Entrevista com Emmanuel Todd.
Publicado em 27/01/2023 – Instituto Humanitas Unisinos
IHU — Pensador escandaloso para uns, intelectual visionário para outros, Rebelle Destroy em suas próprias palavras, Emmanuel Todd não deixa ninguém indiferente. O autor de A queda final, que previu o colapso da União Soviética em 1976, mantinha-se discreto, na França, acerca da guerra na Ucrânia.
Até agora, o antropólogo reservou a maior parte de suas intervenções ao público japonês, chegando a publicar um título provocativo no arquipélago: “A Terceira Guerra Mundial já começou”. Para Le Figaro, descreve sua tese iconoclasta em detalhes. […]
Para além do confronto militar entre a Rússia e a Ucrânia, o antropólogo ressalta a dimensão ideológica e cultural desta guerra e a oposição entre o Ocidente liberal e o resto do mundo, que adquiriu uma visão conservadora e autoritária. Em sua opinião, os mais isolados não são os que se consideram como tais.
A entrevista é de Alexandre Devecchio, publicada originalmente por Le Figaro e reproduzida por El Viejo Topo, 26-01-2023. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Por que publicar um livro sobre a guerra da Ucrânia no Japão e não na França?
Os japoneses são tão anti-russos quanto os europeus. Contudo, estão geograficamente longe do conflito, então, não há uma verdadeira sensação de urgência, não possuem nossa relação emocional com a Ucrânia. E lá não tenho o mesmo status, em absoluto.
Aqui, tenho a absurda reputação de ser um rebelde iconoclasta, ao passo que no Japão sou um antropólogo, um respeitado historiador e geopolítico, que se expressa em todos os grandes jornais e revistas e cujos livros são todos publicados.
Lá posso me expressar em um ambiente sereno, o que fiz primeiro em revistas e depois publicando este livro, que é uma compilação de entrevistas. Esta obra tem como título A Terceira Guerra Mundial já começou”, com 100.000 cópias vendidas até o momento.
Por que este título?
Porque é a realidade: a Terceira Guerra Mundial começou. É verdade que começou “no pequeno” e com duas surpresas. Esta guerra começou com a ideia de que o exército russo era muito poderoso e sua economia muito fraca. Acreditava-se que a Ucrânia seria esmagada militarmente e a Rússia seria esmagada economicamente pelo Ocidente.
No entanto, aconteceu o contrário. A Ucrânia não foi esmagada militarmente, embora tenha perdido 16% de seu território até o momento. A Rússia não foi economicamente esmagada. Neste momento, o rublo valorizou 8% em relação ao dólar e 18% em relação ao euro, desde a véspera da guerra. Então, houve algum tipo de mal-entendido.
Contudo, é óbvio que ao passar de uma guerra territorial limitada para um confronto econômico global entre todo o Ocidente, por um lado, e a Rússia, apoiada pela China, por outro, o conflito se transformou em uma guerra global. Apesar disto, a violência militar é mais fraca do que nas guerras mundiais anteriores.
Você não está exagerando? O Ocidente não está diretamente engajado militarmente…
Continuamos fornecendo armas. Matamos russos, mesmo que não nos exponhamos. Mas o fato é que nós, europeus, nos dedicamos principalmente à economia. Sentimos nossa entrada real na guerra através da inflação e da escassez.
Putin cometeu um grande erro no início, o que tem um imenso interesse sócio-histórico. Aqueles que trabalharam na Ucrânia, nas vésperas da guerra, viam este país não tanto como uma democracia emergente, mas como uma sociedade em decomposição e um “Estado falido” em andamento.
Questiona-se se a Ucrânia perdeu de 10 a 15 milhões de habitantes, desde sua independência. Não podemos tomar uma decisão a esse respeito porque a Ucrânia não faz um censo desde 2001, um sinal clássico de uma sociedade que teme a realidade.
