Por Gilberto Maringoni
É possível que as corajosas medidas até aqui tomadas contra o terrorismo de extrema direita que detonou a sede física dos três Poderes no último domingo sejam insuficientes para deter o perigo real. Há um problema permanente a ser enfrentado e contemporizações apenas adiam o problema. Teria chegado a hora de uma ação mais incisiva? A resposta não é fácil.
A ameaça golpista/terrorista foi momentaneamente isolada, debelada e derrotada. Sublinhe-se o “momentaneamente”. A prisão de cerca de 1500 terroristas, a maioria lúmpens e zés e marias-ninguéns (a base social do fascismo, como sublinhava há oito décadas Wilhelm Reich) é algo relativamente fácil de se fazer. Intervir em um ente federado e afastar sua cúpula política e de segurança representa um grau acima na ousadia do poder central. Em breve, financiadores espalhados pelo país chegarão às barras dos tribunais. São medidas ousadas, mas não de todo inéditas por aqui. Falta algo mais.
A crise foi momentaneamente debelada, mas a brasa não está adormecida. O guizo da serpente fascista continua ressoando na institucionalidade. E seguirá em frente porque a cabine de comando da sedição não foi sequer responsabilizada, embora todos saibam de onde parte a intentona subversiva.
Ela vem de dentro do Estado brasileiro, mais precisamente de onde partiram todas as rupturas institucionais e ataques à democracia no Brasil desde o início da República. Ela parte dos porões do Exército brasileiro, secundados pela Aeronáutica e pela Marinha. Mais de 70 dias de complacência com acampamentos – celeiros de terroristas – em suas calçadas são a evidência mais completa do que todos sabem. Um ataque coordenado nacionalmente como o de domingo não ocorre sem forte apoio estatal.
Toda a hesitação do poder civil em investigar generais e oficiais envolvidos na patranha terrorista tem um motivo: o medo. É difícil encarar quem tem a força das armas e nenhum tipo de contenção civilizada à sua frente, dada à rarefeita educação cívica promovida por escolas militares que exaltam o golpe de 1964 até hoje.
Empoderado – desculpem o palavrão – no governo Bolsonaro, esse setor do funcionalismo público jamais se submeteu ao poder civil eleito. Sempre que comandou o Estado, produziu atentados contra a vida de brasileiros sem conta, acobertou crimes variados, lambuzou-se em sinecuras, exibiu um patriotismo de fancaria e jamais permitiu que a luz do sol iluminasse completamente atos e fatos sob sua guarida. Na gestão Bolsonaro, tornou-se cúmplice ativo da política genocida perpetrada durante a pandemia. Não é à toa que transparência seja palavra maldita entre quem pouco cumpre a função constitucional de defender o país de ameaças externas.
Mas o medo que impede o poder democrático de enquadrar os militares não é um medo pessoal. É um medo cívico e político e – em muitos casos – justificável. Ninguém enfrenta ninguém armado até os dentes em situação desfavorável.
O que temos nesses dias iniciais de janeiro? Após a espetacular vitória da frente liderada por Lula, tiveram início dois tipos de disputa. A primeira, pelos rumos econômicos do governo. Ameaças abertas de todas as farias limas, ecoadas em oceânicos decibéis pela mídia, davam conta do desastre iminente se a nova gestão resolvesse investir parcela ínfima do orçamento para matar a fome do povo. Logo após a exuberante festa de posse, a chantagem se escancarou. O “mercado” testou diariamente Lula e seus ministros a cada declaração dada, com altas artificiais do dólar e quedas forçadas da bolsa, tudo secundado pela algaravia de editoriais e comentaristas de TV.
A segunda disputa, materializada no terror militar, aflorou – para o grande público – de surpresa na tarde de domingo. Houve falha – inépcia, conluio, sabotagem – do aparato de segurança na proteção do palácio. Ao fim do dia, evidenciou-se que um setor castrense havia tentado colocar a faca no pescoço do governo. A brutalidade da balbúrdia isolou tais setores no mundo político.
Lula moveu-se com extrema habilidade no dia dos ataques. Sua primeira manifestação, em Araraquara, foi tensa e incisiva: decretou intervenção na Segurança do DF. Logo foi secundado por Alexandre Moraes, que afastou o governador.
