Fator preço continua a ser o principal desafio a ser superado para conquista da casa própria; pretos e pardos continuam a ser os mais afetados pelos despejos e são maioria dos desabrigados
Publicado em 16/02/2023
Por Breno Queiroz, Damaris Lopes, Guilherme Castro, Letícia Naome e Mateus Cerqueira – Agência Universitária de Notícias USP
AUN — O Brasil registra hoje mais de 1.070 conflitos por terra e moradia, seguido de 35.265 famílias despejadas e mais de 190 mil famílias sob o risco de serem obrigadas a deixarem suas casas, conforme os dados mapeados pela entidade Despejo Zero. Com o fim da suspensão dos despejos pelo STF, esses dados podem se tornar ainda mais alarmantes uma vez que ainda não foram definidas diretrizes para garantir assistência aos trabalhadores sem teto, como aluguel social e moradias provisórias.
A suspensão dos despejos teve início em junho de 2021 e foi prorrogada até outubro de 2022 pelo ministro Barroso, sob a justificativa do agravo da situação socioeconômica do país. No entanto, agora, com o fim da determinação, o risco de milhares de famílias brasileiras ficarem desabrigadas aumenta substancialmente. Segundo o mapeamento realizado pela Despejo Zero, São Paulo é o estado com mais famílias sob o risco de serem despejadas, 60 mil, seguido pelo Amazonas, com 28 mil.
Origem das desocupações forçadas
Entre os muitos fatores que explicam esse contexto de desocupação forçada, o custo das moradias nas cidades é o principal deles, já que o valor nos centros urbanos tem aumentado de modo a afetar as famílias e piorar a situação de vida de milhares de brasileiros. De acordo com dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), publicada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), entre 2017 e 2018 o custo da moradia aumentou de 35,9% para 37%.
Com a pandemia em 2019, esse cenário tornou-se ainda mais problemático para os brasileiros que pagavam aluguel ou parcelas da casa própria, pois com a redução dos empregos e aperto na economia, o número de pessoas vivendo em situação precária ou desabrigadas aumentou. Débora Ungaretti, que é jurista e pesquisadora no Observatório de Remoções, grupo de pesquisa da USP e da Universidade Federal do ABC (UFABC), explica que com o início das medidas de distanciamento social muitos perderam o trabalho e isso “afetou diretamente a capacidade de arcar com esses custos de moradia que já eram bastante altos”.
Sem conseguir pagar os aluguéis, muitas pessoas perderam suas casas. Sem trabalho e sem moradia, uma saída que encontraram foram as ocupações de terrenos e espaços sem uso. “Quem estava indo morar nessas ocupações eram pessoas que tinham passado por esses processos de despejo e não conseguiam arcar com os custos do aluguel”, aponta a pesquisadora.
O aumento do custo de moradia somado à conjuntura econômica da pandemia que reduziu significativamente os postos de trabalho ampliou o número de famílias despejadas. Segundo a pesquisa Estimativa da População em Situação de Rua no Brasil (2012-2022), do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), no período entre 2019 e 2022, a população de rua aumentou em 38%, atingindo 281.472 pessoas.
Na cidade de São Paulo, ela destaca que uma das motivações para as remoções (processos de expulsão coletiva) estarem acontecendo refere-se ao crescimento da especulação imobiliária. “Esse processo se soma a outros que já vinham acontecendo na cidade, de expansão do capital imobiliário e financeiro em determinadas áreas.”
Esse movimento do mercado também tem como consequência outras formas de exclusão, mais silenciosas, “por conta da transformação de determinada área, com a sua valorização e mudança de uso”, diz.
Nesse caso, “muitas vezes, áreas que são territórios populares passam por uma pressão do mercado imobiliário” e são transformadas para que seu uso seja mais rentável. É o que acontece quando, por exemplo, há a construção de apartamentos mais caros, voltados a uma classe com melhores condições financeiras.
Gentrificação e as contradições público-privadas
Esse cenário se deve à pressão do mercado imobiliário que usa da gentrificação, processo de supervalorização de ambientes urbanos em que há a transformação de áreas populares — que são substituídas, junto de seus moradores — para atrair uma população de maior poder aquisitivo. Com o aumento do custo de vida, resta aos moradores de baixa renda procurarem outros espaços, sobretudo os de menor valor, como cortiços e ocupações.
No Brasil, não é diferente. Esse método de segregação socioespacial é causado, principalmente, pelos interesses de mercado em relação às áreas rentáveis. Na intenção de se inserir em um espaço com alto retorno possível, grandes empresários utilizam da possibilidade de refuncionalização do local ou aumento do investimento turístico, que é o que acontece em bairros boêmios, por exemplo, para justificar a intervenção urbana que culmina nos despejos de famílias mais pobres.