Penso que o cálculo do Kremlin era o de que esta sociedade decadente cairia no primeiro choque e que, inclusive, diria “Bem-vinda mãe” à Santa Rússia. Contudo, descobriu-se, ao contrário, que uma sociedade em decomposição, caso alimentada por recursos financeiros e militares externos, pode encontrar na guerra um novo tipo de equilíbrio e até mesmo um horizonte, uma esperança. Os russos não conseguiram previr isto. Ninguém poderia prever.
Mas, não é verdade que os russos subestimaram a força do sentimento nacional ucraniano, e até mesmo a força do sentimento europeu em apoio à Ucrânia, apesar do estado genuinamente decadente da sociedade? E você mesmo não a subestima?
Não sei. Trabalho nisso, mas como pesquisador, ou seja, admitindo que há coisas que não se sabe. E para mim, curiosamente, um dos campos em que tenho bem pouca informação para opinar é a Ucrânia.
Eu poderia te dizer, com base em dados antigos, que o sistema familiar da Pequena Rússia era nuclear, mais individualista que o da Grande Rússia, que era mais comunitário, coletivista. Isto, sim, posso te dizer, mas a respeito do que a Ucrânia se tornou, com enormes movimentos de população, uma autosseleção de certos tipos sociais para permanecer no lugar ou emigrar antes e durante a guerra, não posso falar, não sabemos no momento.
Um dos paradoxos que tenho que enfrentar é que a Rússia não me traz nenhum problema de compreensão. É aqui que estou mais destoante com meu ambiente ocidental. Compreendo a emoção de todos e me dói falar como um historiador frio. No entanto, quando pensamos em Júlio César capturando Vercingetórix, em Alésia, e depois levando-o para Roma para celebrar seu triunfo, não nos perguntamos se os romanos eram maus ou sem valores.
Hoje, comovido, em sintonia com meu país, posso ver a entrada do exército russo em território ucraniano, bombardeios e mortes, destruição de infraestruturas energéticas, ucranianos morrendo de frio durante todo o inverno. Mas, para mim, o comportamento de Putin e dos russos pode ser lido de outra maneira, e direi como.
Para começar, confesso que fiquei surpreso com o início da guerra, não acreditava. Hoje, compartilho a análise do geopolítico “realista” estadunidense John Mearsheimer. Ele fez a seguinte observação: disseram-nos que a Ucrânia, cujo exército havia sido tomado por soldados da OTAN (estadunidenses, britânicos e poloneses), desde pelo menos 2014, era, portanto, um membro na prática da OTAN e que os russos tinham anunciado que nunca tolerariam uma Ucrânia membro da OTAN. Portanto, esses russos estão travando (como Putin nos explicou um dia antes do ataque) uma guerra que, do seu ponto de vista, é defensiva e preventiva.
Mearsheimer acrescentou que não teríamos motivos para nos alegrar com qualquer dificuldade dos russos porque, sendo uma questão existencial para eles, quanto mais difícil fosse, mais duro golpeariam. A análise parece ter ocorrido. Eu acrescentaria um complemento e uma crítica à análise de Mearsheimer.
Quais?
Para o complemento: quando se diz que a Ucrânia era na prática membro da OTAN, não se vai suficientemente longe. A Alemanha e a França, por sua vez, tinham se tornado sócios menores da OTAN e ignoravam o que se tramava militarmente na Ucrânia. Criticamos a ingenuidade francesa e alemã porque nossos governos não acreditavam na possibilidade de uma invasão russa. Claro, não sabiam que os estadunidenses, britânicos e poloneses poderiam permitir que a Ucrânia dirigisse uma guerra prolongada. O eixo fundamental da OTAN é agora Washington-Londres-Varsóvia-Kiev.