No dia seguinte, o presidente tratou de ampliar o arco de forças antiterror. Chamou reuniões com os poderes, com o ministro da Defesa e com os comandantes das Armas e com os governadores. Nessa última, deu um show. Sabendo da diversidade entre os chefes de Executivos estaduais, correu riscos. Até o meio da tarde de segunda. Tarcízio e Ratinho Jr. desafiaram sua autoridade, ameaçando boicotar o encontro. Algum assessor de bom senso deve ter-lhes assoprado nos ouvidos que daria merda: poderiam ser acusados de coniventes com o terrorismo;
A dinâmica imposta por Lula à reunião foi habilíssima: primeiro fala quem quer – até o Aras! – e depois falo eu. Com imensa sensibilidade, sentiu o clima e fez o mais duro discurso desde a posse. Acusou a PM-DF, setores militares, financiadores etc. etc. e teve uma sacada genial: “Essa gente não tem pauta, não quer salário, não quer verba. A pauta é o golpe”. E fez – desde domingo – o que nunca antes da história desse país havia feito: reivindicou a esquerda e acusou pesadamente a direita. Um tremendo avanço em relação aos seus governos anteriores. A partir daí, a marcha até o STF foi gol atrás de gol;
Objetivamente, Lula isolou o fascismo. Por enquanto, vale sublinhar. Mas é preciso atentar para o fato de que nunca houve condições objetivas tão boas para efetuar uma mudança na Defesa e na cúpula militar (Comandante do EB, chefe da segurança do Palácio e GSI). O Exército se desmoralizou ainda mais ao evidenciar sua lassidão cúmplice com a balbúrdia destruidora. Não se trata de disputa política abstrata. Concretamente, com essa gente no comando, a segurança dos poderes está para lá de vulnerável, o que inclui a própria vida do presidente. Os terroristas cometeram imenso erro tático: ao invés de atacar apenas o Planalto, atacaram os 3 poderes, o que socializa o perigo da insegurança entre todos;
A solução das tensões só virá com uma ofensiva rápida, clara e incisiva do poder cidadão sobre o poder das armas. É o momento ideal? Talvez o momento ideal não exista, mas condições tão favoráveis como nos dias que correm nunca existiram. Há perigo de reações violentas? Há. Mas elas aconteceram também sem afronta alguma.
Para começar a fechar este texto já meio longo, uma historinha. Logo após o fracassado golpe de 11 a 13 de abril de 2002 na Venezuela, houve uma grita para que Hugo Chávez cortasse cabeças no alto comando das FFAA, envolvidas até o talo na empreitada. O presidente não agiu de imediato. Decidiu esperar até o início de julho, para sentir a situação. A data coincidia com o calendário de promoções e exonerações (passagem para a reserva) dos oficiais. Ali o ex-coronel foi implacável.
Difícil comparar as situações, é verdade. Mas entre abril e julho, Chávez fez um escarcéu, mantendo a denúncia do golpe quente na conjuntura. Assim, os meses que se passaram não diluiram a conspirata; ao contrário. Ele aumentou sua legitimidade, ampliou programas sociais (em especial o de médicos cubanos) e fez as destituições sem gritaria. O tempo cronológico se alongou, mas o tempo político foi curto.
Como dito no início, há duas disputas e duas tentativas de tutela sobre o governo Lula III, a dos militares e a da Faria Lima. Elas são inseparáveis, embora tenham embocaduras diferentes. As frentes políticas para o enfrentamento de cada uma são distintas; é ampla na defesa da democracia e restrita no combate ao neoliberalismo. Essa é a equação a ser levada em conta para colocar os problemas em fila e partir para sua resolução.
Lula nunca esteve tão forte politicamente. Há uma frente mundial antifascista em formação, com olhos focados no Brasil. Os atos populares contra o terror, na segunda, foram muito expressivos, levando-se em conta o exíguo tempo de convocação. Trava-se no Brasil uma disputa global, que se expressa no trumpismo, nos EUA, na Frente Nacional, na França, nos Fratelli, na Itália e em dezenas de países. A situação latino-americana é tensa, nos enfrentamentos da democracia com o extremismo de direita.
Há dois grandes estrategistas no governo, Lula e Alckmin, cada um com seu estilo. E há a coragem sempre surpreendente de Gleisi Hoffman. Torço para que os três, entre outros/as, com melhores capacidades, legitimidade e informações do que um simples palpiteiro de teclado cheguem à conclusão que a hora de resolver uma chaga histórica na democracia brasileira é agora. Passar o pano não é apenas inútil, como apenas adiará um problema que voltará ampliado em breve. E talvez, mais adiante, as condições de enfrentamento não sejam tão boas como agora.