O presidente Lula é especialista em chistes. Um deles está colado na minha memória como que por superbonder, não sei bem porque. Numa entrevista, ele disse que as negociações diplomáticas, assim como as relações comerciais, precisavam olhar sempre para a autoestima do interlocutor, que nunca podia achar que estava perdendo. Eram tempos dos insuportáveis best sellers de vendedores americanos.
Lula explicava, portanto, usando uma expressão que se usava muito nestes livros, e na mídia, que era necessário estabelecer o “ganha-ganha”.
Só que Lula não é vendedor de best seller, então acrescentou uma ironia deliciosa: “um ganha e outro acha que ganha”.
Eu sempre achei que tinha uma filosofia profunda por trás dessa frase, com o qual poderíamos resumir o que é, em suma, a política humana.
A política humana é a arte do ganha-ganha, em que um ganha e outro acha que ganha. A ironia encobre, naturalmente, algum tipo de injustiça. Ao mesmo tempo, uma troca inteiramente perfeita, seja na política, seja no comércio, é utópica. Então é preciso preservar, no mínimo, a autoestima de ambos. Quando dois governos fecham um acordo comercial, é inevitável que, de alguma maneira, este beneficie mais um do que outro. No entanto, ambos os governos precisam vender a seus eleitores que ganharam.
A situação é a mesma para essa polêmica sobre o discurso de Lula em seu périplo por Argentina e Uruguai, em que ele mencionou o golpe sofrido pela presidenta Dilma Rousseff, e, em seguida, chamou Michel Temer, o vice de Dilma que articulou o impeachment e herdou o poder, de “golpista”.
Lula e os ministros que respondem pela interlocução política do governo com a sociedade terão de encontrar uma saída salomônica para este impasse de ordem linguística e conceitual.
A saída mais fácil, naturalmente, e que irá trazer mais resultados imediatos, é esquecer o assunto.
Lula chama o golpe de golpe desde sempre, e nada mais ridículo, por parte da imprensa, em fingir surpresa com isso.
O incômodo é grande, na mídia corporativa, e nos meios políticos mais conservadores, porque está associado a algum grau de consciência de culpa, associado ao oportunismo, de enxergar nisso uma chance de constranger o governo e, sobretudo, isolá-lo de seus apoiadores mais fiéis e combativos, exatamente aqueles milhões de eleitores que foram às ruas lutar contra o golpe em 2016, que se mantiveram leais ao presidente durante sua prisão injusta, que resistiram impávidos a quatro anos de um governo de extrema-direita, e que, em 2022, organizaram uma campanha linda e vitoriosa.
A saída mais inteligente, todavia, não é esquecer. Não é jogar para baixo do tapete. A saída mais inteligente é fazer o bom combate político, sim. O governo pode ter algum prejuízo, mas também pode ser uma excelente oportunidade para se exercitar os músculos. Caso se movimente com a devida prudência, não é um risco tão grande assim.
E como se faz o combate político, numa democracia como a nossa, e numa questão como esta, puramente linguística e conceitual, sem diminuir a importância – muitas vezes central, em se tratando de política – da linguística e do conceito?
A meu ver, a fórmula é simples, antiga e bem conhecida de Lula: usar a verve, o humor e a inteligência. Uma pitada de ciência política é sempre bem vinda, para dar um verniz acadêmico e científico. Afinal o impeachment de Dilma Rousseff foi visto como um golpe pela maioria dos estudiosos.
Ah, mas foi dentro da “regras”. Não foi bem assim. O golpe de 1964 também procurou se adequar ao figurino da Constituição. O conceito de golpe é elástico, ainda mais em tempos cínicos e pós-modernos, em que pode-se destituir uma presidente legitimamente eleita sem a necessidade de apontar um crime de responsabilidade.
Por outro lado, Lula tem que tomar cuidado com um perigo muito claro: todos os golpistas que se mobilizaram em favor do impeachment continuam aí e uma parte enorme deles hoje é seu aliado. O STF apoiou o golpe, Marina Silva apoiou o golpe, Alckmin apoiou o golpe. Todos os partidos de centro, centro-direita e direita, sobre os quais o presidente vem aspergindo seu charme democrático, apoiaram o golpe, mas hoje querem apoiar Lula, porque o petista voltou a ser presidente da república e… enfim, a vida continua.
Hoje os jornalões amanheceram com editoriais furibundos em defesa da legalidade do impeachment de Dilma Rousseff. É como se tivéssemos voltado a 2016. Com uma diferença, contudo. Dessa vez, a esquerda está do lado dos vencedores. Ela ganhou uma batalha estratégica, as eleições presidenciais de 2022. Por isso mesmo, deverá partir dela uma postura magnânima, de um adulto a lidar com adolescentes birrentos.
O lado irônico é que, hoje, a mídia corporativa foi obrigada a incorporar o léxico “golpista” em seu vocabulário cotidiano. Na Globonews, na CNN Brasil, nos grandes jornais, ouvimos a mesma palavra ser repetida dia e noite, referindo-se aos terroristas que acampavam diante dos quarteis e, em seguida, invadiram e depredaram a praça dos Três Poderes.
Como Lula ousa comparar esses terroristas, eles sim golpistas odientos e desclassificados, com o que fizemos em 2016 – deve passar pela cabeça dos editorialistas da mídia?
Enfim, reitero, essa é uma guerra de comunicação que não terminará com vencedores X perdedores. Ela tem de terminar com um “ganha-ganha”.
A esquerda ganha, porque ainda tem em mãos um trunfo importante, a presidência da república.
E a direita acha que ganha, porque seus porta-vozes na grande mídia podem exercer livremente o famoso jus sperneandi, o direito de espernear.
Entretanto, a esquerda também deve lembrar que, em boa parte, ela também está do lado daqueles que “acham que ganham”, porque os juros básicos do Brasil permanecem os mais altos do mundo, nossa sociedade continua profundamente desigual, e a mídia conservadora ainda tem capacidade de produzir crises, mobilizar o judiciário e desestabilizar governos.