Quando a política se mete nos tribunais, a justiça escapa pela janela.
Alberto Fernández, presidente da Argentina, lembrou desta lição do criminalista italiano Francesco Carrara ao comentar a condenação de sua vice, Cristina Kirchner, a 6 anos de prisão e à inabilitação perpétua para exercer cargos públicos, decretada no último dia 6 pelo Tribunal Oral Federal nº 2 da Argentina.
Partidos de esquerda, organizações de trabalhadores e de direitos humanos do país vizinho e de outros países da América Latina denunciam que se trata de mais um caso de lawfare contra uma liderança política de esquerda. O lawfare é o uso do sistema jurídico para fins de perseguição política.
No Brasil estamos familiarizados com o termo, já que presenciamos por longos anos – angustiados alguns, tolamente satisfeitos outros – a dantesca perseguição midiática e judicial a Luiz Inácio Lula da Silva. Por aqui já vimos a luz no fim do túnel e podemos até respirar o ar fresco da retomada democrática, já que Lula deu uma espetacular volta por cima e foi novamente eleito presidente do Brasil.
Na Argentina o lawfare está em sua fase mais aguda e agressiva: os hermanos estão vivendo o exato momento em que o sistema de justiça usa de sua força para condenar uma liderança popular.
Kirchner afirmou que o seu caso é ainda pior que lawfare ou partido judicial: “Isto é uma máfia paralela estatal e judicial.” Sobre o tribunal que a condenou, a vice-presidente argentina qualificou de “pelotão de fuzilamento”.
As fortes palavras de Kirchner encontram respaldo em um escândalo comparável à Vaza Jato brasileira – com contornos ainda mais novelescos.
O jornal Página 12 divulgou, no dia 17de outubro, que o Grupo de mídia Clarín, alinhado à direita argentina, convidou juízes federais (um deles liderou a ofensiva judicial contra Kirchner), promotores públicos, empresários, um marqueteiro, o ministro da Justiça de Buenos Aires (aliado de Maurício Macri) e um ex-membro da agência de inteligência da Argentina para um encontro presencial em uma mansão de propriedade do magnata britânico Joe Lewis, amigo pessoal de Macri. Os visitantes da mansão foram de jato privado ao local.
Segundo o Página 12, “uma análise da comitiva leva à dedução de que o conclave necessariamente teve como tema a continuidade do uso da justiça com fins políticos: garantir que Mauricio Macri permaneça impune nos autos em que é acusado – espionagem, pedágios, Correios, dívida com o FMI – e continuar o assédio judicial contra Cristina Kirchner.”
A hipótese do Página 12 foi corroborada pela justificativa bizarra de Macri para o encontro na mansão do Lago Escondido: um “retiro espiritual”.
E espetacularmente confirmada com a revelação do jornal Tiempo Argentino do último dia 4: depois que o encontro foi a público, integrantes do “retiro espiritual” fizeram um grupo no Telegram intitulado “Operación de Página 12”, uma espécie de comitê de crise para gerenciar a repercussão do caso.
Um repórter do Tiempo Argentino teve acesso às conversas do grupo e o Brasil de Fato resumiu o conteúdo:
Na conversa, discutem como falsificar provas sobre a viagem, como forjar notas fiscais para demonstrar que cada um viajou por conta própria. A “operação”, como incita o nome do grupo, tinha como objetivo impedir a investigação sobre esse encontro e a publicação do caso em meios de comunicação de maior alcance.
O Telegram não é, de fato, confiável para planejamento de perseguições judiciais.
Há ainda um elemento simbólico no imbróglio: a área da mansão teria sido comprada irregularmente pelo magnata, que ainda dificulta o acesso da população ao Lago Escondido – que é público. Nada mais típico do que liberais no discurso se apropriarem, às escondidas, de bens públicos.
De todo modo, são impressionantes as semelhanças da perseguição a Cristina Kirchner com a perseguição que Lula sofreu aqui no Brasil. Ambos foram crucificados pela mídia de direita dos seus países por anos a fio, até que o massacre midiático desembocou em uma ofensiva judicial violenta. Rafael Correa, ex-presidente do Equador, sofreu perseguição semelhante.
O lawfare é uma das armas modernas da direita golpista da América Latina. Como hoje em dia é mais difícil implantar e sustentar uma ditadura militar escancarada, utiliza-se os grande grupos de mídia para fazer a caveira do alvo desejado e instrumenta-se os órgãos de Justiça para sacramentar a retirada do líder popular do jogo democrático.
É por isso que governos de esquerda não podem mais se dar ao luxo de não mexerem nas estruturas de comunicação e de justiça dos seus países. Há que se pensar planos de longo prazo para diminuir o poder dos barões da mídia e para transformar o judiciário em um poder realmente garantidor da democracia.
Comunicação e justiça democráticas são elementos centrais na vida de uma comunidade que quer ser livre e justa. Por isso é preciso criar as condições políticas para dificultar ao máximo o seu uso para fins escusos.
Por outro lado, a direita capacha do imperalismo, um triste padrão latino americano, deveria pensar melhor nas suas estratégias políticas. Olhem para Lula, recém empossado presidente do Brasil depois de ser brutalmente perseguido, e percebam que é impossível deter para sempre os povos oprimidos do mundo.
A luta por liberdade perdurará até que a liberdade seja, em definitivo, estabelecida.
Hoje, na Argentina, uma pessoa inocente foi condenada. Alguém que os poderes jurídicos tentam estigmatizar com juízes complacentes, que passeiam por aí em aviões privados e mansões de luxo nos fins de semana. – Alberto Fernandéz, sobre a condenação de Cristina Kirchner.