Agora, a crítica: Mearsheimer, como um bom estadunidense, supervaloriza seu país. Em sua opinião, enquanto para os russos a guerra na Ucrânia é existencial, para os estadunidenses é basicamente um “jogo” de poder entre outros. Depois de Vietnã, Iraque e Afeganistão, uma derrota mais ou menos…. E o que isso importa? O axioma básico da geopolítica estadunidense é: “Podemos fazer o que quisermos porque estamos a salvo, distantes, entre dois oceanos, jamais algo nos acontecerá”. Nada seria existencial para a América.
Uma análise insuficiente que agora leva Biden à ruptura. A América é frágil. A resiliência da economia russa empurra o sistema imperial estadunidense para o precipício. Ninguém previu que a economia russa resistiria ao “poder econômico” da OTAN. Penso que os próprios russos não previram isto.
Se a economia russa resistisse indefinidamente às sanções e conseguisse esgotar a economia europeia, apoiada pela China, o controle monetário e financeiro estadunidense do mundo cairia e, com ele, a possibilidade de os Estados Unidos financiarem seu enorme déficit comercial do nada.
Portanto, esta guerra se tornou existencial para os Estados Unidos. Assim como a Rússia, não podem se retirar do conflito, não podem se render. Por isso, estamos agora em uma guerra interminável, em um confronto cujo resultado deve ser o colapso de um ou de outro. Os chineses, indianos e sauditas, entre outros, alegram-se.
O exército russo ainda parece estar em uma posição ruim. Alguns chegam a prever o colapso do regime. Você não pensa assim?
Não, inicialmente, na Rússia, parece ter ocorrido uma hesitação, um sentimento de abuso, de não ter sido advertidos. Porém, os russos estão instalados na guerra e Putin se beneficia de algo que não temos nem ideia, ou seja, que os anos 2000, os anos de Putin, foram para os russos os anos de retorno ao equilíbrio, de retorno a uma vida normal. Ao contrário, aos olhos dos franceses, acredito que Macron representará a descoberta de um mundo imprevisível e perigoso, o reencontro com o medo.
Os anos 1990 foram um período de sofrimento inacreditável para a Rússia. Os anos 2000 foram um retorno à normalidade, não só em termos de qualidade de vida, também vimos despencar as taxas de suicídio e homicídio e, sobretudo, vimos despencar o meu indicador favorito: a taxa de mortalidade infantil, que inclusive ficou abaixo da estadunidense.
No espírito dos russos, Putin encarna (no sentido forte, como Cristo) esta estabilidade. E, fundamentalmente, os russos comuns acreditam, como seu presidente, que estão travando uma guerra defensiva. Estão conscientes que cometeram erros no início, mas sua boa preparação econômica aumentou sua confiança, não em comparação com a Ucrânia (a resistência dos ucranianos tem uma interpretação para eles: são tão corajosos quanto os russos, os ocidentais nunca lutariam tão bem!), mas em comparação com o que eles chamam de “O Ocidente Coletivo” ou “os Estados Unidos e seus vassalos”.
A verdadeira prioridade do regime russo não é tanto a vitória militar no terreno, mas como não perder a estabilidade social que adquiriu nos últimos 20 anos. Portanto, travam essa guerra “na economia”, concretamente, uma economia de homens, já que a Rússia mantém seu problema demográfico, com uma taxa de fecundidade de 1,5 filhos por mulher. Em cinco anos, terão faixas etárias vazias.
Em minha opinião, devem vencer ou perder a guerra em cinco anos. Uma duração normal para uma guerra mundial. Por isso, travam esta guerra na economia, reconstruindo uma economia de guerra parcial, mas querendo preservar os homens. Este é o significado da retirada de Kherson, depois, das regiões de Kharkiv e Kiev.
Contamos os quilômetros quadrados recuperados pelos ucranianos, mas os russos, por sua vez, esperam a queda das economias europeias. Somos a sua frente principal. É claro, posso estar errado, mas vivo com a ideia de que o comportamento dos russos é legível, porque é racional e duro. As incógnitas estão em outra parte.
Explica que os russos percebem esse conflito como “uma guerra defensiva”, mas ninguém tentou invadir a Rússia e hoje, por causa da guerra, a OTAN nunca teve tanta influência no Leste, com os países bálticos querendo se integrar.
