Circula nas redes um vídeo que mostra os comentaristas da Jovem Pan apavorados com o poder de articulação de Lula:
É bem conhecido, de fato, o poder de articulação do presidente eleito.
Mas as dúvidas sobre a efetividade desse poder em um país bem diferente daquele dos anos 2000 não eram desarrazoadas.
Lula foi preso, o antipetismo virou uma força política potente e tivemos um governo de extrema-direita que, apesar de desastroso, quase conseguiu se reeleger. Além disso, o Congresso é majoritariamente conservador – ainda que isto não seja exatamente uma novidade.
Conseguirá Lula repetir seus feitos da década retrasada, quando construiu uma ampla base no Poder Legislativo e saiu do cargo com uma aprovação popular acachapante?
Se considerarmos os sinais que brotam das primeiras batalhas políticas que Lula precisou enfrentar, é bem possível que sim.
A começar pela aprovação da PEC da Transição, uma vitória política maiúscula. Arthur Lira tentou emplacar o Ministério da Saúde em troca de votos para a aprovação da PEC e boa parte da mídia corporativa fez a grita de sempre – teve gente até chamando de PEC da Gastança, uma vergonha.
Não adiantou nada: a PEC foi aprovada. E Lira não levou o Ministério da Saúde, que foi para Nísia Trindade, presidenta da Fiocruz. (Cadê a mídia festejando este nome “técnico”, aliás? Aparentemente só técnico de direita é digno de aplausos…)
E o teto de gastos, uma excrescência liberal que amarra os investimentos do governo federal em uma camisa de força, caiu por tabela com a aprovação da PEC, já que o governo agora está autorizado a apresentar uma nova âncora fiscal por lei complementar.
Pouco antes da votação da PEC, Gilmar Mendes havia decidido, em uma ação impetrada pela Rede Sustentabilidade, que o Bolsa Família não deverá mais ser contabilizado dentro do teto de gastos. O ministro do STF justificou sua decisão falando em “garantia da proteção ao plexo de direitos que perfazem o mínimo existencial da população em situação de vulnerabilidade social”.
A decisão é perfeitamente adequada aos princípios constitucionais da cidadania e da dignidade da pessoa humana, bem como aos objetivos fundamentais da República elencados logo no art. 3º da Carta: construir uma sociedade livre, justa e solidária e erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais.
Sabemos bem, todavia, que o humor dos ministros do STF oscila mais do que deveria, e que suas decisões muitas vezes estão mais afinadas com deterrminados grupos de pressão do que com as normas constitucionais. A decisão de Mendes, portanto, às vésperas da votação da PEC da Transição, é mais um sinal de que Lula – e a visão social de país que prevaleceu com sua vitória nas eleições – está voltando a dar as cartas em Brasília.
Outra decisão do STF que demonsta a força com que Lula volta à presidência é a que decidiu pelo fim do Orçamento Secreto.
Lula apontou repetidas vezes, durante a campanha eleitoral, a gravidade da situação. Tirar o orçamento do Executivo (que é o responsável, obviamente, por executar os projetos) e repassá-lo ao Congresso, sem possibilidade de rastrear o uso das verbas adequadamente, é abrir uma porteira gigantesca para o mau uso do dinheiro público e para a corrupção.
Questionado em uma entrevista sobre a viabilidade de revogar o Orçamento Secreto, já que o Congresso não abriria mão dos poderes orçamentários que conquistou, Lula disse que negociaria e daria um jeito. Parecia uma tarefa complicada, mas ele nem assumiu e o pepino já está resolvido.
Sua insistência em pautar o tema certamente influenciou a opinião pública e, consequentemente, a decisão do STF.
É evidente que o Judiciário precisa ser capaz de exercer um papel contramajoritário e remar contra a opinião pública quando necessário – papel que muitas vezes não cumpriu nos anos recentes de Lava Jato, golpe de Estado e aberrações cometidas por um presidente fascista.
Porém, no atual estado de coisas, em que os ministros participam ativamente do debate público, e são influenciados por ele, é salutar que tenhamos um presidente democrata de novo, contribuindo para direcionar a opinião pública a direções mais auspiciosas.
Política é o exercício do bom senso.
Os atores políticos e jurídicos com o mínimo deste artigo de luxo – o bom senso – estão, sem dúvida, cansados dos delírios de Bolsonaro. As pessoas querem a volta de alguma normalidade e estabilidade. Também por isso o poder de articulação de Lula segue afiado: o Brasil está com saudade do bom senso.
Política é também saber a hora de pressionar, a hora de conversar nos bastidores, a hora de conversar abertamente, a hora de fazer campanha pública etc.
Lula, experiente em todos esses tipos de exercício político, segue afiado.