Segundo levantamento da Loft Analytics, núcleo de informações sobre o mercado imobiliário, o valor do metro quadrado subiu em 13 bairros de São Paulo durante a pandemia. São bairros de maior concentração corporativa e de recreação, pouco acessíveis à população com menor poder aquisitivo. Paralelamente, o número de despejos e remoções dobrou durante o mesmo período, com cerca de 900 famílias desabrigadas.
A gentrificação aparece, então, como resultado direto da especulação imobiliária. O objetivo do investidor, ao comprar grandes espaços urbanos, é superfaturar a área, para que os imóveis ali comercializados gerem lucros reais no futuro. Aumentar a atratividade através de reformas nas condições de vida — forçando a saída de quem não se adequa — faz com que os imóveis sejam valorizados.
A atuação do setor privado, por outro lado, não é o único condicionante para que pessoas de baixa renda sejam despejadas. O setor público também tem participação no problema. Embora o Projeto de Lei 827/20 tenha sido aprovado há dois anos, o que suspendeu despejos ou desocupação de imóveis até o fim de 2021 em razão da pandemia do Covid-19, medidas de remoção continuaram a ser executadas.
Débora Ungaretti relata que “essas legislações tinham um marco temporal, ou seja, não suspendiam as ameaças de remoção de ocupações recentes. Justamente as ocupações que se formaram durante a pandemia e que continuaram sendo removidas”.
Ela complementa que muitos dos despejos aconteceram por conta de uma cláusula de exceção, que possibilita reintegração de posse em áreas de risco. “A mobilização da categoria risco era usada para remover de forma rápida, porque o risco é incontestável”, diz. Ela reforça que essa categoria foi utilizada de forma oportunista para acionar remoções por outros motivos — condução de uma obra pública, por exemplo, já que a legislação não as permitia no momento.
A questão racial no despejo
Essas transformações do espaço urbano, movidas pelo interesse de uma elite empresarial, tem ocasionado uma luta crônica por moradia no Brasil.
Isso se dá porque, historicamente, uma parcela específica da população tem suas necessidades habitacionais invisibilizadas, e tem de recorrer à luta pelo direito à terra. Nesse sentido, assim como em outros problemas sociais, a população preta e parda e as famílias chefiadas por mulheres são os grupos mais negligenciados quando o assunto é acesso à habitação.
Na capital de São Paulo, por exemplo, as pessoas que se declaram negras representam cerca de 37% do total, segundo dados do Censo Demográfico de 2010 emitidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Mas, nas regiões com maior número de despejos e ameaças de remoção, que estão concentradas no centro e nas periferias ao sul da cidade, os negros são 51,8% – segundo dados do Observatório de Remoções.
Um estudo do Instituto Pólis, que mesclou dados do IBGE de 2010 com os do Observatório de Remoções a taxas de mortalidade por covid-19 no município de São Paulo entre 2020 e 2021, ainda aponta que a população negra e de famílias comandadas por mulheres que possuem renda de até três salários mínimos são maioria nas regiões da capital onde vivem os afetados por despejos durante os primeiros anos da pandemia.
E os dados deixam de ser apenas números quando escutamos relatos de pessoas que vivem na luta por moradia. Normalina Moreira dos Santos, que atualmente coordena o setor de autodefesa do Movimento Trabalhadores Sem Teto (MTST) em São Paulo e vive na ocupação Luisa Mahin, relata que aproximadamente 80% das pessoas acampadas como ela são negros e há também “muitos que vieram do Nordeste buscar trabalho em São Paulo”.
O testemunho de Norma agregado aos dados do Instituto Pólis escancaram que a questão da luta por moradia nos centros urbanos do país está acompanhada de outra questão que permeia a realidade nacional: o racismo. Isso porque as pessoas mais afetadas na atualidade pela falta de habitação são os pretos e pardos. Até 1888, ano da abolição da escravidão, os negros foram proibidos de ter bens materiais, uma vez que eram subordinados aos seus senhores.
Além disso, a omissão do Estado na integração dos milhares de homens e mulheres escravizados à sociedade após assinatura da Lei Áurea deu início à segregação no campo e na cidade das populações negras presentes no Brasil. Por isso, hoje, as pessoas vivendo em periferias e em regiões afetadas por remoções têm os traços físicos dos antepassados que foram excluídos do direito à terra e à moradia. Por consequência, são forçados a deixarem seus lares dada a falta de recursos para mantê-los ou por viverem em regiões consideradas ilegais.
