É espantosa a superficialidade da maioria das análises políticas quando o assunto é golpe de Estado.
O imbróglio do momento é no Peru: o presidente Pedro Castillo tentou dissolver o Congresso e convocar novas eleições, mas foi destituído do cargo pelo próprio Congresso e em seguida preso.
Dissolver o Congresso é uma óbvia tentativa de golpe, certo?
No Brasil sim, já que não há previsão constitucional para tal ato. Mas no art. 134 da Constituição peruana há a possibilidade de que o presidente dissolva o Congresso desde que convoque novas eleições, e Castillo utilizou essa prerrogativa.
É uma prerrogativa literal, ok? Não uma interpretação esdrúxula como a que bolsonaristas fazem do art. 142 da Constituição brasileira.
Por outro lado, alguns dos ministros de Castilllo entregaram o cargo, sua vice declarou que se tratava de um golpe de Estado e até seu advogado de defesa no processo de impeachment reununciou. São elementos que devem ser considerados em qualquer análise – embora a literalidade da Constituição peruana indique que não foi uma tentativa de golpe.
Mesmo que se considere que foi um golpe, meu ponto aqui é o seguinte: não se pode chamar de golpe só o que for conveniente.
O motivo alegado pelos congressistas? “Incapacidade moral”. Abstrato o suficiente para afastar qualquer presidente que se queira. Macabramente semelhante ao “conjunto da obra” utilizado como argumento por congressistas brasileiros para destituírem Dilma Rousseff do poder.
Castillo assumiu o poder em 2021 e desde então enfrentou nada menos que três processos de impeachment. Três! O mais recente culminou hoje com o seu afastamento.
Ele governava sob pressão da oposição de direita desde a posse. Sua vitória apertada contra a filha do ditador Alberto Fujimori atiçou a oposição conservadora, que tenta derrubá-lo de qualquer forma, mesmo tendo perdido nas urnas.
As semelhanças com o Brasil pós 2014, ano em que Dilma ganhou as eleições de Aécio Neves por um placar apertado, não são mera coincidência.
E aí cabe a pergunta: impeachment sem base legal não é golpe? Só porque finge respeitar as regras jurídicas?
É evidente que é golpe.
É o golpe limpinho, em geral apoiado e construído pelos conglomerados de mídia, poder judiciário, grandes empresários e especuladores.
Há golpes e golpes, portanto.
Se o governo da vez for ligeiramente de esquerda, esqueça.
Você não verá nos grandes veículos de mídia nenhum comentarista indignado com os Aécios da vida, que não admitem perder democraticamente e tentam usurpar o porder por meio de cretinices parlamentares. Tampouco ouvirá críticas às conspirações judiciais torpes contra líderes populares.
Contra Lula, Cristina Kirchner, Rafael Correa e tantos outros líderes latino-americanos que já enfrentaram a fúria da direita golpista da nossa região, vale tudo.
Golpe só é golpe quando é conveniente.