Em resposta, proponho um exercício psicogeográfico, que pode ser feito voltando o zoom. Se olharmos para o mapa da Ucrânia, vemos a entrada de tropas russas pelo norte, leste, sul… e aí, efetivamente, temos a visão de uma invasão russa, não há outra palavra. Mas se retrocedermos até uma percepção do mundo, digamos até Washington, vemos que as armas e os mísseis da OTAN convergem para o campo de batalha, movimentos de armas que tinham começado antes da guerra.
Bakhmut fica a 8.400 km de Washington, mas a 130 km da fronteira russa. Uma simples leitura do mapa do mundo permite pensar, considerar a hipótese de que, “sim, do ponto de vista russo, esta deve ser uma guerra defensiva”.
Quando olhamos para os votos da ONU, vemos que 75% do mundo não segue o Ocidente, que, então, parece muito pequeno. Então, vemos que esse conflito, descrito por nossos meios de comunicação como um conflito de valores políticos, em um nível mais profundo, é um conflito de valores antropológicos.
Nessa linha, a entrada dos russos na guerra também se explica pelo relativo declínio dos Estados Unidos…
Em Depois do Império, publicado em 2002, evocava o longo declínio dos Estados Unidos e o retorno do poder russo. Desde 2002, os Estados Unidos sofreram uma série de derrotas e retrocessos. Os Estados Unidos invadiram o Iraque, mas deixaram o Irã como principal ator no Oriente Médio. Fugiram do Afeganistão.
A satelitização da Ucrânia pela Europa e Estados Unidos não representou maior dinamismo ocidental, mas o esgotamento de uma onda lançada por volta de 1990, reavivada pelo ressentimento anti-russo de poloneses e bálticos. No entanto, foi neste contexto de refluxo estadunidense que os russos tomaram a decisão de se meter na Ucrânia, por considerarem que, enfim, tinham os meios técnicos para isso.
Acabo a leitura de uma obra de S. Jaishankar, ministro das Relações Exteriores da Índia (The India Way), publicada pouco antes da guerra, que vê a fragilidade estadunidense, que sabe que o confronto entre a China e os Estados Unidos não terá um vencedor, mas acomodará um país como a Índia e muitos outros. Eu acrescentaria: mas não os europeus. Em todas as partes, vemos a fragilização dos Estados Unidos, mas não na Europa e no Japão, porque um dos efeitos do retrocesso do sistema imperial é que os Estados Unidos estreitam o cerco sobre seus protetorados iniciais.
Quando lemos Brzezinski (“O Grande Tabuleiro de Xadrez”), vemos que o Império Americano foi formado no final da Segunda Guerra Mundial pela conquista da Alemanha e do Japão, que ainda hoje são protetorados. Conforme o sistema estadunidense recua, pesa cada vez mais sobre as elites locais dos protetorados (e, aqui, incluo toda a Europa).
Os primeiros a perder toda a autonomia nacional serão (ou já são) os britânicos e os australianos. A Internet produziu na Anglosfera uma interação humana tão intensa com os Estados Unidos que suas universidades, meios de comunicação e elites artísticas estão, por assim dizer, anexados. No continente europeu, estamos um pouco protegidos por nossas línguas nacionais, mas a queda de nossa autonomia é considerável e rápida. Lembremo-nos da guerra no Iraque, quando Chirac, Schröder e Putin realizaram coletivas de imprensa conjuntas contra a guerra.
Muitos observadores destacam que a Rússia tem o PIB da Espanha. Não superestima seu poder econômico e sua capacidade de recuperação?
A guerra se torna um teste de economia política, é o grande detector. O PIB da Rússia e Bielorrússia representa 3,3% do PIB ocidental (Estados Unidos, Anglosfera, Europa, Japão, Coreia do Sul), praticamente nada. A questão é como esse PIB insignificante pode enfrentar e continuar produzindo mísseis. A razão é que o PIB é uma medida fictícia da produção.
