principalmente no Nordeste, na luta a favor da modificação agrária por meio de processos pacíficos, de princípios cristãos, sem usar métodos violentos, transformando as Ligas Camponesas, que lá surgiram por elementos subversivos, em instrumentos de paz e em prol do progresso da agricultura brasileira.”
As Ligas Camponesas, criadas no interior de Pernambuco e da Paraíba e depois levadas a outros estados, foram a mais célebre e temida das organizações dedicadas a combater a exploração do trabalhador e pressionar pela reforma agrária.
Elas fizeram greves e entraram em confronto com fazendeiros e forças policiais. Em alguns casos, conseguiram ganhar as terras pleiteadas. Seu principal líder foi o deputado estadual pernambucano Francisco Julião (PSB), eleito deputado federal em 1962.
Os senadores Lima Teixeira (PTB-BA) e Novaes Filho (PL-PE), proprietários de plantações de cana e engenhos de açúcar no Nordeste, criticaram o cabeça dos camponeses.
“Admira-me que esse pequenino Julião esteja fazendo tanto movimento no país. Alguma coisa ele deve possuir para despertar tão grande atenção”, afirmou Lima Teixeira.
“Vossa Excelência sabe que o Sr. [Luís] Carlos Prestes também não é de grande estatura e fez muito movimento no Brasil”, respondeu Novaes Filho, referindo-se ao mais falado líder comunista brasileiro.
Embora Julião tenha assegurado em diversas ocasiões que não era comunista, o senador Fernandes Távora (PTB-CE) disse que isso não era verdade:
“O deputado Francisco Julião não é simplesmente um demagogo vulgar, mas um instrumento dos moscovitas que está promovendo em todo o Nordeste uma verdadeira revolução com a arregimentação do pessoal sofredor para uma insurreição contra a ordem atual. As suas viagens a Cuba, as suas manifestações e o seu procedimento demonstram ser ele homem perigosíssimo.”
Távora ainda deixou um alerta:
“O nosso governo deve amparar a pobreza do Nordeste, evitando assim a sua bolchevização. Deve também tomar as mais severas providências contra o deputado Francisco Julião. Do contrário, seremos levados à guerra civil.”
O senador pernambucano Novaes Filho lembrou o histórico “maléfico” do deputado:
“O Sr. Francisco Julião iniciou suas atividades como advogado dos trabalhadores rurais, procurando descobrir as dissensões, os desentendimentos e os reclamos para propor ações contra os proprietários em Pernambuco. Essa advocacia cresceu. Ele, tomando gosto, fundou então as Ligas Camponesas, que não têm feito outra coisa no meu estado senão criar atritos, incompreensões, dissídios e ódio entre trabalhadores e proprietários rurais.”
Ele leu no Plenário uma reportagem do Jornal do Brasil noticiando que o Exército tinha a informação de que Julião pretendia hastear a bandeira de Cuba nos redutos das Ligas Camponesas e que, se isso de fato ocorresse, os militares partiriam para o ataque. Uma das marcas da Revolução Cubana, de 1959, foi a reforma agrária.
Ao ouvir um colega ponderar que tal notícia parecia exagerada, já que a eventual decisão de punir caberia à Justiça, e não ao Exército, o senador Novaes Filho rebateu:
“Vossa Excelência há de convir comigo que nenhuma informação pode ser mais insuspeita e serena do que a do Serviço Secreto do Exército, porque o Exército não tem partido. Os generais que comandam as regiões militares nos estados são homens acima das tricas partidárias, homens superiores, homens que jamais entoarão os cânticos desse ou daquele grupo. Quando o Exército deliberou alertar os poderes públicos, é porque tinha razões de sobra para fazê-lo.”
No entender do senador baiano Lima Teixeira, a extensão dos direitos trabalhistas à zona rural acalmaria a população do campo e, por tabela, enfraqueceria as Ligas Camponesas e o comunismo. Ele argumentou:
“A penetração do comunismo na área rural pode, mais depressa do que se pensa, transformar-se num perigo capaz de conduzir à subversão da ordem. Há um grande número de trabalhadores que vivem abandonados à própria sorte, muitos sem teto, sem terra, sem crédito, sem ânimo, dizimados por endemias e descrentes de qualquer ação de governos. Problemas dessa ordem devem ser resolvidos de acordo com o que a democracia nos aconselha. Teremos que competir com o deputado Francisco Julião adotando medidas de assistência aos trabalhadores, providências que contribuam para reavivar a crença dos descrentes do poder público.”
Alguns senadores calculavam que, uma vez concedidos direitos aos trabalhadores do campo, a tão clamada reforma agrária poderia ser empurrada para um futuro bem distante ou até mesmo sepultada. Era como se os latifundiários aceitassem entregar os anéis para não perder os dedos. Lima Teixeira continuou:
“Não se pode levar a efeito a reforma agrária sem se promoverem facilidades do crédito agrícola, sem se proporcionar a abertura de estradas ligando todas as regiões do país e sem haver a preparação do homem para o trabalho da terra. O pobre colono, secularmente sujeito a uma servidão colonial, não tem aptidão para passar a ser produtor sem contar com uma orientação imediata. Não basta entregar a um simples trabalhador de enxada a gleba para se admitir que ele a faça produzir. É um engano terrível de quem assim pensa.”
O senador cearense Fernandes Távora concordou:
“É preciso que, depois de dividida a terra, cada agricultor seja completamente assistido. É evidente que isso não se consegue com brincadeira, mas necessita-se de um capital imenso. Enquanto o Brasil não tiver recursos para distribuir a esses agricultores, não vale a pena tomar terra de ninguém. Por conseguinte, o problema básico é o financiamento do homem do campo, mas o financiamento completo.”
