Cristina condenada: fora do Estado Democrático de Direito não há salvação!
Por Tauat Resende
No dia de hoje, a vice-presidenta da Argentina, Cristina de Fernández Kirchner, foi condenada a uma pena de 6 anos de prisão, com inabilitação perpétua para exercer cargos públicos. O lawfare, uma guerra jurídica em que se substitui as forças armadas, que parecia ter sido derrotada na América Latina, parece ganhar força novamente.
Sobre o lawfare, é preciso dizer que vários países da região sofreram com esse fenômeno, sobretudo aqueles governados por governos mais identificados com a esquerda. No Brasil, primeiro houve o impeachment de Dilma Rousseff, depois, a prisão política de Lula, que seria candidato à Presidência da República e foi impedido. No Equador, Rafael Correa, que presidiu o país de 2007 a 2017, precisou se asilar na Bélgica para não ser preso em sua terra natal. No Peru, Alan García se suicidou após saber que seria preso preventivamente por indícios de sua participação em contratos ilícitos com a Odebrecht. Na Bolívia, Evo Morales sofreu um golpe, após a oposição denunciar irregularidades nas eleições e precisou buscar refúgio no México e na Argentina para salvar a sua vida. Na Argentina, por sua vez, Cristina vem enfrentando sérias denúncias de corrupção e ameaças de ser presa desde que saiu da presidência, em 2015.
Antes de me debruçar sobre esses casos, preciso dizer que a corrupção é um obstáculo à concretização da democracia, um mal que precisa ser encarado e devidamente enfrentado. A corrupção é injustificável e precisa ser combatida dentro do marco legal. O combate à corrupção é a concretização do ideal republicano, isso porque a palavra república, em sua etimologia, vem do latim res pública, ou seja, coisa pública. A corrupção, por outro lado, privatiza para uns poucos aquilo que pertence a toda coletividade. É, portanto, o oposto do conceito de República.
Dito isso, é preciso chegar a um consenso: fora do Estado Democrático de Direito e, portanto, de suas instituições, não há salvação. No Direito, os meios importam. Como disse um magistrado da Suprema Corte do nosso país, não é possível que a pretexto de combater crimes, se cometam mais crimes. E é exatamente isso significa que os fins não justificam os meios. Dentro da institucionalidade democrática, só há um caminho possível: aquele que respeita as leis e a Constituição, com todas as garantias e liberdades individuais.
Quando se trata de crimes de colarinho branco, isso é, os crimes de corrupção envolvendo autoridades, empresários e toda sorte de poderosos, se sabe que historicamente esses crimes costumam ficar impunes, o que é um grave erro e um empecilho para a construção democrática e republicana. É preciso que se investigue e, se constatado a malversação de recursos públicos, que se punam todos os envolvidos, na forma da lei. Por outro lado, é preciso que se garanta o devido processo legal, respeitando o contraditório e a ampla defesa. Pois do contrário o que há é a barbárie, é a volta de um processo estritamente inquisitorial, próprio da época medieval.
Também há que se dizer que o Poder Judiciário não pode fazer as vezes do voto popular, isso é, não se pode valer da institucionalidade, como já se fez e se tenta fazer, para substituir a vontade popular. No Brasil, o Supremo Tribunal Federal concluiu que a atuação do ex-juiz Sergio Moro feriu a lei e a Constituição, de forma que sua atuação nos processos do presidente Lula foi parcial. E, portanto, os processos foram anulados. Mas, apesar da Justiça ter feito justiça, reconhecendo a parcialidade do então magistrado, não se pode ignorar que graves consequências aquela ação produziu na vida política do país.
Primeiro, que em 2018 Lula era pré-candidato. Com sua condenação confirmada em 2ª instância, Lula perdeu os direitos políticos pela Lei da Ficha Limpa e o TSE não reconheceu o direito de concorrer preso e sub judice. Dessa forma, Bolsonaro, o maior concorrente naquela eleição, saiu vitorioso. O Brasil, por outro lado, nos 4 anos de governo de Bolsonaro, saiu derrotado, com retrocessos inquestionáveis no meio ambiente, na educação, na economia, na saúde – sobretudo durante a pandemia –, e em diversas outras áreas.
Por isso, acredito que é preciso ter um cuidado redobrado. Combater a corrupção, como disse, é um imperativo da democracia e do ideal republicano. Mas esse combate precisa ter em mente tanto o marco legal, dentro de um processo justo, dialético, que respeite os direitos e garantias fundamentais, como o próprio papel do Poder Judiciário, que não é de fazer as vezes do eleitor. A soberania popular é um dos mais importantes vetores da democracia representativa e não se pode achar razoável que por uma decisão judicial, se jogue no lixo – ou se impeça – a vontade popular de se expressar.
O lawfare latino-americano que agora vai com tudo pra cima de Cristina é indefensável. Seja pelas evidentes ilegalidades que rondam o caso, seja pela tentativa de requentar um caso judicial que já foi julgado tanto na província de Santa Cruz, como pelo próprio juiz que agora condena Cristina. Não sei se Cristina é inocente, mas sei que a forma como o juiz do caso está conduzindo o processo viola princípios e direitos assegurados pela Constituição argentina e em tratados internacionais dos quais a Argentina é signatária. Frente a isso, não se pode calar ou relativizar, porque fora do Estado Democrático de Direito, não há salvação!
Tauat Resende é um advogado em defesa da Constituição.
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