Se retirarmos do PIB estadunidense a metade de seus custos superfaturados em saúde, depois, a “riqueza produzida” pelas atividades de seus advogados, depois, pelas prisões mais superlotadas do mundo, depois, por toda uma economia de serviços mal definidos que inclui a “produção” de seus 15-20.000 economistas com um salário médio anual de 120.000 dólares, percebemos que grande parte desse PIB nada mais é do que vapor d’água.
A guerra nos devolve à economia real, permite compreender qual é a riqueza real das nações, a capacidade produtiva e, portanto, a capacidade bélica. Quando voltamos às variáveis materiais, enxergamos a economia russa. Em 2014, aplicamos as primeiras sanções importantes contra a Rússia, mas, desde então, em 2020, aumentou sua produção de grãos de 40 para 90 milhões de toneladas. Ao passo que, graças ao neoliberalismo, a produção de trigo estadunidense, entre 1980 e 2020, caiu de 80 para 40 milhões de toneladas.
A Rússia também se tornou o principal exportador de usinas nucleares. Em 2007, os estadunidenses explicaram que seu adversário estratégico estava em tal estado de declínio nuclear que logo seria possível um primeiro ataque atômico contra uma Rússia que não conseguiria responder. Hoje, os russos estão em superioridade nuclear com seus mísseis hipersônicos. Portanto, a Rússia tem uma autêntica capacidade de adaptação.
Quando se quer zombar das economias centralizadas, destaca-se sua rigidez, ao passo que quando se defende o capitalismo, considera-se sua flexibilidade. Bem, para que uma economia seja flexível, evidentemente, é necessário o mercado dos mecanismos financeiros e monetários. Contudo, primeiro, é necessária uma população ativa que possa fazer as coisas.
Os Estados Unidos agora têm mais do que o dobro da população da Rússia (2,2 vezes em faixas etárias estudantis). O fato é que em grupos comparáveis de jovens que cursam o ensino superior, nos Estados Unidos, 7% estudam engenharia, ao passo que na Rússia são 25%. Isto significa que com 2,2 vezes menos pessoas estudando, os russos formam 30% a mais de engenheiros. Os Estados Unidos preenchem a lacuna com estudantes estrangeiros, mas estes vêm principalmente da Índia e mais ainda da China.
Este recurso de substituição não é seguro e já está diminuindo. Este é o dilema fundamental da economia estadunidense: só pode enfrentar a concorrência da China importando mão de obra chinesa qualificada. Proponho, aqui, o conceito de equilíbrio econômico.
A economia russa, por sua vez, aceitou as regras de funcionamento do mercado (inclusive, é uma obsessão para Putin preservá-las), mas com um enorme papel do Estado. E também conserva sua flexibilidade na formação de engenheiros para fazer ajustes, tanto industriais quanto militares.
Muitos observadores consideram, ao contrário, que Vladimir Putin explorou a renda dos produtos básicos sem ter conseguido desenvolver sua economia…
Se fosse assim, esta guerra não teria ocorrido. Uma das coisas surpreendentes a respeito desse conflito, e isso o torna tão incerto, é que levanta (assim como qualquer guerra moderna) a questão do equilíbrio entre a tecnologia avançada e a produção em massa. Não há dúvida de que os Estados Unidos possuem algumas das tecnologias militares mais avançadas, que em determinadas ocasiões foram decisivas para os êxitos militares ucranianos.
No entanto, quando se entra na duração, em uma guerra de desgaste, não só pelos recursos humanos, mas também pelos recursos materiais, a capacidade de continuar depende do setor de produção de armas ligeiras. E nos deparamos, ao olhar sua volta pela janela, com a questão da globalização e o problema fundamental dos ocidentais: transferimos tal proporção de nossas atividades industriais que não sabemos se nossa produção bélica pode continuar. O problema é admitido.