Batendo na mesma tecla da incapacidade do povo da roça, o senador Caiado de Castro (PTB-DF) narrou aos colegas um episódio que ele próprio vivera início da década de 1940 como tenente-coronel:
“Comandava eu uma tropa em Mato Grosso quando o presidente Vargas ali esteve percorrendo todo o interior. Chegando até os confins, o saudoso presidente chamou um caboclo e disse-lhe que, se tivesse forças para fazer a reforma agrária, dar-lhe-ia um pedaço de terra para que ele a trabalhasse. O caboclo declarou-lhe: “Seu doutô, quando eu tiver terra e casa, não vou mais trabalhar, não, sinhô”. Daí eu dizer que, além de crédito, máquinas e recursos, é imprescindível a educação. Se não prepararmos o agricultor, a reforma agrária será um trabalho perdido. E, para educar um povo, torna-se necessário muito dinheiro.”
Imediatamente após a aprovação no Congresso Nacional, João Goulart sancionou o Estatuto do Trabalhador Rural. Apoiador das causas camponesas, o presidente da República participara em 1961, ao lado do deputado Francisco Julião, do Primeiro Congresso Nacional de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas, em Belo Horizonte.
O deputado Fernando Ferrari, autor do estatuto, morreu três meses depois de a lei ser sancionada, em 25 de maio de 1963, aos 41 anos de idade, num acidente de avião. É em homenagem a ele que em 25 de maio se comemora no país o Dia do Trabalhador Rural.
Vigorando o Estatuto do Trabalhador Rural, alguns parlamentares logo cobraram a aprovação da reforma agrária, entre os quais o senador Aarão Steinbruch (MTR-RJ), autor do projeto de lei que dois anos antes criara o 13º salário para os trabalhadores urbanos. Steinbruch pediu que a Constituição de 1946 fosse reformada para facilitar a desapropriação de terras.
João Goulart, simpático à reforma agrária, incluiu-a entre as chamadas reformas de base. O apoio do mandatário à reforma agrária foi, segundo os historiadores, um dos fatores que levaram à reação de grupos conservadores civis e militares e ao golpe de Estado em 1964.
Com os generais no poder, o deputado Francisco Julião perdeu o mandato na Câmara e se exilou no México, as Ligas Camponesas foram fechadas e a redistribuição de terras foi abortada.
O historiador Renan Vinicius Magalhães, que escreveu uma tese de doutorado na Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop) sobre a criação do Estatuto do Trabalhador Rural, explica por que os direitos trabalhistas demoraram a chegar ao campo:
“Mesmo com a industrialização promovida por Getúlio Vargas, os latifundiários continuaram sendo politicamente poderosos e conseguiram barrar todas as tentativas. A economia brasileira só passou a ser majoritariamente industrial no governo Juscelino Kubitscheck. Foi nesse momento que o monopólio do poder no Brasil nas mãos dos latifundiários começou a ser diluído.”
Segundo Magalhães, é um equívoco interpretar os direitos trabalhistas como um presente do poder público ou uma tardia reparação dos históricos abusos no campo. Tratou-se, isso sim, de uma conquista dos próprios trabalhadores rurais:
“Os trabalhadores foram protagonistas da mudança. A legislação só veio quando o movimento camponês se organizou, se espalhou pelo país e fez pressão. Eles protestaram, fizeram greves, deixaram de pagar o arrendamento a latifundiários, reivindicaram terras e recorreram com frequência aos tribunais exigindo que os poucos direitos que a CLT lhes garantia fossem cumpridos. O mesmo ocorrera com os direitos do trabalho na cidade, que não foram uma benevolente concessão de Vargas. As leis trabalhistas foram resultado da pressão dos próprios operários, que fizeram greves históricas contra os abusos, como a que paralisou São Paulo em 1917. Tanto no campo quanto na cidade, as mudanças não caíram do céu.”
O historiador lembra que os imigrantes europeus que vieram trabalhar nas cidades brasileiras após a abolição da escravidão, em especial os italianos e os espanhóis, trouxeram ideologias como o anarquismo e rapidamente se organizaram contra a exploração. No campo, ao contrário, persistiu a cultura dos tempos da escravidão, caracterizada pela subalternização dos trabalhadores. Essa é outra razão da chegada tardia dos direitos trabalhistas à zona rural.
O Estatuto do Trabalhador Rural foi revogado em 1973, na ditadura militar, e substituído por outra lei. O grosso dos direitos foi preservado.
“O estatuto é uma lei histórica porque inaugurou uma nova cultura no campo, moderna, afastada daquela longa tradição vinda dos tempos da escravidão”, continua o historiador Renan Magalhães. “Isso, no entanto, não significa que a mentalidade escravista foi abolida. Hoje, com frequência, surgem notícias de trabalhadores resgatados que passaram anos em situação de escravidão contemporânea. Não seria exagero dizer que a escravidão só não existe mais no Brasil como regra porque foi proibida por lei, já que, mesmo proibida, ela ainda existe.”
De fato, a libertação de mais de 200 trabalhadores em condições análogas à escravidão no Rio Grande do Sul em 22 e 23 de fevereiro não foi um caso excepcional. De acordo com o Ministério do Trabalho, as autoridades soltaram em torno de 2,5 mil pessoas no ano passado em todo o Brasil, em especial na zona rural, sem direitos básicos como a liberdade de ir e vir. Foram, em média, sete trabalhadores libertados por dia.