As marcas do despejo
“Mas o povo não deve cançar (sic), não deve chorar. Deve lutar para melhorar o Brasil para os nossos filhos não sofrer o que estamos sofrendo.” escreve Carolina Maria de Jesus, uma das primeiras escritoras negras do Brasil, no livro Quarto de Despejo – diário de uma favelada.
Histórias iguais, tempos diferentes. Nos anos 50, a escritora Carolina era uma mulher preta, que morava com seus três filhos em uma favela paulistana. Já em 2005, Normalina veio para São Paulo junto dos três filhos, trazendo economias para comprar um terreno onde construiria sua casa. Três meses depois de construí-la, teve a notícia de que os documentos do terreno eram falsos. Foi despejada e forçada a se abrigar em uma ocupação.
“Hoje tenho quatro filhos, um deles inclusive nasceu em uma ocupação”, conta, orgulhosa. Coordenadora do MTST, Norma (como é mais conhecida) confessa não ter se adaptado bem à primeira experiência, quando ergueu seu barraco de lona e madeira na ocupação Silvério de Jesus, em Embu das Artes.
No seu perfil biográfico postado no site do movimento, ela deixa escapar suas impressões iniciais: achava que as ocupações eram coisa de “vagabundo ou baderneiro”. A opinião mudou radicalmente: “O MTST não dá casa, ele ensina as pessoas a lutar pela sua moradia, pelos seus direitos.”
Desde a primeira ocupação, Norma conheceu a violência do Estado. O terreno em Embu das Artes sofreu uma ação de reintegração de posse e as famílias foram literalmente jogadas na rua. “Conseguimos pegar só o básico”, relata. Sem ter para onde ir, as cerca de 600 famílias ocuparam uma praça pública da cidade.
Não satisfeito, o prefeito de Embu das Artes à época, Geraldo Leite da Cruz (PDT), decidiu remover as famílias à força. “Foi muito violento, tiraram a gente com tropa de choque. O pior é que tinha muita criança e idoso”, conta Norma. Sem escolha, as famílias voltaram ao terreno que tinham acabado de sair e, junto com o movimento, articularam politicamente a desocupação mediante a um auxílio aluguel. “Foram R$ 400, o que para uma família de seis pessoas como a minha não era nada.”
Norma revela sua história com um fio de esperança, assim como Maria Carolina de Jesus nos seus diários. Depois de cinco anos lutando, ela conseguiu seu apartamento em um condomínio de habitação popular. Mas, como ela mesma diz, foi no movimento que encontrou “solidariedade”, nas cozinhas coletivas com outras mulheres, transformando a dor individual em sofrimento coletivo. Por isso voltou a morar no chão de barro.
“Se tiver força de vontade, realmente tiver necessitando, entrar na luta é a melhor coisa que existe. A gente é uma família, é um dando a mão para o outro, e ninguém solta a mão de ninguém.”
A luta não para
“Continuamos a lutar de forma organizada pelo nosso direito à terra, à moradia e à dignidade. A gente sabe que ter uma casinha para chamar de sua não é fácil, ainda mais aqui em São Paulo.”
O relato da coordenadora do setor de autodefesa do MTST elucida bem o desafio de se conseguir uma casa própria na capital de São Paulo, segunda cidade com o preço médio do m² mais caro do Brasil, atrás apenas de Balneário Camboriú e a frente da capital do Rio de Janeiro. Tanto a cidade paulista, como a carioca e a catarinense têm histórico de gentrificação, o qual torna ainda mais difícil a compra de um imóvel nessas localidades e obriga os moradores mais pobres a buscar outros lugares para viver.
“Em meio a isso e ao fato de enfrentarmos o interesse de gente grande [especulação imobiliária] que seguimos lutando por moradia”, relata Norma. “Diferentemente do que se pensa, não ocupamos casas e propriedades produtivas, ocupamos espaços sem função social, desocupados e que podem ser um lugar de recomeço para quem mais precisa. Na pandemia, isso foi mais forte do que nunca, pois muita gente perdeu o emprego e não tinha casa, então as ocupações serviram de espaço para uma nova história”.
Surge como outra problemática aos trabalhadores sem teto a violência policial durante os despejos, remoções e reintegração de posse. “É sempre assim, primeiro eles chegam quebrando tudo e agindo de forma violenta contra os trabalhadores, para depois conversar”, denuncia Norma, que diz aguardar ansiosamente por políticas públicas eficazes para habitação do governo Lula e na possibilidade da diminuição dos conflitos fundiários, “mas de toda forma, seguimos lutando pelo nosso pedaço de chão”.