A CNN, o New York Times e o Pentágono se perguntam se os Estados Unidos poderão reiniciar as linhas de produção deste ou daquele tipo de míssil. Contudo, não sabemos se os russos serão capazes de manter o ritmo de um conflito deste tipo. O resultado e a solução da guerra dependerão da capacidade dos dois sistemas de produzir armamentos.
Esta guerra não é apenas militar e econômica, mas também ideológica e cultural…
Falo, aqui, principalmente como antropólogo. Na Rússia, houve estruturas familiares comunais mais densas, das quais alguns valores sobreviveram. Há um sentimento patriótico russo que, aqui, não temos sequer ideia, alimentado pelo subconsciente de uma nação familiar. A Rússia tinha uma organização familiar patrilinear, ou seja, na qual os homens são centrais, e não pode aderir a todas as inovações ocidentais neofeministas, LGBT, transgênero…
Quando vemos a Duma russa votar uma legislação ainda mais repressiva acerca da “propaganda LGBT”, nós nos sentimos superiores. Eu posso sentir isso como um ocidental normal. Contudo, do ponto de vista geopolítico, se pensarmos em termos de poder brando, isto é um erro. Para 75% do planeta, a organização de parentesco era patrilinear e se percebe uma forte compreensão das atitudes russas. Para o coletivo não-ocidental, a Rússia afirma um conservadorismo moral tranquilizador. A América Latina, no entanto, está, aqui, no lado ocidental.
Ao fazer geopolítica, interessa vários âmbitos: relações de poder energético, militar, produção de armas (que se refere às relações de poder industrial), mas existe também o equilíbrio de poder ideológico e cultural, que os estadunidenses chamam de “poder brando”. A URSS tinha uma certa forma de poder brando, o comunismo, que influenciou em partes da Itália, os chineses, os vietnamitas, os sérvios, os trabalhadores franceses…, mas o comunismo horrorizava basicamente o mundo muçulmano por seu ateísmo e não foi especialmente inspirador na Índia, exceto em Bengala Ocidental e Kerala.
Agora, hoje, como a Rússia se reposicionou como a grande potência arquetípica, não só anticolonial, mas também patrilinear e conservadora dos costumes tradicionais, pode ir muito mais longe com a sedução. Os estadunidenses se sentem, hoje, traídos pela Arábia Saudita, que se recusa a aumentar sua produção de petróleo, apesar da crise energética provocada pela guerra, e de fato se coloca do lado dos russos.
Em parte, é claro, por interesses do petróleo. Mas está claro que a Rússia de Putin, que se tornou moralmente conservadora, simpatiza-se com os sauditas, que certamente têm algum problema com os debates estadunidenses sobre o acesso das mulheres transexuais (definidas como homens no momento da concepção) aos banheiros femininos.
Os jornais ocidentais têm a trágica mania de repetir: “A Rússia está isolada”. Porém, quando olhamos para as votações da ONU, vemos que 75% do mundo não segue o Ocidente, o que nesse momento parece muito pouco. Se somos antropólogos, podemos explicar o mapa: por um lado, os países classificados como tendo um bom nível de democracia na classificação do The Economist (ou seja, a Anglosfera, a Europa…); por outro, os países autoritários, que se estendem da África até a China, passando pelo mundo árabe e a Rússia. Para um antropólogo, trata-se de um mapa trivial.
Na periferia “ocidental”, encontramos países com uma estrutura familiar nuclear com sistemas de parentesco bilaterais, ou seja, onde os parentes masculinos e femininos são equivalentes na hora de definir o status social da criança. E no centro, com a maioria das massas afro-europeia-asiáticas, encontramos organizações familiares comunitárias e patrilineares. Portanto, vemos que esse conflito, descrito por nossos meios de comunicação como um conflito de valores políticos, é em um nível mais profundo um conflito de valores antropológicos. É esta inconsciência e profundidade que faz com que o choque seja perigoso.